Ditado em março de 1874
"Elevei-me para além do
presente, meus irmãos, e meu espírito descortinou...
Que descortinou meu espírito?
Descortinou o passado e algo do
futuro.
Viu primeiro a confusão, o estado
caótico primitivo do planeta em que habitais, e minha alma admirou o poder de
Deus na esfera da Humanidade.
O caos terrestre estava imerso na
luz, na harmonia universal, no fecundo seio do Criador.
Que viu mais?
Viu a nuvem condensar-se, e o caos
obedecendo ao impulso da única lei que governa o Universo. A Terra ia surgindo
da confusão e rolava e rolava pelo infinito, banhada nos raios do Sol e envolta
na luz de miríades de formosíssimas estrelas - e minha alma admirou o poder de
Deus em sua sabedoria incriada.
Que mais viu?
Viu levantarem-se da Terra os
vapores e a chuva cair torrencialmente, resfriando-a, fecundando-a e
preparando-a para os seus grandes destinos. E seu seio virginal, obediente
à suprema lei das harmonias, recebia os primeiros germens, a semente da vida,
destinada a fecundar os organismos - e minha alma admirou o poder de Deus, em
sua inefável providência.
Que mais viu?
Viu a Terra soerguer-se do fundo das
águas e separarem-se os mares dos continentes, e o fluido vivificante elaborar,
no segredo da Natureza e no mistério das forças emanadas
da suprema lei, os organismos primitivos. Um princípio sem princípio, anterior
e superior a toda a força, uma lei anterior e superior a toda a lei, uma causa
anterior e superior a toda a inteligência, uma vontade anterior e superior a
toda a vontade, penetravam e ligavam tudo - e minha alma admirou o poder de
Deus e sua incomparável imensidade.
Que mais viu?
Viu os raios do Sol banhando as
primeiras colinas da criação e produzindo um oceano de pontos luminosos na
superfície agitada das águas. Que bela e majestosa solidão! E as colinas da
Terra, e o fundo dos mares se cobriam e se matizavam com as encantadoras
primícias da vegetação, - e minha alma admirou o poder de Deus e a formosura de
suas obras.
Que mais viu?
Viu grandes abalos e espantosos
cataclismos; a Terra agitar-se e arrojar de suas entranhas nuvens candentes e
turbilhões de fumo e fogo, como, montanhas, e as águas romperem
os diques naturais, inundando a Terra, como se corressem a apagar aquele
incêndio universal, por meio de um dilúvio universal. E, nem por isso, deixava
o globo de
seguir seu curso, porque os cataclismos entravam nos efeitos da primeira e
única lei imposta à substância material - e minha alma admirou o poder de Deus
e sua admirável
previsão.
Que mais viu?
Viu surgir de novo a ordem e a
harmonia do seio da confusão, desenhar-se no firmamento o arco-íris, renascerem
as plantas e transformarem-se, mais ricas de frescura e louçania; embelezando
mais e mais a superfície terrestre. A nuvem, que circundava e prendia a Terra,
ia se purificando e adelgaçando, tornando-se mais sutil e transparente. O
planeta tinha soterrado os enormes boqueirões que deram passagem ao fogo de
suas entranhas - e minha alma admirou o poder de Deus, e sua esmagadora
grandeza.
Que mais viu?
Viu, com surpresa, e percorreu toda
a escala ascendente da vegetação, em seus inumeráveis tipos, desde os mais
simples e imperfeitos até os mais perfeitos e complexos. No cimo da montanha,
no ápice da pirâmide, no mais elevado dos tipos, pareceu adivinhar que o
desenvolvimento das plantas não era só devido ao fluido, ao princípio
vivificante, mas que também intervinha um fluido, um princípio, porventura mais
etéreo e celestial. E fixando, confusa e impotente, os olhos na soberba
vegetação que cobria as terras primitivas - minha alma admirou o poder de Deus
e seus insondáveis mistérios.
Que mais viu?
Minha alma ficou deslumbrada e cega,
porque quis desafiar a luz do Sol. Deixai que minha alma recobre a vista que
perdeu, tentando surpreender um dos segredos de Deus.”
