terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Velhice do Padre Eterno

Resultado de imagem para camilo castelo branco imagens

"A VELHICE DO PADRE ETERNO"


(Estudo de Camilo Castelo Branco)

            Desde que o nervoso poeta iconoclasta Guerra Junqueiro atirou às ventanias tempestuosas da opinião pública vinte e oito sátiras com o rótulo de ‘Velhice do Padre Eterno’, as tais ventanias, irrompendo dos odres, começaram a rugir que o poeta é... ateu! Que o dissesse a cleresia, não havia que estranhar a sua boa fé nem a sua inteligência; mas que o digam, com gestos escandalizados, uns leigos - leigos em duplicado - críticos inéditos, mas mexeriqueiros esclarecidos de leituras teutônicas, isso é que me impele a defender, sem procuração, o poeta da calúnia de ateísta.

            Que é ser ateu? É negar a existência de Deus. E ser deísta que é? É reconhecer um Deus, confessa-lo, senti-lo como alma do universo.

            Guerra Junqueiro reconhece Deus tão explicitamente quanto seria necessário para impugnar os que o negam.

            Na ‘Velhice do Padre Eterno’ realçam os seguintes trechos de profissão de fé racionalmente deísta:

            Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal (1)
         
            (1)   Página 13
             ......................................

            Sim, creio que depois do derradeiro sono
            Há de haver uma treva e há a de haver uma luz
            Para o vício que morre ovante (triunfante) sobre um trono,
            Para o santo que expira inerme n'uma cruz. (1)

            (1)   Página 13
            .......................................

            O meu coração, puro, imaculado e santo
            Ia ao trono de Deus pedir, como ainda vai,
            Para toda a nudez um pano do seu manto,
            Para toda a miséria o orvalho do seu pranto,
            E para todo o crime o seu perdão de Pai. (2)

            (2)   Página 13
           
            A ciência devastou lhe muitas crenças infantis; mas o seu coração ainda se eleva suplicante ao trono de Deus:

            Tenho uma crença firme, uma crença robusta
            Num Deus que há de guardar por sua própria mão
            Numa jaula de ferro a alma de Lucusta (gafanhoto),
            Num relicário d'ouro a alma de Platão. (3)

                (3)   Página 12

            Apostrofando o núncio Mazella, define o seu Deus: 

            Esse Deus imortal, único, bom, clemente,
            O Deus de quem tu és o herege e eu sou o crente. (4)

            (4)   Página 110

            Considera Jesus Cristo uma luzentíssima e humana emanação da Divindade:

            .......................................................

            O semideus que está, como um farol de glória,
            No topo da montanha escalvada da história,
            Contemplando o infinito e iluminando a Terra,
            Essa alma que a flor da alma humana encerra.

            A página 210 (Nota), referindo-se ao Prometeu libertado, poema que há de seguir a Morte do Padre Eterno, escreve:

            “Terei os anos de vida necessários para escrever esse livro? Não sei, no entanto rogo a Deus do fundo da minha alma que me deixe terminar com um hino de esperança e de harmonia uma batalha de cóleras e sarcasmos.”

            Aqui temos, pois, um ateu que crê em Deus e na imortalidade da alma; crê na bem aventurança para os bons e nas penas eternas para os maus: pede a Deus a sua divina compaixão para os que padecem e para os que delinquiram; um ateu, finalmente, que recorre do fundo da sua alma a Deus pedindo-lhe vida para concluir a sua obra. Eu, realmente, não sei que mais podia reclamar o critério espiritualista! Quereriam talvez que o poeta escrevesse umas glossas (estrofes de sete versos) métricas aos Versos de S. Gregório?

*

            Guerra Junqueiro crê em Deus como Voltaire.

            - Pois o ímpio Voltaire cria em Deus? - exclamam o italiano Mazella e todos os mazellas indígenas.

            Eles sabem, quando muito, que Voltaire não podia dispensar um relojoeiro no relógio da fábrica do mundo. Não obstante, alcunham-no de ímpio. Pois o deísta Voltaire escreveu alguma coisa mais significativa da sua religiosidade:

 “Parece-me absurdo - disse ele - fazer depender a existência de Deus de A + B dividido por Z. Que seria do gênero humano, se fosse preciso estudar a dinâmica e a astronomia para conhecer o Ente supremo? Para ver o dia bastam os olhos: não se faz mister a álgebra.(1) No Dicionário Filosófico, -art. Religião, escreve Voltaire:

Meditava eu esta noite, absorto na contemplação da natureza, e admirava a imensidade, a rotação, as relações desses globos infinitos; e assombrava-me superiormente a inteligência que preside a esses vastos maquinismos. Dizia eu comigo: É forçoso ser cego para não sentir o deslumbramento deste espetáculo; é preciso ser estúpido para lhe não reconhecer um criador; é preciso ser sandeu (tolo) para o não adorar. Que preito de adoração devo eu prestar-lhe? Esse preito não será o mesmo em toda a extensão do espaço, visto que é o mesmo o supremo poder que igualmente impera nessa imensidade? Um ser pensante que habitasse uma estrela na via láctea não lhe deve homenagem idêntica à do ente pensante desta esferazinha em que habitamos? Se a luz é uniforme para o astro de Sirius e para nós, a moral deve ser uniforme. Se um animal sensível e pensante em Sirius nasceu do pai e mãe que se empenharam na sua felicidade, deve-lhes tanto amor como nós aqui devemos a nossos pais. Se alguém na Via Láctea encontra um indigente, e, podendo valer-lhe, o não socorre, delinquiu perante todos os globos.

