Será crime a
caridade? Parte 1
Reformador (FEB) Dezembro 1942
Jesus, reunindo os doze
discípulos, deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expelirem e para
curarem todas as doenças e enfermidades, relata Mateus, no cap. 10 do seu
Evangelho. Disse-lhes o Senhor: "E pondo-vos a caminho pregai, dizendo:
que está próximo o reino dos céus.
Curai os enfermos, ressuscitai os
mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios; dai de graça o que de graça
recebestes".
Mais tarde, nas últimas instruções
que dava aos seus discípulos, Jesus de novo afirmou: "Em verdade, em
verdade vos digo que aquele que crê em mim fará as mesmas obras que eu faço e
fará outras ainda maiores". (São João, cap. 14, v. 12). O fato é que os
discípulos, pondo-se a caminho, pregavam os ensinos do Cristo e confirmavam a
sua pregação com as curas que produziam, curando toda classe de enfermidades,
impondo as mãos sobre os doentes.
E não se diga que Jesus tenha
escolhido os seus discípulos entre a elite da sociedade israelita; eram eles
homens iletrados, pescadores que ganhavam a sua vida pescando e vendendo o
produto do seu labor.
Além dos doze, Jesus escolheu
outros 70 entre a turba que o seguia atônita e mandou-os dois a dois e ordenou
que fizessem o mesmo que os 12 e quando eles voltaram, muito alegres, disseram:
"Senhor, até os mesmos demônios se nos
submetem em virtude do Teu nome".
Jesus lhes respondeu: "Eis aí
vos dei eu poder de pisardes as serpentes, e os escorpiões, e toda a força do
inimigo; e nada vos fará dano. E contudo, o sujeitarem-se-vos os espíritos não
é de que vós vos deveis alegrar, mas sim deveis alegrar-vos de que os vossos
nomes estão escritos nos céus". E exultando disse: "Graças Te dou,
Pai, Senhor do Céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e
entendidos, e as revelaste aos pequeninos". (São Lucas, cap. 10).
Ainda disse Jesus, momentos antes
de sua ascensão: "E estes sinais seguirão aos que crerem em mim:
Expulsarão os demônios em meu nome; porão as mãos sobre os enfermos e os
sararão". (São Marcos, cap. 16, v. 17 e 18).
Há quase 80 anos, desde a introdução
do Espiritismo no Brasil, tem-se pregado o Evangelho em espírito e verdade e
confirmado a pregação com as curas de milhões de enfermos, dando-se de graça
tanto as receitas, como os remédios, e a mão que traça estas linhas, por graça
de Jesus, tem dado vista a cegos e curado milhares e milhares de doentes com a
imposição das mãos, seguindo o preceito de Jesus. Milhares de outros têm feito
o mesmo em todo o Brasil.
Não sei com que intuito se tem
procurado, e procura-se cercear a prática dessa caridade cristã que a tantas
criaturas tem felicitado em todo o território brasileiro.
O Sr. presidente da República que
tão sábias providências tem sabido tomar para favorecer os desprovidos da
sorte, os necessitados de socorro, a classe que trabalha, que luta para criar a
sua prole, certamente não teve ainda ocasião de se inteirar do que se passa com
referência à religião espírita e as dificuldades que se antepõem à sua livre
prática.
Apelamos, pois, para S. Excia.,
para que nos seja dada a mesma liberdade de que gozam todas as outras religiões
no nosso pais. Que nos seja concedida a liberdade de "dar de graça o que
de graça e por acréscimo, Nosso Senhor Jesus Cristo nos outorga".
Inserto no "Correio da
Manhã" de 6 do corrente como objeto da "Crônica Espírita" que
esse diário costuma publicar aos domingos, o artigo que vimos de transcrever é
da lavra do velho trabalhador da Seara de N. S. Jesus Cristo, Fred Figner, que,
há muitas dezenas de anos, como médium curador, tem posto os dons mediúnicos
que o Senhor lhe outorgou ao serviço do bem, curando um sem número de irmãos
seus, presidiários, como ele, da carne, aliviando os sofrimentos de inúmeros
outros e iluminando a muitos que, já evadidos dessa prisão, ainda escravizados
se conservam ao mal, que é filho da ignorância e do erro, sempre fiel, o
caridoso obreiro, ao preceito evangélico que manda se dê de graça o que de
graça é recebido da munificência do Pai celestial.
