As Três Pedrinhas
por José Brígido (Indalício
Mendes)
Reformador
(FEB) Outubro 1947
No alto do monte Kiskut, perto de Medina,
na Arábia, viviam dois pastores: Mameiik, ancião de setenta invernos bem
contados, e Ahmed-Nahra, no estouvamento
dos seus belos dezoito anos.
Certa noite, inquieto, Ahmed-Nahra bateu
nervosamente à porta do velho. Cometera uma falta e temia sofrer-lhe as
consequências. Apesar de a noite ir adiantada, achava-se Mameiik acordado,
lendo à luz vacilante de uma candeia, versículos do Livro Sagrado do Profeta.
Interrompendo a leitura, pôs-se a ouvir Ahmed-Nahra, cujas palavras, no
silêncio tumular daquela hora, estrepitavam, muito embora o rapaz as
pronunciasse quase à meia voz.
Todo esse tempo Mameiik permaneceu calado,
sem fazer um gesto. Voltando a manusear o vetusto livro, procurou um trecho que
se adaptasse à situação do jovem amigo. Leu-o em voz alta, vagarosamente, como
que pretendendo gravá-lo o no coração irrequieto do traquinas.
Cabisbaixo, Ahmed-Nabra suportou
humildemente a admoestação, ouvindo as considerações de Mameiik, que conservava
ainda o dedo pousado em certo ponto do sagrado eucológio (livro que contém as
orações cotidianas).
E o velho começou a falar:
- “Ahmed:
Estás ficando um homem. É preciso que te habitues a sofrear os impulsos
desordenados da tua natureza rebelde. A ocasião é propícia para começares vida
nova, porque teu coração se encontra em sobressalto e receias a punição severa
do cádi (juiz muçulmano
que julga segundo a Charia). Sirva-te de escarmento (corretivo) o que hoje te aconteceu. Deixa em paz as
tamareiras de Abid-Amam e volta teus olhos para o Livro Sagrado do Profeta,
onde está escrito o destino de cada um de nós."
Passando a mão espalmada pela cabeça do
jovem, Mameiik confortou-o com um sorriso cheio de bondade. E continuou:
- “Ahmed: Não tenho filhos; todos os
membros da minha família já foram chamados por Alá. Todavia, não me encontro
só, como imaginas, porque tenho a companhia das minhas melhores recordações, e
a bênção do Profeta enche os meus últimos dias de vida. Sinto em volta de mim
os amigos que os meus olhos não podem ver, mas que o meu coração percebe.
Conheço todo o Livro Sagrado e posso dizer-te tudo quanto ele contém, do começo
ao fim, de trás para diante. Entretanto, Ahmed,
isto
não basta. É preferível trazer as Santas Palavras no coração - e não somente
nos lábios - para que os nossos atos e dizeres não as contrariem."
Após breve interregno, rematou:
- "Em vez de invadires o pomar de
Abid-Amam para roubar tâmaras, vem para cá, todas as noites. Ensinar-te-ei
alguns dos mistérios do Livro Sagrado do Profeta; aprenderás a senti-lo, a
interpretá-lo, a ler, através da linguagem poética dos versículos, muitas vezes
alegórica, o pensamento profundo e sutil que Alá soprou a Maomé.
E, então, se fores fiel a esses ensinos, tua vida mudará para melhor, novos horizontes se desdobrarão ante os teus olhos. Aprenderás a compreender a Vida e a dar as coisas da Terra seu justo valor. Acharás as Santas Palavras do Livro Sagrado infinitamente mais doces do que os belos frutos maduros das tamareiras de Abid-Amam ... "
Assim fez Ahmed-Nahra. Longas e longas
noites, do verão ao inverno, do inverno ao verão, frequentou ele a choça de
Mameiic, estudando e aprendendo que as ambições do mundo são tolas e que somente
nos deixamos seduzir por elas porque não estamos preparados espiritualmente
para a vida. A lição do velho místico fora-lhe proveitosa. Três anos decorreram
após aquela noite agitada e Ahmed-Nahra estava completamente modificado.
