Profissionalismo religioso
por Ismael
Gomes Braga
Reformador (FEB) Maio 1947
O capítulo XXVI de
"O Evangelho segundo o Espiritismo" é um dos menores em extensão e
foi escrito só por Allan Kardec: não tem, como quase todos os outros,
"Instruções dos Espíritos". No entanto, é um dos mais profundos e que
mais força dá à Doutrina.
O homem tende a
explorar economicamente todas as coisas, de tudo fazer profissão, meio de vida,
rebaixando tudo a objeto de compra e venda. Nem o Cristianismo escapou!
Organizou-se em Igrejas e surgiram os profissionais religiosos, poderosas
organizações econômicas que mataram o espírito da Doutrina primitiva e conquistaram
materialmente o mundo. O profissionalismo religioso está enraizado por
tradições multimilenárias e parece natural num mundo materialista, cujas
relações são todas de base econômica. Abrir luta contra tal profissionalismo e
proclamar novamente com o Cristo: "Dai de graça o que de graça
recebestes", exigia bravura muito especial; mas, felizmente, Kardec, a
teve e com ela salvou a Terceira Revelação.
No Brasil, onde
predomina o Espiritismo evangélico, o profissionalismo não medra entre 98
espíritas; raras vezes é tentado por algumas pessoas, mas a imensa maioria o
repele e ele morre por insulamento.
Não só os serviços
mediúnicos são prestados gratuitamente, mas até outros serviços doutrinários,
como a direção de instituições, a redação de livros e jornais, traduções e
revisões, a pregação, são realizados gratuitamente, quase sempre por pessoas
pobres que penosamente poupam o tempo para prestar tais serviços e ainda pagam
mensalidades a associações e ajudam a necessitados. Não queremos dizer que nós
- os espíritas - sejamos melhores do que os outros homens, mas devemos ressaltar
as vantagens de não existir profissão de espírita.
O profissional não
é livre, está preso pela necessidade à sua profissão, mesmo quando ela lhe
desagrade; porque é sempre difícil mudar de profissão depois de alguma idade. O
sacerdote de uma religião está na contingência de continuar até à morte em sua
Igreja, mesmo que perca a fé religiosa e se torne materialista e ateu, o que
não é raro. Noutros casos, e ainda mais frequentes, o sacerdote perde o
respeito por um ou alguns dos seus votos, por
exemplo, pelos votos de castidade e de pobreza e constitui família ilegal ou
luta por enriquecer-se. Desde então perde ele toda a autoridade religiosa e passa
a ensinar pelo exemplo princípios opostos aos que prega pela palavra. Torna-se
pedra de tropeço para os fiéis, porque o exemplo é mais forte que a palavra.
Não existisse a dependência econômica e tudo se resolveria muito bem: o sacerdote
deixaria de exercer suas funções religiosas no momento que quisesse e
contrairia matrimônio legítimo, com todas as vantagens para a prole e a
sociedade e benefícios imensos para a Religião, porque não se tornaria pedra de
tropeço para os crentes.
Precisamente o
mesmo se daria com o profissional espírita, se este existisse: seria um escravo
da sua profissão e continuaria nela, ainda que perdesse o entusiasmo, o fervor
ou até a crença.
Se de um ponto de
vista puramente humano o profissionalismo seria grande mal para o Espiritismo,
do ponto de vista espiritual seria sua morte inevitável; porque os Espíritos
superiores não se submetem a trabalhar para exploradores da religião e
abandonam toda pessoa - em qualquer corrente religiosa - que pretenda fazer deles
um degrau para se elevarem economicamente. Uma vez privado do convívio dos Espíritos
superiores, o homem entra para a sociedade dos inferiores que nada podem
produzir de proveitoso para a regeneração da Humanidade, mas, ao contrário, só
fazem mal: engendram dissenções e animosidades, lançam a dúvida e abalam a fé,
alimentam paixões, insuflam vaidade e orgulho, animam o egoísmo e anulam as
boas intenções.
Os Espíritos
superiores colaboram dedicadamente, sem espírito algum de seita, fora ou dentro
do Espiritismo, mas somente com pessoas desinteressadas que se sacrifiquem
pelos seus irmãos por amor, com abnegação e singeleza, dando de graça quanto
possível seu tempo e seus bens para servir às pessoas e aos ideais superiores,
Dizemos "fora ou dentro do Espiritismo", porque realmente tudo quanto
representa progresso tem apoio dos Espíritos superiores e é planejado por eles;
portanto, na ciência, na política, na religião, nas artes, na técnica, na indústria,
há pessoas que cumprem humildemente um apostolado e são auxiliadas pelos
grandes Espíritos, como há utilitários, argentários, egoístas sem o apoio dos
Espíritos elevados e em afinidade com os atrasados. Em Espiritismo, porém, essa
intervenção se torna mais clara e compreensível, porque os espíritas são
iniciados no assunto.
Não só naquele
capítulo acima mencionado Allan Kardec insiste pelo desinteresse material. Em
muitos outros trabalhos voltou ele ao assunto, dando-lhe o relevo que merece.
Na obra de Roustaing, igualmente, os Espíritos são enfáticos nessa
recomendação. Hoje vamos começando a perceber quão profundo alcance tem esse ensino
sempre repetido há mais de oitenta anos pelos Espíritos superiores. Não é demais, pois, refletirmos muitas
vezes sobre a necessidade de defendermos sempre esse princípio doutrinário em
nossos escritos e pela divulgação dos livros que tragam o mesmo ensinamento.
Não temos nem
desejamos ter concílios, sínodos ou outras congregações que decidam em matéria
de fé. Nosso ideal religioso é que cada espírita seja um juiz severo de seus
próprios atos e pensamentos e possua as necessárias luzes para distinguir entre
o bem e o mal. O único elemento de que dispomos é o livro. O livro opera
prodígios. A divulgação sempre crescente dos bons livros é a nossa grande
tarefa, na qual temos sido generosamente auxiliados pelos Espíritos que dirigem
o nosso movimento.
Quanto mais cresça
o nosso movimento, tanto maior se torna a missão do livro em geral e de "O
Evangelho segundo o Espiritismo", em especial.
Até hoje, por mercê
de Deus, tem-se conservado puro o grande princípio do "dar de graça"
no movimento espírita brasileiro, e, pela constante divulgação e estudo dos
bons livros em nossos grupos, espalhados por todo o território nacional, é de
esperar-se que se conserve o santo escrúpulo contra o profissionalismo religioso.
Conservado esse
desinteresse, não nos faltará a assistência dos Espíritos superiores e as nossas
instituições progredirão sempre; se tivéssemos a desgraça de mudar de rumo,
poderíamos talvez ter um movimento materialmente forte, humanamente bem
organizado, mas seria apenas o cadáver do Espiritismo, porque nos faltaria a força
interna que vem dos Espíritos elevados, e teríamos todas as fraquezas dos
Espíritos inferiores. Dizemos "talvez", porque o mais provável seria
o esboroamento completo das nossas instituições...-
Não admitamos,
porém, o pensamento pessimista de que o profissionalismo religioso venha a
invadir o nosso movimento espírita.
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