Assim, a frase interrogativa que
ele tomou para epígrafe do seu articulado não significa, nem poderia
significar, é bem de ver-se, que no seu espírito paire qualquer dúvida sobre a
legitimidade da prática da caridade cristã, sob todos os seus aspectos. Fora
absurdo supô-lo, por um instante sequer, pois ninguém, melhor do que ele, sabe
quão profunda e absolutamente verdadeira é a sentença que serve de lema à
Doutrina Espírita, estabelecendo que ela é a mesma doutrina do Crucificado, ou
do puro Cristianismo. O que a sua interrogação exprime, legitimando-se
plenamente, é antes um brado de angústia da sua alma de crente sincero,
angústia de que também a nossa participa, diante de circunstâncias e
conjunturas que somente se justificariam, ou, pelo menos, explicariam, se de alguma
forma se pudesse capitular de delituoso o exercício da caridade.
Entretanto, por muito que repugne
à razão e a consciência desanuviadas admiti-lo, de tal natureza se tornou a
mentalidade geral dos homens, no seio das sociedades ditas civilizadas e qualificadas
de cristãs, que unicamente pela afirmativa pareceria possível responder-se à
pergunta com que o nosso estimado companheiro de labor cristão encimou o seu
artigo. Dir-se-ia, com efeito, que, por se haver tornado substancialmente
cética e materialista, entremeada exclusivamente de egoísmo, de orgulho, de
vaidade, de superlativa presunção, aquela mentalidade acabou, como aliás o
estão revelando os fatos que há três anos se desenrolam em quase toda a
superfície do planeta, por escravizar inteiramente as almas aos interesses mais
subalternos e às ambições mais grosseiras, a uma cupidez tal, que as desvaira e
cega para a visão do que quer que não esteja no âmbito da mais sórdida
materialidade.
Ora, a caridade é filha
primogênita do amor, sentimento de ordem puramente espiritual, composto de
devotamento, de desinteresse, de abnegação, de renúncia, numa palavra: de
altruísmo integral e, assim sendo, desde que sentimentos opostos ao amor são os
que dominam o coração do homem, a verdadeira caridade deixa de ser compreendida
o termo continua de uso corrente, mas com uma significação totalmente
abastardada, pois que a caridade passou a consistir em dar esmolas e em fazer
donativos mais ou menos vultosos, com maior ou menor ostentação, sempre de modo
a granjear para a vaidade o prêmio que esta vive a buscar ansiosamente: os
elogios, os louvores mundanos, as honras de benemerência terrena. Ninguém mais
portanto, entende, nem pode entender que a caridade seja qual a definiu o
Apóstolo Paulo, dizendo, no capítulo 13 da sua 1ª Epístola aos Coríntios:
"Se eu distribuir todos os meus bens para
sustento dos pobres e se entregar o meu corpo para ser queimado, se todavia não
tiver caridade, nada disso me aproveita.
A
caridade é paciente, é benigna, não é invejosa, não obra temerária, nem
precipitadamente, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus
próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a
injustiça, mas folga com a verdade; tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo
sofre. A caridade nunca jamais há de acabar ou deixem de ter lugar as
profecias, ou cessem as línguas, ou seja abolida a ciência".
Daí, necessariamente e
logicamente, o entender-se que faze-la de maneira diversa daquela isto é, dando
esmolas com ostentosa retumbância; faze-la, procurando, sem alarde, aliviar os
sofrimentos aos enfermos do corpo, levantando o ânimo aos que se deixaram
abater, levando o conforto moral aos desalentados e desesperançados, libertando
de seus perseguidores invisíveis os possessos do "demônio",
orientando, por meio da prece, para a fonte da misericórdia inesgotável, o
pensamento e o coração do que se revolta e blasfema, é prática indébita da arte
de curar, quando não simples curandeirismo muito embora não haja nesse proceder
o mais pequenino laivo de dolo, que era, ao tempo das velharias obsoletas, o
que constituía a figura jurídica (cremos ser assim que se dizia) característica
da contravenção ou do delito.
