Aos pés do Mestre
Romeu A. Camargo
Reformador
(FEB) Junho 1925
Ao ilustrado
amigo, revm.º Isaac Gouveia do Valle,
zeloso Pastor da Igreja Presbiteriana Independente
da cidade de Santos.
“E eis que, chegando-se a ele um, lhe
disse: Bom Mestre, que obras boas devo fazer, para alcançar a vida eterna?
–Jesus lhe respondeu: Porque me chamas tu de bom? Bom só Deus o é. Porém, se tu
queres entrar na vida, guarda os mandamentos - Ele lhe perguntou: Quais?- E
Jesus lhe disse: Não cometerás homicídio; não adulterarás; não cometerá furto;
não dirás falso testemunho, honra teu pai e a tua mãe, e amarás a teu próximo
como a ti mesmo. O mancebo lhe disse: Tenho guardado tudo isso desde a minha
mocidade; que é que me falta ainda? Jesus lhe respondeu: Se queres ser perfeito,
vai, vende o que tens, e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu: depois vem e
segue-me. O mancebo, porém, como ouviu esta palavra, retirou-se triste, porque
tinha muitos bens.” Mateus (cap. XIX)
Consideremos apenas um lado dessa
narrativa, dada a impossibilidade de
apreciarmos
todas as lições que porventura pudéssemos colher do instrutivo episódio.
Transluzem na face do homem rico duas
qualidades bastante apreciadas, entre os homens: a religiosidade e a franqueza.
Era religioso e por isso mesmo manifestava interesse pela redenção de sua alma,
conforme se depreende da franqueza com que confessou, de público, a fragilidade
de suas convicções: Que obras boas devo fazer?
Esta interpelação faz proeminar o juízo
segundo o qual não se sentia no caminho da vida eterna. Di-lo a própria índole
da pergunta.
O Divino Mestre apreciou a lealdade do
interpelante, com quem travou amistosa palestra, ao mesmo tempo que procurava
despertar-lhe a boa vontade: “Se queres
ser perfeito, se queres entrar na vida eterna, guarda os mandamentos.”
-Quais? Interroga o interessado homem de
qualidades. Sábia e alvissareira resposta deu-lhe Jesus, capaz de apaziguar a
fome de justiça que afogueava uma alma já atormentada por se não sentir segura
no caminho da Vida.
O crente não estava tranquilo. Pelo exame
introspectivo que fez, ouviu, lá no
íntimo,
a consciência - o cochicho de Deus, na frase de uma menina - a
segregar-lhe: “Ainda não encontraste a fonte onde possas acalmar a tua sede de
justiça; entretanto, está mais próxima do que pensas: tuas riquezas, bem
aplicadas, poderão auxiliar-te no caminho da verdadeira vida.”
A resposta do Divino Mestre “guarda os teus mandamentos”, opõe o
endinheirado crente a uma objeção, com o que pretende justificar-se: "Esses mandamentos que me apontas, Ó bom
Mestre, tenho-os observado desde a minha mocidade.”
Pertencia a uma família religiosa,
consoante se depreende dessa confissão
que
pode ser entendida nestes termos: “Esses
mandamentos que me recomendas, conheço-os e observo desde que os albores da
inteligência me Iluminaram o Espírito;
meus pais não descuraram da minha educação religiosa, segundo as Leis e
ordenanças de Moisés; sou religioso, porque fui criado e educado num lar
religioso.” A explosão desta franqueza fez vibrar mais ainda a fibra
afetiva do Mestre, que sentiu profunda simpatia por aquele homem, conforme
no-lo refere o segundo evangelista (Cap. X, 21)
Achava-se Jesus diante de um caso singular:
o de um homem religioso que,
julgando
insuficiente e estéril a devocionalidade em que vivia, pede instruções ao “Bom
Mestre”, ao mesmo tempo que confessa haver praticado tudo quanto é necessário
para merecer a redenção!