(1) Correspond. t. IV. pag. 463.

            Voltaire não poderia compreender o Ente supremo que adorava; mas teve a mais vasta compreensão da caridade. Como testemunho da sua crença em um só Deus, mandou erigir uma igreja, com a seguinte inscrição: A DEUS CONSAGROU VOLTAIRE.

DEO
EREXIT
VOLTAIRE

            Aqui está um ateu como Guerra Junqueiro... sem igreja.

*

            Quanto à estesia (sensibilidade)  do título ‘A Velhice do Padre Eterno’, oferecem-se me alguns reparos de índole caturra e bastante acadêmica. Se o Padre é eterno, a eternidade do organismo consiste nos seus predicados refratários à ação desorganizadora do tempo que degenera o vitalismo da fibra. Eternidade e velhice são incompatíveis, inconciliáveis. Esta é a doutrina que me parece mais correntia em todas as Havanesas (natural de Havana) e em todos os gabinetes de leitura nacionais. Ora agora, se os preconceitos que Guerra Junqueiro satiriza pertencessem ao passado, e estivessem atualmente abolidos, poderia admitir-se alegoricamente que o Padre Eterno, a cuja sombra medraram esses preconceitos, envelhecesse; mas o eminente poeta satiriza-os porque vigoram e subsistem: logo, o Padre Eterno está robusto e muito vivedouro. 

            A velhice é doença ou não é? Se não é, por que nos ensinaram transcendentalmente o senectus est morbus? (a velhice é um pesado fardo) Se é, podemos conjecturar da juvenil saúde de Jeová no céu, pelas medranças (crescimento) salubérrimas da Estupidez na Terra. Cá em baixo, com o óleo dos maus fígados da hipocrisia dá-se ao espírito a robustez que o óleo dos fígados bons de bacalhau instila nos tecidos adiposos.

*

            O Padre Eterno, à vista de certas coisas e de certos sujeitos que o desacreditam, talvez desejasse envelhecer e morrer mas não pode. Há de viver eternamente como a Calípso de Fenelon que ne pouvait se consoler (estava inconsolável) etc.

            O livro do Sr. Guerra Junqueiro tem páginas que sobreviveriam ao Padre Eterno, se ele pudesse morrer. A Circular é a sátira mais original, mais risonha e perfeita do livro. As outras sugerem reminiscências de catapultas da antiga fábrica jogadas ao baluarte do Vaticano. A Circular tem uma espontaneidade humorística, genial e preeminente que, não pode ser confrontada; por que é única, estreme, e tecida de irrisórios elementos da vida moderna. Mais adiante vem uma página magnífica. É o exórdio da Sesta do Sr. abade que ressona em uma povoação assolada pela peste.

            Como o livro de Guerra Junqueiro tem sido para a imprensa nacional e brasileira uma  “roupa de franceses(coisa que não tem dono), também eu, filiado na ilustre malta de prezadíssimos ladrões e distintos colegas, trasladarei a primorosa página para o meu livrinho:

O meio dia bateu já na torre da Igreja.
A aldeia é silenciosa e triste. O sol flameja.
Entre o surdo murmúrio abrasador da luz,
Como num grande tomo, os grandes montes nus
Recosem-se, espirrando as urzes (tipo de planta) dentre as fragas (rochedo íngreme).

Um mendigo demente e coberto de chagas
Dorme estirado ao sol numa modorra espessa:
E o mosqueiro febril nas lepras da cabeça
     Enterra lhe zumbindo o cáustico das lanças.     

Andam só pela rua os porcos e as crianças.
Fome, desolação, luto, viuvez, miséria
Na aldeia morta. A terra esquálida e funérea
Em lugar das canções da abundância e do amor,
Do trigo verde a rir dentro da sebe em flor,
Calcinada e cruel cospe violentamente
Só o cardo torcido, epiléptico, ardente,
Rompendo duro e hostil, como a praga blasfema
Dum assassino quando um carcereiro o algema.
Secaram-se de todo as fontes e os regatos.
As cobras na aridez crepitante dos matos.

Silvam. O ar carboniza as árvores sequiosas
Numa rútila poeira intensa de ventosas.
Dos montes nus além nas secas epidermes
Os rebanhos são como um pulular de vermes.
E a abóbada do céu, concha de zinco em brasa,
Onde não passa a nódoa aérea duma asa,
lmplacável contempla a terra solitária,
Como um sultão fitando a carcaça dum pária!

            Isto é bom de lei.

            Neste livro, escrínio de pedraria preciosa, há umas joias fulvas (de cor avermelhada ou...) ruivas de cintilações ferinas como pupilas de feras assanhadas; há outras rubras como grumos de sangue a esvurmar (retirar pus espremendo) ou de feridas insanáveis no peito dos netos de Caim, filho de nosso avô Adão; há os reflexos glaucos (verde...) esmeraldinos que verdejam como as escoriações dos esfacelos (necroses) putredíneos; mas esses versos que trasladei e outros que o leitor sabe de cor, são punhados de límpidos diamantes sem as jaças da ironia, do ódio ou do sarcasmo. O grande artista, por vezes, esqueceu-se da sua tarefa de demolidor.

São Miguel de Seide, 1886

            Camillo Castello Branco

Nenhum comentário:

Postar um comentário