Dado isso, chega-se, de dedução em
dedução, à conclusão lógica de que exercer a caridade, como a exercia Jesus,
cuja vida foi toda ela um ato de caridade, e mandava que os seus seguidores de
então e de todos os tempos a praticassem, é tão somente exercitar o
curandeirismo, donde o corolário tremendo, mas irrecusável, de que o Cristo de
Deus, o Messias prometido e mandado ao mundo, foi apenas o mais eminente
curandeiro que a terra já conheceu, não sendo também outra coisa os seus
apóstolos, os seus discípulos e todos os cristãos primitivos, cuja fé e
humildade lhes permitiam fazer o que os apóstolos e discípulos faziam.
É possível e provável, quase certo
mesmo, que nos lembrem, ou apresentem, como objeção ao que vimos de dizer, a
divindade de Jesus, divindade que não só lhe facultava operar a série imensa
dos "milagres" que produziu, como outorgar aos seus escolhidos a
capacidade de igualmente os operar. Não colhe, todavia, a objeção.
Em primeiro lugar, a sua
divinização foi obra de cunho meramente humano, legitimada, até certo ponto,
pela impossibilidade em que se encontravam os homens, devido ao enormíssimo
atraso das inteligências de apreenderem e compreenderem as causas determinantes
dos efeitos que observavam. Tais efeitos, então, tiveram que ser considerados
"milagres" e como só uma divindade poderia realizar coisas que pelo
seu aspecto de prodígios extraordinários pareciam inteiramente fora para sempre
da alçada das criaturas, a deificação daquele que as realizava em tão larga
escala e só pelo poder da sua vontade foi a consequência natural. Progredindo,
porém, a inteligência do homem, por virtude da lei universal da evolução,
semelhante deificação perdeu a sua razão de ser e se acha hoje abolida
completamente, para os que têm olhos de ver e ouvidos de ouvir, pela
compreensão, em espírito e verdade, graças ao advento do Consolador prometido,
dos Evangelhos, onde não há uma palavra do Cristo de Deus, autorizando a
divindade que lhe atribuíram; onde, ao contrário, superabundam, conforme se
acha demonstrado, à saciedade, em Allan Kardec e em Roustaing, as com que Ele
antecipadamente infirmou, privando-a de qualquer fundamento durável, a que a
sua presciência lhe mostrava de antemão que viriam a atribuir-lhe, como
efetivamente aconteceu.
Em segundo lugar, tanto não era na
qualidade de Deus que Ele praticava a caridade, como costumava praticá-la, com
as características que mais tarde Paulo, por Ele inspirado, lhe assinaria, que
declarou aos que lhe ouviam as prédicas: fareis as obras que eu faço e outras
ainda maiores, dirigindo-se, não somente aos discípulos ou aos que no momento o
rodeavam, mas aos que então e de futuro guardassem a sua palavra, isto é, lhe
seguissem os ensinamentos, que Ele próprio resumira num mandamento único, o do
amai a Deus sobre todas as coisas, amando ao próximo como a vós mesmos.
O que acabamos de expender basta,
parece-nos, para corroborar o que disse o irmão e amigo autor do artigo que nos
moveu a traçar estas linhas e para lhe testificar a nossa solidariedade no
doloroso espanto que o induziu a formular a interrogação com que intitulou o
seu escrito. Entretanto, convém atendamos ainda a uma, pelo menos, das
contestações que o espírito de seita não se furtará a contrapor-nos.
Fá-lo-emos, contudo, de outra vez, para não alongarmos demasiado estas
observações que, apesar de sumárias, já alcançaram excessiva longura...
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Será crime a
caridade? Parte 2
Reformador (FEB) Janeiro 1943
Concluímos, no último número do
"Reformador", as primeiras observações que nos sugeriu o artigo ali
transcrito, que o estimado e operoso confrade Fred Figner publicara, sob o
título acima, no "Correio da Manhã", dizendo que ainda nos cumpria
atender a uma, pelo menos, das contestações que o espírito de seita nos
anteporia. Consideremo-la.