Se era verdade que “tudo isso tinha guardado desde a mocidade” porque a sua alma
continuava em inquietação? O Divino Mestre julgava e julga o que é justo, sem
se deixar impressionar pelas aparências (João VIII, 24). Ante a resposta do
homem a quem votava simpatia, Jesus podia ter respondido imediatamente: “Não é
verdade que tens observado e praticado tudo isso.” Porém, consistindo a sua
missão em levar os homens a descobrir por si mesmos a verdade; em apelar para a
boa vontade do homem, no exercício pleno do seu livre-arbítrio; em fazer com
que os homens procurem enxergar, para remove-la, a pedra de tropeço que lhes
embaraça os passos no caminho das virtudes – Ele, em tom suave, doce, calmo,
sereno, afetuoso, responde ao
interlocutor: “Pois bem, meu amigo, uma vez que confessas amar a teu próximo
como a ti mesmo, se tens a suprema ventura de fazer por teu semelhante tudo
quanto desejarias que e ele fizesse por ti, então convido-te a considerar o
seguinte, baseado nas tuas próprias palavras: quer esteja em tuas mãos a
riqueza, quer esteja nas de teu próximo, é a mesma coisa: transfere, pois, para
os pobres, que são o teu próximo,
toda a riqueza que possuis. Feito isto, ainda não estás perfeito, nem terás agora mesmo a posse da bem-aventurança eterna
mas ... vem... e segue-me.
Jesus conhece os pensamentos e pesa as
intenções. Devia ter sentido profunda
tristeza
diante do quadro exposto a seus olhos: um homem religioso e franco,
confessando
fome de verdades salvadoras, prefere
as riquezas transitórias e
insubstanciais
deste mundo, aos tesouros permanentes que dilatam os horizontes da Fé, que
clareiam nas visões da Esperança, que
avivam as doçuras da Caridade!
O homem
rico, com suas convicções escudadas na justiça da Lei (dispensação
mosaica), desprezara o amor da Graça (dispensação messiânica). Estava, pois, em
terreno falso. A piedade, tal como a exemplificavam os doutores da lei,
assegurava uma retidão adquirida por privilégio
de casta, de linhagem, de eleição, como no-la ensinam os credos
dogmáticos, com a repulsiva, por irracional, doutrina da predestinação eterna.
A observância eterna das ordenanças do
Pentateuco, com cerimonialidade, ritualizada pelo sacerdotismo levítico, era
suficiente para tornar “perfeito” o homem, no entender do povo. Era o culto das
exterioridades. Nascido, criado e educado nessa escola, o homem rico do
episódio desconhecia o “amarás a teu
próximo como a ti mesmo”, de Moisés. (Lev, XIX. 18). E Jesus encontrou esse
preceito, não só mergulhado na sombra da piedade externa, como principalmente
sufocado pelo frondeado formalismo do culto a Jeová, formalismo apostrofado
pelo flamejante: Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo
da hortelã, do endro e do cominho (de
coisas sem importância, por insignificantes), e deixais as coisas mais importantes da lei: a
Justiça, a Misericórdia e a Fé, que coses um mosquito e engolis um camelo.
Entendia o crente apatacado que o “não faço isto nem aquilo”, semelhante
à
confissão do fariseu no pé do publicano, no templo, era bastante para cumprir a
lei. Plasmado na face negativa de suas convicções vacilantes, desprezava a face
positiva, que é a efetivação em fatos daquele: “Fazei aos homens o que quereis que eles vos façam, porque esta é a lei
e o profetas”; na frase terminante do Divino Mestre. Rastejava-se na
poeirenta estrada do fariseu que, em plena oração dirigida ao trono do Amor,
não hesitava em banhar a sua prece com o veneno da calúnia, qualificando de
ladrões, injustos o adúlteros os seus semelhantes, de quem, talvez, jamais
houvera recebido uma ofensa sequer.
O crente rico estava, pois, sob o império
do frio literalíssimo, desconhecendo
o
espírito que anima o “amor a Deus sobre
todas na coisas e ao próximo como
si mesmo”. Tinha a ideia, mas não o sentimento do amor. Se assim não fora, teria obedecido a Jesus
quando lhe declarou: “Falta-te ainda uma
coisa para enxergares o caminho da vida: desfaze-te do falso tesouro que
absorve todo o teu coração, toda a tua alma, toda a tua inteligência, todas as
tuas forças.”