II
“Ao restabelecer-se a visão, já não
eram só os vegetais os seres viventes que povoavam a superfície da Terra e os
abismos do oceano. As aves se aninhavam agitadas por
suaves
brisas e cantavam nas ramagens; os animais corriam, cada um segundo seus
instintos e necessidades, pelos montes e vales, por desertos e selvas, pelos
bosques e margens dos rios; os peixes desfilavam pelo seio das águas, e, sobre
todos esses seres, dotados de vida e de movimento, destacava-se outro mais
nobre e privilegiado, o rei de todos
- o homem.
Tinha mediado um parêntesis, talvez
de muitos milhares de séculos. Este parêntesis não pertence à criatura; é do
domínio da Sabedoria Infinita.
Donde
saíram os peixes, as aves e os animais terrestres? Qual foi o princípio de sua
formação e desenvolvimento? Vieram do Alto ou surgiram do pó?
Meu espírito não o tinha visto,
porém minha alma parecia ter algo adivinhado, mais puro que o impulso
vivificante, nos primeiros e mais elevados elos da cadeia vegetal.
Livrai-vos de firmar juízos sobre
minhas palavras, quanto ao misterioso nascimento dos animais. Meu espírito
estava cego; e que confiança merece a vista de um pobre cego? Ascendendo,
pelo estudo, à escala ascendente do reino animal, em seus inumeráveis tipos, vi
com surpresa, nos mais perfeitos, algo que não podia explicar, algo que parecia
escapar e parecia estranho à natureza animal.
Meu Deus! quão pequenos somos a teus
pés!
Donde havia saído o homem? Qual
tinha sido o princípio de sua formação e de seu desenvolvimento? Veio
diretamente do pensamento de Deus ou levantou-se do pó por uma série de
transformações sucessivas?
Meu espírito não o tinha visto,
porém minha alma não podia esquecer aquele algo indefinível, que tinha como que
adivinhado nos animais superiores.
Luz - luz - muita luz -. muitíssima
luz! porém a luz reside em Deus.
Eu tinha visto, e via vegetais como
minerais e minerais como vegetais, animais como vegetais e vegetais como
animais, homens que participavam muito do animal e animais que participavam
alguma coisa do homem.
Livrai-vos de assentar juízos sobre
minhas palavras quanto ao misterioso nascimento do homem. Meu espírito estava
cego; e que confiança merece a vista de um pobre cego?
Eu via o homem, e via nele o
sentimento, a vontade e a luz; via o animal, e via nele a sensação, o impulso e
o instinto; via o vegetal, e via nele a tendência para a conservação. E
perguntava a mim mesmo: o sentimento, a vontade e a luz são criações
independentes e primitivas ou são uma criação única, já modificada ou
transformada?
E, ao pensar que os três caracteres
distintivos da natureza humana poderiam confundir-se em sua raiz, acudiu
fugitivamente à minha alma a ideia de que podia ser a unidade, a identidade, o
limite de sua depuração.
E perguntava a mim mesmo:
São, porventura, o sentimento, a
sensação depurada e transformada - a vontade, o impulso depurado e
transformado? Serão, porventura, o sentimento e a sensação, a vontade e o
impulso, a luz e o instinto - depurações e transformações daquela tendência
para a conservação iniciada no organismo vegetal?
Ignoro; não sei; não quero; não
posso; não me atrevo a sabê-lo; porque Deus pôs um véu entre o seu segredo e os
olhos de meu espírito. Minha alma nada sabe acerca do princípio e do nascimento
do homem!"
III
"Adão, Adão, onde estás?
Meus olhos procuravam-no e não o
viam; eu o chaMava e ele não me respondia.
Adão ainda não tinha vindo.
Onde estava Adão?
Não me aparecia; Moisés tampouco
vinha, para dizer-me onde se achava escondido o primeiro homem do Gênesis.
Porque eu via um homem, dois homens,
muitos homens e, no meio deles, não via Adão, e nenhum deles conhecia Adão.
Eram os homens primitivos, esses que
meu espírito, Absorto, contemplava.
Era o primeiro dia da Humanidade;
porém, que humanidade, meu Deus!..
Era também o primeiro dia do
sentimento da vontade e da luz; mas de um sentimento que apenas se diferençava
da sensação, de uma vontade que apenas alcançava desvanecer
algumas das sombras do instinto.
Primeiro que tudo, o homem procurou
que comer, e comeu; após, procurou uma companheira - juntou-se com ela, e
tiveram filhos, parecidos com o pai e com a mãe; finalmente, ele ergueu os
olhos na direção do céu, e, tombando pesadamente sobre a terra, dormiu.