Essa contestação é a de que o
poder ou a faculdade de produzir as obras que Ele produzia, praticando a
caridade-amor, o Divino Mestre somente o outorgou aos que iam ser os
continuadores da sua missão e aos sucessores destes últimos, consta, antes de
tudo, notar que Jesus, em nenhuma ocasião, falou sequer em sucessores especiais
para os apóstolos e para os primeiros discípulos. A instituição de tais
sucessores equivaleria a ter Aquele que viera fundar a Igreja Universal, cujo
templo é o nosso planeta, cujos fiéis são todos os que praticam a sua moral
simples e cujos sacerdotes são todos os de coração mais ou menos puro, que
arrebanham os Espíritos transviados, para reconduzi-los ao divino redil,
fundado uma igreja particularista e sectarista, qual a que fundaram,
desprezando-lhe os ensinos, os que, ex-autoritate própria, se constituíram
únicos herdeiros dos apóstolos. Absurdo dos absurdos.
Essa pretensão, ao contrário, Ele
a deixou prévia e decisivamente invalidada por várias formas e em diversas
circunstâncias. Fê-lo, quando declarou: Não são os que dizem: Senhor! Senhor!
os que entram no reino dos céus, mas exclusivamente aqueles que fazem a vontade
de meu Pai que está nos céus. Fê-lo, igualmente, quando, respondendo aos que
lhe diziam que sua mãe e seus irmãos o chamavam, disse: "Quem são minha
mãe e meus irmãos?" E acrescentou: "Minha mãe e meus irmãos são todos quantos fazem a vontade de meu Pai
que está nos céus" querendo de tal modo significar que somente se lhe
acham ligados pelos laços do amor fraternal únicos e inquebráveis, compondo a
sua família espiritual, que somente pertencem à sua Igreja os que fazem a
vontade do Pai celestial. E qual é a vontade que, cumprida, estabelece a
ligação espiritual com Jesus? Ele desde logo aboliu quaisquer possíveis dúvidas
a respeito, ao declarar que toda a lei e os profetas se contêm neste
mandamento; amarem a Deus as criaturas de Deus, amando-se reciprocamente umas
às outras.
Há, no entanto, ainda mais, que
não permite se mantenha de pé por um instante a contestação que examinamos,
como sendo a que provavelmente o sectarismo religioso apresentará, no
pressuposto de que tão só aos que se arvoraram em herdeiros dos apóstolos é lícito
possível realizar as obras que Jesus obrava e os apóstolos, depois, produziram,
isto é praticar a caridade, sem limitação de espécie alguma, em observância do
mandamento que acima lembramos.
Há, com efeito, no Evangelho de
Marcos (cap. 9, v. 37-40), esta passagem
eloquentíssima:
"Disse-lhe em seguida João: Mestre, vimos um homem que expulsa os
demônios em teu nome, mas que não te segue. Nós lho proibimos. Jesus disse: Não
lho proibais, porquanto ninguém há que, tendo feito um milagre em meu nome,
possa depois dizer
mal
de mim, visto que quem não é contra vós é por vós; e quem quer que em meu nome
vos dê de beber um copo d’água, por serdes do Cristo, não perderá, eu vo-lo
digo em verdade, a sua recompensa."
Estas palavras que, pelo seu largo
alcance e profunda significação, merecem estudadas detida e pormenorizadamente,
conforme o faremos mais tarde, se Deus no-lo permitir, cortam cerce a
contestação ou alegação que vimos apreciando, pois que firmam, como verdade
insofismável, que a qualquer filho de Deus é dado fazer as obras que Jesus
fazia, operando prodígios de caridade, desde que seja seu discípulo, isto é,
haja tomado sua cruz para segui-lo, nele deposite fé viva, firmemente confie no
seu amor e, humildemente submisso aos ensinos do seu Evangelho, obre sob o
influxo desse sentimento, que teve nele a mais sublimada personificação entre
os homens.