*
Nicodemos, com ser mestre em Israel e
principal entre os Judeus, também
tinha
grande embaraço a vencer no caminho da redenção: o falso e pernicioso
preconceito
de linhagem. Julgava-se digno do reino
dos céus pelo fato de ser filho do povo judeu -o povo considerado eleito, escolhido, preferido, predestinado para a Glória. Fazia parte
da seita mais segura da religião, na
pretenciosa expressão do ardoroso Paulo ( At. XXVI, 5). Reconhecia em Jesus o “Mestre vindo de Deus”. Não sentia porém,
a vibração da verdade a impulsionar-lhe os passos à luz do dia: buscou o Mestre
às escondidas, furtivamente, embiocado no manto da noite. É que temia o
convencionalismo social, os preconceitos de casta, a crítica de seus colegas...
A saudação que fez ao Mestre: bem sabemos
que és vindo de Deus, ouve esta resposta. “Em
verdade, em verdade te digo que aquele que não tornar a nascer não pode ver o
Reino de Deus.” (ALMEIDA, ed. de 1894).
Ferido em sua presunção e na ideia
preconcebida de que, por ser príncipe entre os Judeus, estaria salvo, ouve, em
seguida, estas palavras: Não te maravilhes do que te disse: necessário vos é
tornar a nascer. Ainda abroquelado com o falso conceito de um Deus regionalista
e parcial, recebeu esse fariseu ondas de luz em sua alma e convenceu-se de que
era mister tornar a nascer em
condições favorecidas pela humildade, a fim de reparar a grosseria do erro em
que militara, pregando ao povo que Deus só atendia aos filhos da Judeia. Não
perguntou: “Que me faltas, ainda?” É que lhe fora suficiente o abc apresentado, e que se referia u um
fato natural na Terra, “coisa terrena”
na expressão do Mestre: a reencarnação.
Neste sintetismo anteviu Nicodemos o
transcurso de uma toda existência,
compreendeu
qual é a finalidade da obra da Criação: aperfeiçoamento “Sede perfeitos como
perfeito é vosso Pai que está no Céu. E foi-lhe proveitosa a lição que não
solicitara. Diante da furiosa atitude de seus colegas, que exigiam, mancomunados
com os pontífices, a prisão de Jesus, ergue-se a voz firme de Nicodemos que
estribado nas ordenanças de Moisés, interroga: “Porventura condena a nossa lei
a um homem, sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?” [João, VII,
51.) Eram as vibrações da Justiça e da Misericórdia e da Fé, que o novo
discípulo não podia esconder, porque “a
boca fala o de que está cheio o coração.”
*
Zaqueu, sem revelar sabedoria ou
ignorância, é visitado pelo Divino Mestre. A presença da Verdade viva em seu
lar foi bastante para operar grande revolução em seus sentimentos. Lembrou-se
logo do seu próximo, dos seus semelhantes, a quem não só não amara, como ao
contrário, prejudicara. E Jesus não lhe prescreveu absolutamente condições para
ser considerado digno do Reino: “Este
também é filho de Abraão!” Porque?
Di-lo eloquentemente a oração que proferiu diante do Mestre.
- O homem
de qualidades, Nicodemos e Zaqueu, espelham nitidamente as classes em que
se dividem os homens religiosos. O primeiro, espírito religioso, obediente ao
dogmatismo ritualístico, firmara a sua crença na letra da lei, excluída a
prática de boas obras, consoante o procedimento que revelou, voltando as costas
a Quem doutrinária: “Assim luza a vossa
luz de ante dos homens; que eles vejam as vossas boas obras, por meio das quais
glorifiquem a vosso Pai que está no Céu.”
O segundo, iluminado pelas palavras do
Mestre, nada alegou nem trombeteou
as
suas convicções religiosas. Em momento crítico, quando os outros discípulos
emudeciam ante a presença dos perseguidores da Verdade, com os fariseus e os pontífices
à frente - sem mais olhar para as exterioridades, nem para o seu radicado exclusivismo
sectarista; esquecendo e mesmo desprezando os preconceitos sociais, rompendo
com o paralisante tradicionalismo predestinista da casta de que constituíra
grande expoente – defende o Mestre e acusa os seus ex-companheiros, que queriam
fraudar a lei de Moisés, condenando um homem sem a necessária prova da sua
criminalidade.