Quão nebuloso e triste é o primeiro
dia da Humanidade comparado ao tempo de hoje!..
Meu espírito procurava o homem, e, descobrindo-o,
retrocedia. Volvia a observá-la, e de novo retrocedia. Porque meu espírito não
via o homem do Paraíso; via muito menos que o homem, coisa pouco mais que um
animal superior.
Seus olhos não refletiam a luz da
inteligência; sua fronte desaparecia sob o cabelo áspero e hirsuto da cabeça;
sua boca, desmesuradamente aberta, prolongava-se para diante;
suas mãos pareciam-se com os pés, e frequentemente tinham o emprego destes. Uma
pele pilosa e rígida cobria as suas carnes duras e secas, que não dissimulavam
a fealdade do esqueleto.
Oh! se tivéssemos visto, conto eu, o
homem do primeiro dia, com seus braços compridos e esquálidos caídos ao longo
do corpo, e com suas grandes mãos pendidas até aos joelhos, vosso espírito
teria fechado os olhos para não ver, e procuraria o sono para esquecer.
Não obstante, não deixeis de
glorificar a Deus; porque Ele é a sabedoria infinita, e o homem primitivo é uma
manifestação - um raio da luz eterna da sabedoria infinita.
Deixai seguir a obra de Deus. Seu
termo, como o de todas as obras do Senhor, é a pureza e a perfeição.
O homem primitivo, visto de hoje, é
um espetáculo que fere de horror e desolação; visto dos primeiros séculos do
nascimento dos animais, é uma esperança luminosa, uma nuvem rasgada no horizonte
da eternidade.
Amemos e adoremos a Deus.
O
homem dos primeiros dias da Humanidade comia e bebia, porém não comia nem bebia
como homem; andava, porém não andava como homem; via, porém não via como homem;
amava e odiava, porém não amava nem odiava como homem.
Seu comer era como o devorar; bebia
abaixando a cabeça e submergindo seus grossos lábios nas águas; seu andar era
pesado e trôpego, como se a vontade não interviesse; seus olhos vagavam, sem
expressão, pelos objetos, como se a visão não se refletisse em sua alma; e seu
amor e seu ódio, que nasciam de suas necessidades satisfeitas ou contrariadas,
eram passageiros como as impressões que se estampavam em seu espírito, e
grosseiros como as necessidades em que tinham sua origem.
O homem primitivo falava, porém não
como homem.
Alguns sons guturais, acompanhados
de gestos, os precisos para responder às suas necessidades mais urgentes, eram
a linguagem do homem do primitivo dia.
Fugia da sociedade e buscava a
solidão. Ocultava-se da luz e procurava indolentemente, nas trevas, a
satisfação de suas exigências naturais.
Era escravo do mais grosseiro
egoísmo. Não procurava alimento senão para si. Chamava
a companheira em épocas determinadas, quando eram mais imperiosos os desejos
da carne; e, satisfeito o apetite, retraía-se de novo à solidão, sem mais
cuidar da companheira e dos filhos.
Era extremamente preguiçoso.
Estendido na terra, alimentava-se do que estava ao alcance de sua mão; e,
sempre que se punha em movimento, seus gestos revelavam repugnância e desgosto.
Passava pelo cadáver de outro homem,
fixava nele Um olhar estúpido, e ia além.
Nunca ria; nunca os seus olhos
derramavam lágrimas.
O seu prazer era um grito, a sua dor
era um gemido.
O seu pensamento era superficial,
incerto e fugitivo; as suas ideias eram elementares e confusas; não deixavam em
sua alma outro vestígio mais que aquele que em vós deixa um sonho incoerente e
fugaz.
O pensar fatigava-o; ele fugia do
pensamento como da luz.
Considerava os animais terrestres
como iguais, em natureza, a si mesmo, e considerava as aves como superiores ao
homem.
O céu girava e as estrelas luziam
por cima de sua cabeça, mas ele não percebia o movimento do céu, nem o brilho
das estrelas.
Para ele não havia terra além do que
divisavam seus olhos, nem outros seres além dos que descobriam os seus toscos
sentidos.
Vivia sem conhecer o motivo da sua
vida; morria sem ter jamais pensado em morrer.