Do que deixamos expendido,
forçosamente se há de concluir que exercer a caridade, curando os enfermos por
todos os meios de que se possa dispor, expelindo os "demônios",
reconfortando os desalentados, desentrevando as consciências, iluminando com a
luz da verdade evangélica os entendimentos, restituindo fé aos que a perderam
ou a tenham vacilante, dando, em suma, de beber um gole da água viva que mata
toda sede d’alma, aos sequiosos de justiça, de liberdade, de paz e de ânimo
para a difícil jornada da redenção, não representa privilégio de quem quer que
seja, ainda que o consagrem as leis humanas e os cânones religiosos.
Nada obstante, como, aliás,
fatalmente havia de acontecer e já o indicavam os próprios acontecimentos que
culminaram no sacrifício do Gólgota, surgiram igrejas, declarando-se únicas
depositárias da palavra do Cristo, únicas capacitadas para interpretá-la, mesmo
quando de meridiana clareza, únicas cujos fiéis se achavam habilitados a
reproduzir as obras do Cristo, a praticar a caridade como Ele exuberantemente a
praticou, certas de que, para assim procederem, haviam conseguido realizar a
transação, ou que outro nome tenha, que não logrou levar a melhor aquele
personagem de que falam os Atos dos Apóstolos e que pretendeu obter destes
últimos, por preço que lhe parecia bastante elevado, o dom de sarar os doentes,
de dar vista aos cegos, de restituir os movimentos aos paralíticos, de limpar
os leprosos.
Os fatos, porém, se encarregaram,
para logo e através dos séculos, de abater tão injustificável pretensão, de
mostrar que semelhante transação nenhum êxito alcançara, deixando prognosticar
que aos que intentarem efetivá-la sucederá, se já não sucedeu, o que se
verificou com o personagem a que vimos de aludir e que, tendo ouvido a resposta
de Pedro à sua proposição, caiu fulminado. De fato, salvo algumas raras figuras
eminentes, de legítimos cristãos, que afloraram, de tempos a tempos, no seio
delas, para não deixarem que em completo olvido mergulhassem os ensinamentos do
livro da vida, o que se há visto é que os demônios zombam dos hissopes (é,
provavelmente, a manjerona, um pequeno arbusto) e da água benta e que os
enfermos, na sua imensa maioria, nenhum alívio logram da ação dos que se dizem
sucessores dos apóstolos.
Nem outra coisa poderia ocorrer,
porquanto as obras a que se referia o Divino Mestre declarando: fareis as que
eu faço e outras ainda maiores, somente sob a égide do Cristo podem fazer-se,
ou, seja, com o espírito da doutrina evangélica. Ora, tendo-se divorciado sem
tardança desse espírito, é claro que jamais poderiam as igrejas terrenas obrar
em nome do Cristo de Deus.
Por outro lado, divorciados do
espírito do vero Cristianismo, onde tudo tem que ser amor e, por conseguinte,
devotamento, abnegação, renúncia, desprendimento dos bens terrestres,
sacrifício, empolgou-as dominante o espírito de seita que é cego, fanático, intolerante,
porque sempre voltado para os interesses materiais, e os que as constituíram se
Identificaram de pronto com aqueles fariseus a cujo respeito ponderava Jesus que não entram e não consentem que os outros entrem, pelo
que acrescentava, serão os últimos a entrar.
Evidenciado fica assim que, do
ponto de vista religioso, o tratamento de enfermos, com desinteresse absoluto,
por exclusivo amor do bem, mediante ou não a aplicação de medicamentos
indicados por inspiração de benfazejos Espíritos do Senhor, é ato de pura
religião, tomado este termo em sua mais ampla e lídima acepção, porque é ato de
fé e humildade, praticado sob o influxo das virtudes que caracterizam o cristão
em Jesus Cristo. Essas virtudes vedam ao praticante da caridade, que a todas as
demais sobreleva, estabelecer distinção entre ortodoxos e heréticos, entre
sábios e ignorantes, entre pobres e ricos, pois, observando-os pelo prisma
dessa virtude, ele nos outros homens somente vê irmãos seus, porque filhos do
mesmo Pai, que apenas os distingue pelo grau de progresso moral realizado e de
cuja misericórdia, conseguintemente, pela só razão de ser infinita, nenhum se
acha excluído.
