"A VELHICE DO PADRE ETERNO"
(Estudo de Camilo Castelo Branco)
Desde que o nervoso poeta iconoclasta Guerra Junqueiro atirou
às ventanias tempestuosas da opinião pública vinte e oito sátiras com o rótulo
de ‘Velhice do Padre Eterno’, as tais ventanias, irrompendo dos odres,
começaram a rugir que o poeta é... ateu!
Que o dissesse a cleresia, não havia que estranhar a sua boa fé nem a sua
inteligência; mas que o digam, com gestos escandalizados, uns leigos - leigos
em duplicado - críticos inéditos, mas mexeriqueiros esclarecidos de leituras
teutônicas, isso é que me impele a defender, sem procuração, o poeta da calúnia
de ateísta.
Que é ser ateu?
É negar a existência de Deus. E ser deísta
que é? É reconhecer um Deus, confessa-lo, senti-lo como alma do universo.
Guerra Junqueiro reconhece Deus tão explicitamente quanto
seria necessário para impugnar os que o negam.
Na ‘Velhice do Padre Eterno’ realçam os seguintes trechos
de profissão de fé racionalmente deísta:
Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal (1)
(1) Página 13
......................................
Sim, creio que depois do derradeiro sono
Há de haver uma treva e há a de haver uma luz
Para o vício que morre ovante (triunfante) sobre
um trono,
Para o santo que expira inerme n'uma cruz. (1)
(1) Página 13
.......................................
O meu coração, puro, imaculado e santo
Ia ao trono de Deus pedir, como ainda vai,
Para toda a nudez um pano do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto,
E para todo o crime o seu perdão de Pai. (2)
(2) Página 13
A ciência devastou lhe muitas crenças infantis; mas o seu
coração ainda se eleva suplicante ao trono de Deus:
Tenho uma crença firme, uma crença robusta
Num Deus que há de guardar por sua própria mão
Numa jaula de ferro a alma de Lucusta (gafanhoto),
Num relicário d'ouro a alma de Platão. (3)
(3) Página 12
Apostrofando o núncio Mazella, define o seu Deus:
Esse Deus imortal, único, bom, clemente,
O Deus de quem tu és o herege e eu sou o crente. (4)
(4) Página 110
Considera Jesus Cristo uma luzentíssima e humana emanação
da Divindade:
.......................................................
O semideus que está, como um farol de glória,
No topo da montanha escalvada da história,
Contemplando o infinito e iluminando a Terra,
Essa alma que a flor da alma humana encerra.
A página 210 (Nota),
referindo-se ao Prometeu libertado, poema que há de seguir a Morte do Padre Eterno, escreve:
“Terei os anos de
vida necessários para escrever esse livro? Não sei, no entanto rogo a Deus do
fundo da minha alma que me deixe terminar com um hino de esperança e de harmonia
uma batalha de cóleras e sarcasmos.”
Aqui temos, pois, um ateu que crê em Deus e na imortalidade
da alma; crê na bem aventurança para os bons e nas penas eternas para os maus:
pede a Deus a sua divina compaixão para os que padecem e para os que
delinquiram; um ateu, finalmente, que recorre do fundo da sua alma a Deus pedindo-lhe
vida para concluir a sua obra. Eu, realmente, não sei que mais podia reclamar o
critério espiritualista! Quereriam talvez que o poeta escrevesse umas glossas (estrofes de sete versos) métricas aos Versos de S. Gregório?
*
Guerra Junqueiro crê em Deus como Voltaire.
- Pois o ímpio Voltaire cria em Deus? - exclamam o
italiano Mazella e todos os mazellas
indígenas.
Eles sabem, quando muito, que Voltaire não podia
dispensar um relojoeiro no relógio da fábrica do mundo. Não obstante, alcunham-no
de ímpio. Pois o deísta Voltaire escreveu alguma coisa mais
significativa da sua religiosidade:
“Parece-me
absurdo - disse ele - fazer depender a existência de Deus de A + B dividido por
Z. Que seria do gênero humano, se fosse preciso estudar a dinâmica e a
astronomia para conhecer o Ente supremo? Para ver o dia bastam os olhos: não se
faz mister a álgebra.” (1) No Dicionário Filosófico,
-art. Religião, escreve Voltaire:
“Meditava eu esta noite, absorto na
contemplação da natureza, e admirava a imensidade, a rotação, as relações
desses globos infinitos; e assombrava-me superiormente a inteligência que
preside a esses vastos maquinismos. Dizia eu comigo: É forçoso ser cego para
não sentir o deslumbramento deste espetáculo; é preciso ser estúpido para lhe
não reconhecer um criador; é preciso ser sandeu (tolo) para o não adorar. Que preito de
adoração devo eu prestar-lhe? Esse preito não será o mesmo em toda a extensão
do espaço, visto que é o mesmo o supremo poder que igualmente impera nessa
imensidade? Um ser pensante que habitasse uma estrela na via láctea não lhe deve
homenagem idêntica à do ente pensante desta esferazinha em que habitamos? Se a
luz é uniforme para o astro de Sirius e para nós, a moral deve ser uniforme. Se
um animal sensível e pensante em Sirius nasceu do pai e mãe que se empenharam
na sua felicidade, deve-lhes tanto amor como nós aqui devemos a nossos pais. Se
alguém na Via Láctea encontra um indigente, e, podendo valer-lhe, o não
socorre, delinquiu perante todos os globos.”