Oh! se houvésseis visto, como eu, o
homem do primeiro dia, com os seus longos e esquálidos braços caídos, e com as
suas grandes mãos que chegavam aos joelhos, o vosso espírito teria fechado os
olhos para não ver, e buscaria o sono para esquecer.
Não obstante, não deixeis de
glorificar a Deus, porque Ele é a sabedoria infinita, e o homem primitivo é uma
manifestação, um raio da luz incriada, da sabedoria infinita."
IV
"Tinha findado o primeiro dia
do homem; dia de séculos, porque no relógio da Humanidade os dias são segundos
de segundos, e os séculos de séculos são dias.
Amemos e glorifiquemos a Deus e
elevemos-lhe cânticos. A Humanidade deu um passo nas vias do progresso.
Como penetra no coração o rocio da
consolação! Como brilham para o espírito os primeiros albores da luz!
Como desperta a alma, trêmula de
emoções, ao doce pressentimento de uma felicidade a conquistar nos séculos!..
O homem primitivo não é o homem; a
humanidade do primeiro dia não é a humanidade.
O primeiro homem é o primeiro degrau
da escada de Jacob: mal se destaca do pó.
O homem é a lei, é o progresso, é o
aperfeiçoamento, é a elevação pela matéria, é a purificação pela luz, é o
melhoramento pelo mérito, é a felicidade pelo dever, é a palavra de Deus que
subsistirá pela eternidade.
Se o homem do primeiro dia fosse o
homem, não teria ele saído do primeiro dia. E o homem saiu do primeiro dia.
Meu espírito vê o corpo do homem, e
não cerra os olhos para não vê-la; contempla sua alma, e não repele a imagem de
sua alma.
Começou
a luta do espírito com a matéria, e o princípio espiritual avança, ainda que
pouco, porém avança.
A primeira jornada augura a vitória
do espírito sobre a carne; é o ponto de partida - o princípio do fim do reinado
da matéria - é o primeiro anúncio do reinado do pensamento de Deus.
Nessa luta, eternamente secular, o
corpo é o crisol do espírito, e o espírito é o modelador, o artífice do corpo.
Depois do primeiro dia da
Humanidade, o corpo do homem aparece menos feio, menos repugnante à contemplação
de minha alma.
Sua fronte começa a debuxar-se na
parte superior do rosto, quando o vento açoita e levanta as ásperas melenas que
a cobrem.
Os seus olhos são mais vivos e
transparentes, o seu nariz é mais afilado e levantado e a sua boca é menos proeminente.
Um princípio de expressão se manifesta no conjunto.
Os seus braços são menos longos e
esquálidos, suas carnes são menos secas, suas mãos menos volumosas e, com dedos
mais prolongados, os ossos do esqueleto são mais arredondados, mais bem
dispostos ao movimento das articulações; maior elasticidade existe nos músculos
e mais transparência existe na pele que cobre todo o corpo.
No seu olhar, ele reflete o primeiro
raio de luz intelectual; é o olhar da criancinha, ao despertar a sua alma, ao
primeiro despertar da sensação em seu espírito adormecido.
No seu caminhar, já menos lerdo e
vacilante, adivinha-se facilmente a ação inicial da vontade, o princípio das
manifestações espontâneas.
Procura a mulher, e não mais a
abandona, como no primeiro dia do homem. Assiste-a no nascimento de seus
filhos, com quem reparte o calor e o alimento. O sentimento começa a despontar.
Move a língua, entorpecida e
balbuciante, como a do pequeno párvulo. Sente novas necessidades - e ensaia os
meios de exprimi-las, para satisfazê-las. Eis o princípio da linguagem: a
necessidade.
Julga inferiores os demais animais e
aproveita-se deles para saciar a fome, conforme o seu apetite.
Suspeita que nem tudo acaba onde
termina o alcance da sua vista; que, por detrás da sua montanha, levanta-se
outra, em uma extensão relativamente dilatada.
No seu olhar divisa-se mais surpresa
e curiosidade do que estupidez. Foge dos objetos que encontra pela primeira
vez; pouco a pouco perde o temor que lhe causa a novidade; evita, aceita e, por
fim, compraz-se em tomar nas mãos o que lhe causou receios. Já o seu rosto, os
seus ademanes e as suas exclamações revelam a pueril alegria de que está cheio
o seu coração.