Daí o poder afirmar-se que, como o
proclama o Espiritismo, resumindo toda a Doutrina Cristã, sem caridade não há
salvação, ou, por outras palavras, não há conquista da vida eterna, que,
entretanto, todos têm de alcançar mais cedo ou mais tarde e que, segundo a
definiu Jesus, é a vida do Espirito que adquire, pela perfeição moral, o
conhecimento de Deus e nele se integra.
Acima de tudo, portanto, o que
cumpre ao homem, para viver como o quer Deus, aqui na terra e fora daqui, é
praticar de todas as formas e por todos os meios a caridade, uma vez que,
enfeixando num único mandamento, o do amor a Deus e ao próximo, toda a
legislação divina, o divino Mestre revelou e ensinou, exemplificando o seu
ensino, que o Pai de ilimitada bondade apenas prescreve a todas as suas
criaturas que o amem, demonstrando cada uma esse amor pelo proceder, para com
todas as demais, como se
diante de si o tivesse a Ele, necessitado de seu valimento.
Ulteriormente encararemos a
questão com que nos ocupamos sob outros aspectos, não menos importantes que ela
comporta.
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Será crime a caridade? Parte 3
Reformador (FEB) Março 1943
Apreciados, como aqui o têm sido,
à luz do Evangelho, entendido este, não segundo a letra, que agora mata, mas
segundo o espírito, que vivifica sempre, os fatos de cura mediúnica das
enfermidades físicas que atacam as criaturas humanas, por trazerem enfermas da
lepra do pecado suas almas; apreciados tais fatos, de modo geral, pelo prisma
sob que devem ser encarados, como simples, porém indeclinável obediência ao
princípio básico do Cristianismo do Cristo, o de que sem caridade não há
salvação, cremos que nem mesmo qualquer mentalidade, que porventura exista,
exclusivamente moldada em cânones sectaristas, ou em postulados, científicos
puramente materialistas, se julgara autorizada a responder pela afirmativa à
pergunta que o nosso companheiro Fred Figner tomou para epígrafe do seu artigo
e que mantivemos nestes por serem um desdobramento daquele.
Com efeito, nenhuma mentalidade
bastante equilibrada, que se caracterize pela clareza e segurança do
raciocínio, encontrará meios de contestar fundadamente que a prática da
caridade, da caridade cristã, que implica desinteresse, renúncia, abnegação, da
caridade estereotipada na parábola evangélica do Samaritano não está sujeita a
nenhuma sanção humana, nem, ainda menos, pode ser considerada o que as leis
humanas qualificam de contravenção.
Assim, claro é que também não pode
ser equiparada, por exemplo, à do curandeirismo que sempre se assinalou pela
aferição de lucros ou proventos pecuniários, a prática da caridade, conforme o
Espiritismo a concebe, em perfeita concordância com o que prescreve a doutrina
verdadeiramente cristã. Semelhante equiparação jamais lograria subsistir, não
somente por se não justificar de forma plausível, como porque se denunciaria
resultante de sentimentos e propósitos nada consentâneos com o espírito
realmente religioso, nem com o espírito realmente cientifico; como derivantes
de sentimentos e propósitos baldos da nobreza e elevação que dão cunho preciso
aos atos e atitudes que se inspiram no bem, que se orientam para o ideal de
justiça, de bondade e de paz, que as almas dignas acariciam e que só não atrai
as que o orgulho e o egoísmo incompatibilizaram com a tolerância, a
benevolência, a equanimidade.
Tampouco se justifica a condenação
da prática de que vimos falando e da doutrina que a ordena - o Espiritismo, por
constituir aquela e sanciona-la este uma invasão indébita e prejudicial do
campo da ciência, ou, mais exatamente, da ciência médica, a cujo cargo
exclusivo se acha, conforme o entendem muitos, a missão de combater as
enfermidades, de tratar por meio de medicamentos, os doentes do corpo,
livrando-os das suas doenças. A erronia dessa maneira restrita ou restritiva de
entender-se o problema da cura dos males físicos que atormentam os seres terrenos,
problema que se apresenta não sob uma apenas, mas sob múltiplas faces, que
todas precisam consideradas, porque não há dissociar do espírito o corpo, mero
instrumento seu, para só cuidar do último; a erronia desse modo de entender,
dizíamos, Jesus a deixou evidenciada quando, ao mandar que seus discípulos
fossem pelo mundo pregar o Evangelho do Reino, lhes pôs por dever precípuo a
prática irrestrita da caridade para com todos os seus irmãos,
determinando-lhes:
"Restituí a saúde aos doentes, ressuscitai os mortos, curai
os leprosos, expulsai os demônios", acrescentando a seguinte cláusula
insofismável: "Dai gratuitamente o que gratuitamente haveis
recebido." (Mateus, 10:8).