Guardava bem vivas na lembrança as palavras de Mameiic:
- "Ahmed, Ahmed, meu filho, toma
tento. Todas as graças do mundo não valem um momento de real tranquilidade. Os
homens se esfalfam, brigam e se matam pelo poder, pela riqueza, pela dominação
dos outros homens. Insensatos! Vai um dia ouvir o ulemá (Teólogo muçulmano especializado em
leis e religião)
Abdul-ben-Abdullah e verás, Ahmed, como a vida é muito mais bela do que parece.
Mas sua beleza é tão simples que a maioria dos homens não a enxerga nem
compreende... Vai ouvir Abdul-
-ben-Abdullah.
Ele te dirá como alcançar a Paz Interior. Começa por não pensar mal nem fazer
mal a quem quer que seja. Mas faze o bem a todos, indistintamente. Ser bom,
além de constituir intransferível dever, é direito que o Espírito adiantado
adquire, pois a bondade é índice seguro de elevação espiritual. Trabalha por
ti, ajudando os teus semelhantes. É fazendo pelos outros que nos ajudamos
melhor. O primeiro passo para o bem é não fazer o mal. O segundo é fazer e
pensar sempre o bem."
Quando o ex apreciador das tâmaras de Abid-Amam decidiu visitar a cidade de Meca, para realizar o seu "abdest" (purificação legal) e ouvir o sábio Abdul-ben-Abdullah, amigo de Mameiik, este lhe ofertou um alquicé (tecido para cobrir mesas, banco e etc) e uma sacola, dizendo conter três pedras pequeninas. As lágrimas visitavam
os olhos do rapaz, na hora da despedida. Então, Mameiik lhe disse, docemente:
- "Toma, Ahmed-Nahra, estas pedrinhas.
Leva-as contigo onde quer que vás, para que te não esqueças de teus
deveres."
Ahmed abriu o saquinho e segurou a pedra
maior. Advertiu-lhe o velho:
- "Essa pedra significa que a ingratidão do mundo é a mais comum das
recompensas que podemos esperar do bem que fizermos. Isto quer dizer que não se
deve fazer o bem senão por amor ao bem, ainda que nos façam mal; nunca, porém,
para recebermos qualquer paga ou agradecimento."
Ahmed enfiou de novo a mão na sacola e dela
retirou outra pedra, um pouco menor que a anterior.
- "Sábio Mameiik, e esta?"
Mameiik olhou demoradamente para o jovem e
tornou:
- "Esta é a segunda pedrinha. Não é
grande nem pequena demais. Quer dizer que deves
sempre vigiar as tuas ações e controlar os teus pensamentos, evitando excessos
e deficiências. Ela representa o meio-termo. A verdadeira virtude está no equilíbrio.
Foge dos elogios fáceis e abundantes, como das censuras e acusações levianas. Sê
sóbrio, discreto, paciente, tolerante, Ahmed-Nahra; sê justo."
Ahmed, então, rebolcou a sacola pela última
vez, procurando a derradeira pedrinha, que deveria ser a menor das três. Não a
encontrando, olhou, surpreso, para Mameiik, que lhe prestou o esclarecimento final:
- "Ahmed-Nahra, filho meu: A pedrinha
que não encontras representa o que fizeste de bom até agora, em favor dos teus
semelhantes... Não a vês, é certo, porque ela ainda é ... imaginária. Não
importa, porém. Trabalha com o pensamento em Alá; faze o bem, de preferência a quem te fizer mal; serve ao teu próximo
com boa vontade e sincera alegria no coração e, um dia, quando procurares
de novo a pedrinha dentro da sacola, encontra-la ás, porque ela crescerá simultaneamente
com
o
teu progresso moral."
Cinquenta anos depois, Ahmed-Nahra voltou
ao alto do monte Kiskut, onde vivera com Mameiik. A cabeça branca era como que
uma auréola de prata fulgurante. Trazia ele ainda, com acendrado carinho, a
sacola com as duas pedrinhas que o velho amigo lhe dera. A terceira ele a
encontrara, depois de anos de intensa labuta. Seu nome se fizera conhecido da
Arábia inteira e era pronunciado com respeito geral.
Dizem as crônicas daquele tempo que
Ahmed--Nahra não pode trazer consigo a terceira pedra porque ela crescera
tanto, tanto, que, então, já pesava algumas toneladas ...
Nota
do Blog: Os trechos em negrito não existem no original. Foram destacados na estória
acima pois resumem os ensinamentos nela contidos.
Fazer o bem sem olhar a quem...
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