É o soldado que acaba de alcançar
grande triunfo sobre um invencível inimigo. O medo é mais poderoso nele que
todos os seus cálculos e sentimentos.
O rugido das feras, o estampido do
trovão, o fulgor do relâmpago, o sinistro rumor que precede a tempestade, os
frequentes tremores de terra, pelas expansões interiores, a erupção dos
vulcões, e não só isto, tudo o que é novo, tudo o que é desconhecido, gela-o de
espanto, transtorna-o e aniquila-o.
Esquece a companheira, esquece os
filhos, e crê que vai morrer.
Porque ele sabe que tem de morrer e
o temor da morte sobreleva todos os seus temores. Ele viu, com medo, cadáveres
de outros homens e julga inevitável a morte.
Já
não procura a sombra e a solidão, como no primeiro dia; foge das trevas, porque
tem medo; e foge da solidão, porque se reconhece débil e impotente. A mulher e
os filhos são a sua companhia habitual.
Admira, com infantil entusiasmo, a
saída do príncipe dos astros e renascem as suas recordações e as suas
esperanças, pintando-se, no seu rosto, o desânimo e a angústia
quando
vê o Sol perder-se no horizonte. Volverás? pergunta-lhe entristecido.
E o Sol reaparece, porque a
satisfação de todos os desejos legítimos de felicidade está prevista na eterna
lei que imprime seu movimento aos mundos e dirige a evolução dos seres.
E o homem cai agradecido, de
joelhos, ao contemplar o renascimento do Sol e, na sua grosseira e incipiente
linguagem, exclama: Graças, meu amigo protetor - meu Deus! Tu vens consolar-me.
A ti devo a minha felicidade e a minha alegria. Eu te adoro! ...
O benefício foi o primeiro deus da
Humanidade, personificado no Sol, porque o Sol era o maior dos benefícios que a
materializada inteligência do homem podia conceber.
Não tomeis por vitupério essa
adoração primitiva; ela é o ponto de partida da religião natural; completada
pelo Evangelho de Jesus e pelas sucessivas instruções sobre os pontos obscuros
do Evangelho.
Ela é, ainda, a raiz da moralidade
das ações humanas - a primeira manifestação de agradecimento da criatura ao
poder superior desconhecido.”
V
"Adiante! adiante! ...
O homem emergiu de sua inofensiva
infância. Os seus apetites, os seus instintos e as suas paixões dominam a
vontade, que precisa de leme. O homem é uma barquinha agitada
pelo vendaval.
Vê a mulher, sente de chofre o fogo
da luxúria. Ai da mulher, se se atreve a opor-se, a resistir aos seus carnais
desejos!
Quebra-la a entre as mãos, com a
facilidade com que quebra um frágil caniço a mão contraída do adolescente
contrariado.
Os apetites da carne preponderam e
exercem no homem violenta influência.
Estamos no reinado da carne.
O corpo humano adquiriu toda a sua
força e robustez. Não vos falo de sua beleza.
Conheço eu, porventura, o limite da
beleza dos organismos humanos? Sei, mesmo, se existe ou não esse limite?
A carne impera; os seus estímulos
são tão poderosos no homem, que obscureceram completamente a sua razão, torcem
o seu juízo e pervertem-lhe a consciência.
Não importa: adiante! adiante!..
O homem julga lícito tudo servir à
sua concupiscência.
Ainda não pensou em classificar os
seus atos, como lícitos ou ilícitos, senão como agradáveis ou desagradáveis.
Sente a força, que em si brota, e
corre a satisfazê-la, sem cuidar de meios brandos ou violentos. Se outros
homens têm em seu poder o manjar que ao seu estômago apetece, corre a arrebatá-lo;
se para arrebatá-lo é mister matar, mata. Fustigado pela fome, mata do mesmo
modo um seu semelhante e devora-o, mesmo que este seja um filho ou a sua
própria companheira.
Horrorizai-vos mas não condeneis. Só
compaixão devem inspirar-vos os primeiros extravios da nascente humanidade. Ai!
vós não sabeis sobre quem cairia a vossa condenação.
Sente o aguilhão da luxúria, e tudo
o impele a satisfazer o seu insaciável e vulcânico apetite.
As contrariedades excitam a sua ira
e movem-no à vingança. Irado, perde os traços humanos do seu semblante e não
compreende outra vingança que não seja a morte.
Os seus deuses são o raio e o
furacão, símbolos, para ele, os mais expressivos da força e do poder.