Essa cláusula ou condição envolve,
sem sombra de dúvida, a existência de alguma coisa por eles recebida. Que
seria? Alguma coisa que houvessem haurido da ciência ou do saber dos homens?
Não, de certo, visto que o divino Mestre e médico divino, se dirigia a
criaturas completamente desconhecedoras dessa ciência.
Logo, tratava-se de alguma coisa
provinda de mais alto, de fora do âmbito dessa ciência de fora mesmo da Terra.
Que poderia então ser senão um dom de Deus, uma faculdade que o Pai outorgara a
seus filhos, àqueles como aos demais, entre as diversas outras com que os dotara,
faculdade, portanto, natural, embora de especial natureza, atento o fim,
igualmente especial, a que deveria ser aplicada e especial ainda, porque
destinada a somente ser utilizada com proveito pelos que a empregassem com amor
e por amor? E caridade é amor.
Daí decorre, forçosamente, que
toda intervenção humana, tendente a impedir o exercício desse dom, em nome da
ciência terrena, que nada é em presença da do Criador do universo, equivale a
contrapor-se o homem a um desígnio da Divindade onisciente, à execução de uma
lei divina e, conseguintemente, natural. Acresce que o dom ou faculdade a que
nos referimos ultrapassa de muito o campo que a ciência terrestre labora,
porquanto, ao passo que esta se cinge a curar umas tantas enfermidades que
afetam o envoltório perecível do espírito, as que, após de porfiados trabalhos
de observação e experimentação e mediante inspirações e intuições vindas do
plano invisível, se tornaram, por assim dizer, familiares aos homens, o dom ou
faculdade sobre que discorremos vai ao ponto de facultar a cura dos leprosos, a
expulsão dos demônios (muitas vezes denominados no Evangelho "espíritos de
enfermidade") e a ressuscitação dos mortos, isto é, dos que os homens
consideram tais por se mostrarem com todas as aparências do estado de morte, ou
os a quem a medicina terrena se reconhece de todo impotente para restituir a
saúde.
É, pois, uma prescrição do médico
divino, que ninguém ousará ter como curandeiro, por não empregar meios
terapêuticos humanos no tratamento dos que buscavam o recurso da sua ciência
extraterrena, o que se contêm na sua ordenação àqueles que iam lançar por toda
parte as bases da universal Igreja Cristã, onde o culto se resume na prática
ilimitada da caridade por amor de Deus e do próximo, e iam, ao mesmo tempo,
proclamar c demonstrar que os que cressem na sua palavra de enviado do Pai
celestial fariam as obras que Ele fazia e outras ainda maiores.
Ora, dada a sua procedência, nada
poderá nunca prevalecer contra essa prescrição que, aliás, se acha implícita
naquele preceito máximo do amor ao próximo, como expressão do amor a Deus, que
é todo amor e bondade.
Quaisquer que sejam as restrições
que se ponham, em nome seja do que for, à prática do bem sob todas as formas
possíveis, e elas são infinitas, o que vale dizer ao exercício da caridade
cristã segundo a exemplificação do divino Modelo e dos que Ele prepôs à
disseminação imediata de seus ensinos, da doutrina que há de salvar das
abominações do erro e da mentira a pobre humanidade da terra, ainda tão infeliz
por escrava de toda casta de preconceitos, de toda sorte de ideias
preconcebidas e de
sectarismos contrários à razão, porque apenas inspirados pelo
orgulho e pelo egoísmo, que continuam a contar-se entre as mais graves e
funestas enfermidades do espirito; quaisquer que sejam os cerceamentos que se
criem à consciência e a fé dos que possuam o dom de Deus de que falou o
Redentor à Samaritana a beira do poço de Jacó e se sintam capazes de utilizá-lo
a benefício de seus irmãos, fim único para que lhes é outorgado, o conhecimento
da verdade as fará desaparecer, eliminando-as como árvores que o Pai não
plantou, de modo que apenas subsistam, sem que nenhuma obscuridade lhes empane
a refulgência, as palavras do Messias, respeito as quais disse Ele próprio que não
passariam, mesmo que passassem o Céu e a Terra.