(1) Correspond. t. IV.
pag. 463.
Voltaire não poderia compreender o Ente supremo que
adorava; mas teve a mais vasta compreensão da caridade. Como testemunho da sua
crença em um só Deus, mandou erigir uma igreja, com a seguinte inscrição: A
DEUS CONSAGROU VOLTAIRE.
DEO
EREXIT
VOLTAIRE
Aqui está um ateu como Guerra Junqueiro... sem igreja.
*
Quanto à estesia (sensibilidade)
do
título ‘A Velhice do Padre Eterno’, oferecem-se
me alguns reparos de índole caturra e bastante acadêmica. Se o Padre é eterno, a eternidade do
organismo consiste nos seus predicados refratários à ação desorganizadora do
tempo que degenera o vitalismo da fibra. Eternidade
e velhice são incompatíveis, inconciliáveis. Esta é a doutrina que me
parece mais correntia em todas as Havanesas (natural de
Havana) e em todos os gabinetes de
leitura nacionais. Ora agora, se os preconceitos que Guerra Junqueiro satiriza
pertencessem ao passado, e estivessem atualmente abolidos, poderia admitir-se
alegoricamente que o Padre Eterno, a cuja sombra medraram esses preconceitos,
envelhecesse; mas o eminente poeta satiriza-os porque vigoram e subsistem:
logo, o Padre Eterno
está robusto e muito vivedouro.
A velhice é doença ou não é? Se não é, por que nos ensinaram
transcendentalmente o senectus est morbus? (a velhice é um pesado fardo) Se é, podemos conjecturar da juvenil saúde de Jeová
no céu, pelas medranças (crescimento) salubérrimas da Estupidez na Terra. Cá em baixo, com
o óleo dos maus fígados da hipocrisia dá-se ao espírito a robustez que o óleo
dos fígados bons de bacalhau instila nos tecidos adiposos.
*
O Padre Eterno, à vista de certas coisas e de certos
sujeitos que o desacreditam, talvez desejasse envelhecer e morrer mas não pode.
Há de viver eternamente como a Calípso
de Fenelon que ne pouvait se consoler (estava inconsolável) etc.
O livro do Sr. Guerra Junqueiro tem páginas que
sobreviveriam ao Padre Eterno, se ele pudesse morrer. A Circular é a sátira mais
original, mais risonha e perfeita do livro. As outras sugerem reminiscências
de catapultas da antiga fábrica jogadas ao baluarte do Vaticano. A Circular
tem uma espontaneidade humorística, genial e preeminente que, não pode ser confrontada; por
que é única, estreme, e tecida de irrisórios elementos da vida moderna. Mais
adiante vem uma página magnífica. É o exórdio da Sesta do Sr. abade
que ressona em uma povoação
assolada pela peste.
Como o livro de Guerra Junqueiro tem sido para a imprensa
nacional e brasileira uma “roupa de franceses” (coisa que não tem dono), também eu, filiado na ilustre malta de prezadíssimos ladrões e distintos
colegas, trasladarei a primorosa página para o meu livrinho:
O meio dia bateu já na torre da Igreja.
A aldeia é silenciosa e triste. O sol flameja.
Entre o surdo murmúrio abrasador da luz,
Como num grande tomo, os grandes montes nus
Recosem-se, espirrando as urzes (tipo de planta)
dentre as fragas (rochedo íngreme).
Um mendigo demente e coberto de chagas
Dorme estirado ao sol numa modorra espessa:
E o mosqueiro febril nas lepras da cabeça
Enterra lhe
zumbindo o cáustico das lanças.
Andam só pela rua os porcos e as crianças.
Fome, desolação, luto, viuvez, miséria
Na aldeia morta. A terra esquálida e funérea
Em lugar das canções da abundância e do amor,
Do trigo verde a rir dentro da sebe em flor,
Calcinada e cruel cospe violentamente
Só o cardo torcido, epiléptico, ardente,
Rompendo duro e hostil, como a praga blasfema
Dum assassino quando um carcereiro o algema.
Secaram-se de todo as fontes e os regatos.
As cobras na aridez crepitante dos matos.
Silvam. O ar carboniza as árvores sequiosas
Numa rútila poeira intensa de ventosas.
Dos montes nus além nas secas epidermes
Os rebanhos são como um pulular de vermes.
E a abóbada do céu, concha de zinco em brasa,
Onde não passa a nódoa aérea duma asa,
lmplacável contempla a terra solitária,
Como um sultão fitando a carcaça dum pária!
Isto é bom de lei.
Neste livro, escrínio de pedraria preciosa, há umas joias
fulvas (de cor avermelhada ou...) ruivas de cintilações ferinas como pupilas de feras
assanhadas; há outras rubras como grumos de sangue a esvurmar (retirar pus espremendo) ou de feridas insanáveis no peito dos netos de Caim, filho de nosso avô
Adão; há os reflexos glaucos (verde...) esmeraldinos que verdejam como as escoriações dos esfacelos
(necroses) putredíneos; mas esses versos que trasladei e outros que o leitor sabe
de cor, são punhados de límpidos diamantes sem as jaças da ironia, do ódio ou
do sarcasmo. O grande artista, por vezes, esqueceu-se da sua tarefa de
demolidor.
São Miguel de Seide, 1886
Camillo
Castello Branco
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