O gérmen de todos os maus instintos
que têm nascimento da carne, a semente de todos os impulsos malévolos que têm a
sua raiz na consciência, desenvolvem-se aceleradamente
e dominam no coração do homem.
O bem moral é desconhecido, o mal é
o soberano da Terra, e tem sujeitas ao seu domínio as manifestações da vontade
humana.
Não digo da liberdade humana,
porque, nessa fase da humanidade, a vontade não é a liberdade; é pouco mais que
um impulso mecânico e inconsciente; é uma pequena fagulha
luminosa, amortecida pelo frio da insensibilidade afetiva e pelo impulso
destruidor das exigências da carne.
Os diabos espalham-se e pululam por
toda a extensão da Terra - e insinuam-se enganosamente nas inexperientes
criaturas. Incitam, com sedutores afagos, à volúpia - à intemperança - ao
egoísmo - ao ódio - à violência - ao homicídio; triunfam sem resistência.
Isto devia ser, e foi, o reinado da
carne; - devia preceder, em virtude da eterna lei, ao reinado do Espírito -
assim como o reinado do diabo ao de Deus, sobre a Terra.
Não vos escandalizem estas palavras.
O mal absoluto não existe. Tudo o que está no tempo é relativo. O mal de hoje é
o bem de ontem - e o bem presente será o mal de amanhã.
Nada há absolutamente perfeito senão
o absoluto e nada há absoluto, senão Deus.
Tudo o que existe fora de Deus, vem
de Deus, porém não é Deus - existe de toda a eternidade, sem ser Deus, porque
Deus é o princípio de todas as coisas, e existe desde toda
a eternidade.
No princípio era Deus e era o Verbo
- e o Verbo em Deus era Deus, porque era o próprio Deus - e o Verbo como
emanação de Deus - e não era Deus fora de Deus.
Porque todas as coisas do céu e da
Terra são efeitos da palavra de Deus.
Nada
há absolutamente perfeito senão Deus e o Verbo em Deus, que é a lei em Deus.
O perfeito não pode ser jamais
princípio do imperfeito; e eis porque a imperfeição absoluta, o mal absoluto,
não é uma realidade.
A lei é perfeita, porque é o Verbo
em Deus - as criaturas não são perfeitas, porque são o Verbo fora de Deus.
Porém, o Verbo fora de Deus, como o
que vem de Deus, caminha para a perfeição, que é o seu princípio e o seu fim.
A imperfeição das criaturas, as suas
misérias, as suas fraquezas, os seus extravios, os seus erros, não são mais que
transições ou fases progressivas de sua perfectibilidade infinita - eis por que
eu dizia e repetia: Adiante! adiante!.."
VI
"Somos chegados ao nascimento
das sociedades.
Donde veio a sociedade?
Não o adivinhais?
Meu espírito contempla, absorto, o
encadeamento e sucessão das maravilhosas fases da geração e do movimento do
Verbo.
No princípio era Deus, e em Deus o
Verbo, e Pensamento de Deus.
E o Verbo em Deus gerou hoje, no
princípio, a Palavra, que é Verbo fora de Deus.
E o Verbo, a palavra, gerou no
princípio a matéria cósmica e o movimento; e o Verbo em Deus gerou hoje, no
princípio, a lei fora de Deus.
E a lei, atuando desde o princípio
sobre a matéria cósmica e o movimento, gerou a sucessão eterna das coisas e dos
tempos.
E a lei gerou a condensação e a
separação da matéria cósmica.
E a condensação gerou o movimento
circular e a separação gerou a translação.
E a rotação e a translação geraram o
resfriamento e as formas das massas condensadas e separadas da matéria cósmica.
E a lei gerou, pelo resfriamento das
grandes massas de matéria cósmica condensada, os globos vaporosos e os vapores
geraram os líquidos, e os líquidos se transformaram em sólidos.
E a lei, atuando sobre os sólidos e
os líquidos, gerou os primeiros organismos.
E vieram os vegetais.
Eu não sei qual a geração dos
animais aquáticos, que certamente vieram após a vegetação aquática.
Eu não sei qual a geração dos
animais terrestres e das aves; sei, porém, que vieram depois da vegetação
terrestre.
Eu não sei qual o princípio da
geração do homem; porém, sei que ele veio depois da sucessão dos animais
terrestres.