Essa verdade é a que Ele
personifica e personificará para todos os tempos; é a que constitui a essência
e o fundamento das suas prédicas sublimes; é aquela a que se referia, rendendo
graças ao Pai por havê-la ocultado aos doutos e aos prudentes, incapazes de a
compreenderem e sentirem, e revelado aos pequeninos e humildes, aos
"pobres de espírito", do espírito do século, cuja preocupação maior
são os interesses mesquinhos da vida material; é a que se resume numa só
palavra, conforme Ele o testificou, a palavra - amor. É a verdade que a
terceira revelação, a revelação espírita, o Espiritismo, veio colocar de novo
em foco, desentranhando o puro Cristianismo do amontoado imenso de
interpretações grosseiramente errôneas, de falseamentos intencionais, de
interesseiras deturpações e invenções flagrantemente incompatíveis quer com o
espírito, quer com a letra dos ensinamentos que o estruturam.
A dor e o sofrimento farão que
mesmo aos mais recalcitrantes ela se imponha, como todos os dias se vai impondo
a um número sempre mais avultado dos que até à véspera a repeliam em nome dos
princípios materialistas que adotavam, do espírito de seita que os dominava, ou
do desprezo que, tendo-se na conta de "espíritos fortes", votavam a
ideias que, segundo criam, somente em seres incultos e propensos às
superstições podiam encontrar agasalho.
Não são afirmações graciosas
estas, filhas da imaginação fantasista ou dos veementes anseios que arrebatam a
alma idealista por ver cumpridas em toda a sua extensão as sagradas promessas
que o amoroso Pastor meigamente ofereceu às suas pobres ovelhas, garantindo-as
feliz resultado aos diligentes esforços que empreguem por evadir-se da
misérrima condição a que se condenaram e por ascender à perene Bem aventurança
reservada a todos os que se tornam "filhos de Deus", depois de se
terem feito "filhos do pecado". São, ao contrário, afirmações
decorrentes da observação dos fatos que, embora multiplicando-se incessantemente,
ainda passam, em geral, despercebidos à maioria das criaturas, pelo viverem com
os olhos quase exclusivamente voltados para as coisas mínimas e insignificantes
que urdem a vida cotidiana.
Dentre eles, um se destaca,
ocorrido ultimamente, que, pelo seu alcance e expressividade, nos forra ao
trabalho de citar outros mais, que corroborem as nossas assertivas. Aludimos ao
de que tivemos conhecimento lendo a concludente monografia que publicou, faz
pouco tempo, o ilustre médico Dr. Mario E. Azambuja, um dos fundadores do Sindicato
Médico Brasileiro, personalidade de grande projeção nos meios cultos do nosso
país, especialmente nos círculos constituídos pelos profissionais da medicina,
onde alcançou muito renome e aos quais consagra, particularmente, o seu
trabalho.
Em próximo artigo (*) trataremos dessa monografia, tão
importante, quão singularmente curiosa e eloquente, com a qual, ao que se nos
afigura, seu eminente autor abriu aos descrentes, aos negadores, aos céticos,
convidando-os vivamente a perlustrá-la, uma senda por onde muitos deles não
tardarão a enveredar e que os conduzirá ao ponto que deixamos marcado acima - o
do conhecimento da verdade básica do Espiritismo, como fator de eliminação de
todas as prevenções e hostilidades que o Espiritismo ainda suscita e que dão
lugar a que ainda se cogite de cercear, aos seus adeptos, aos neo-cristãos, a
prática da caridade, qual ele a considera, encarece e preceitua.
(*) Não foi encontrada a continuação desse artigo em todo o
ano de 1943. Não foi encontrado o nome do autor deste artigo nas revistas.
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