O terceiro, desprezado pelos Judeus por ser
pagão e por pertencer à odiada
casta
dos publicanos, não revelou o seu credo religioso. Era o alvo focalizador das antipatias
dos supostos predestinados de Jeová. É um vulto cujos passos foram referidos
pelos Oráculos eternos, para serem imitados por seus pósteros. Escutemo-lo. Enquanto, do lado de fora, a
turba farisaica comentava com azedume a entrada de Jesus na casa desse desprezível
pagão, eis que, assinalado o contraste entre o procedimento do dono da casa e a
conduta dos espreitadores, o Divino Mestre exclama: “Hoje entrou a salvação nesta
casa! Porque? Responde o coração do publicano: “Eis que darei a metade dos meus bens aos pobres e restituirei quatro vezes
mais as importâncias em que lesei a meus semelhantes, quando abusivamente lhes
cobrei os impostos, agravados pela minha rapinagem.”
*
Não é o quadro de todos os tempos e de todas
as gerações? Aí estão, mergulhados em dúvidas e angústias, os profitentes dos credos
dogmatizados, a, confessar a insubsistência de suas esperanças, vaporosas e fugidias...
Aí vemos a estagnação da igreja protestante,
após ininterrupto trabalho de
Setenta
anos, ao lado da igreja romana, com o seu domínio quatro vezes secular.
Dos seminários desertam aspirantes, por não
poderem suportar o malabarismo
de
exegeses, de par com o pueril idealismo da fraseologia oriental. Esvoaça por
sobre a cristandade misterioso anseio pelas eternas verdades, asfixiadas pelo feudalismo
teológico das confissões sectárias que, pretendendo o monopólio de toda a Verdade,
invalidam totalmente o direito do livre-exame, hoje medicação para uso externo.
Examinemo-nos. Que nesse exame não sejam
encontrados resquícios do funesto exclusivismo que ensopou de sangue as páginas
da História a começar do derramado pelos erros teológicos do grande reformador
francês.
A pergunta do mancebo rico sobre quais seriam os mandamentos cuja observância
tornaria o homem digno da entrada no Reino, responde Jesus, taxativamente,
com seis mandamentos: “Não mateis, não furtes, não adulteres, não mintas (face
negativa), honra teus pais, e amarás o teu próximo como a ti mesmo (face
positiva). É o desdobramento daquele outro mandamento, dirigido às multidões: “Fazei aos homens o que quereis que eles voa
façam, porque esta é a lei e os profetas.”
“Amai, pois, a vossos inimigos; fazei bem e emprestai, sem daí esperar nada, e tereis muito avultada recompensa, e sereis
filhos do Altíssimo.”
Sim. A paternidade de Deus exclui terminantemente
ritos e cerimônias: exige a atuação constante do amor na prática do bem, O amor
ensinado e exemplificado pelo Mestre não pode demarcar fronteiras em seus domínios.
“Nisto conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”
Que a voz de “Quem veio, não para condenar,
mas para salvar o mundo”, nos desperte a consciência, a fim de que atendamos a objeção
que nos é feita hoje:
Falta-te
ainda uma coisa”. Esta condição foi apresentada, não somente ao mancebo
transviado, mas a todos os que lhe conheceram a história.
“A Religião é antes sentimento que conhecimento. Nenhum homem é condenado por não saber, mas sim por deixar de sentir, porque o livro da sabedoria
é um livro geralmente fechado, mas o
livro do sentimento é um livro universalmente aberto. Não é dado a todos possuir os segredos da ciência, mas sim as doçuras
do sentimento, cujos tesouros estão à vista de todas as criaturas,
espalhados no universo pela mão da misericordiosa Providência. O sentimento é tudo e por isso ele está ao alcance de todos. O sentimento é o amor e o amor é
a lei. O amor cobre e multidão dos pecados, porque é a chama que purifica e o
bálsamo que consola.” São palavras que se dissolvem suavemente em nossa alma,
num caldeamento cuja temperatura é medida pelo sentimento de fraternidade e de
solidariedade desejado pelo Mestre.
“O galardão anda comigo para recompensar a
cada um, segundo as suas obras”. Aquilo que o homem semear, isso também
colherá.”
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