Meu espírito estava deslumbrado e
cego.
E a lei, na sua atividade eterna,
gerou hoje, no princípio, o ser da matéria cósmica, e gerou, no seio da
substância, o princípio vivificante.
E o princípio vivificante gerou o
desenvolvimento expansivo e a transformação progressiva de todas as
substâncias, procedentes da substância única.
E a lei, agindo sobre o princípio vivificante,
gerou, para o vegetal, a tendência - para o animal, a sensação, o impulso e o
instinto - para o homem, o sentimento, a vontade e a luz.
Já conheceis o mistério; hoje não
podeis penetrá-lo nem eu tampouco.
Estudemos em Deus, neste e no outro
século, ativemos o estudo e oremos pelo estudo e em verdade; porque Deus vê o
nosso estudo, e os seus ouvidos ouvem, e os seus
olhos estão postos nos nossos bons desejos.
Porque está escrito: que nada
permanecerá eternamente oculto.
E
o princípio vital, predominante, gerou nos vegetais, nos animais e no homem o
desenvolvimento e o predomínio dos órgãos.
E o predomínio dos órgãos, no homem,
gerou primeiro a estupidez, que é o sonho da luz - e a inércia, que é o sonho
da vontade e do sentimento.
E a primeira chispa luminosa gerou o
primeiro movimento da vontade incipiente.
E o predomínio orgânico, no homem,
gerou a força muscular.
E a vontade, subjugada pela carne,
gerou o abuso da força.
Dos estímulos da carne nasceu o
amor.
Do abuso da força nasceu o ódio.
E a luz, agindo com maior
intensidade sobre o amor e sobre o dia, gerou as sociedades primitivas."
VII
"O homem mora em companhia das
suas mulheres e dos seus filhos, e a volúpia no meio deles.
E a volúpia é a fogueira que dá o sinal
e atrai os ladrões.
E os filhos do fogo se ajustam aos
filhos do fogo e a volúpia os faz
fortes, pela união contra os fortes.
No meio de todos existe a força e a
iniquidade, porque a força está com o poder, e a luz, no homem, já lhe ensinou
o poder da força.
Um homem, dois homens, dez homens;
uma mulher, duas mulheres, dez mulheres, uma família. Uma família, duas
famílias, dez famílias, uma sociedade. Primeiro é o homem.
A família existe pela carne; a
sociedade existe pela força.
Moram as famílias à vista de todos,
protegem-se, criam rebanhos nos pastos próximos, levantam tendas sobre troncos,
e depois caminham pela terra; primeiro é o homem.
Entre
as tribos vê-se a guerra.
A guerra pela volúpia, pela
violência, por causa dos rebanhos, dos pastos, das peles, por causa da sombra
das tendas.
O primeiro direito é a força, porque
o primeiro rei é a carne.
O homem mais forte é o senhor da
tribo, a tribo mais poderosa é o lobo das outras.
Porém, duas tribos, três tribos, se
concertam e se opõem à vontade do lobo; e, o que devorava, é devorado.
Que vale a vida de um homem? Que
vale a de cem homens?
Morre um filho? Um movimento da
carne é um choro e uma lágrima. Morre um homem? É um grão de areia nas
entranhas do mar.
Todos os gozos são a gula, a volúpia
e a vingança; todas as dores são a fome, os males do corpo, os sofrimentos e as
violências do ódio.
As tribos errantes, como o furacão,
marcham para diante, e, como o gafanhoto, assolam a terra onde pousam seus
enxames.
As pedras e os ramos despencados das
árvores são os seus instrumentos de destruição e de morte; o seu grito de
guerra é um alarido feroz.
Mas, o abuso da força e da volúpia
era necessário: estava na lei da depuração e da perfectibilidade.
Em virtude dessa lei se purificam o
ouro e o cristal, o espírito e o corpo; porque ambos vêm de um mesmo princípio,
e marcham para o mesmo fim: para Deus, que é o princípio e o fim dos seres.
A preponderância, porém, do corpo,
devia preceder; pois que, da vitória do Espírito sobre a carne, depende a
depuração e desenvolvimento indefinidamente sucessivo da criatura racional.
Se o desenvolvimento espiritual
preceder ao predomínio da carne, vereis desaparecer o mérito das ações humanas;
porque não há mérito sem luta - e a razão,
sem os estímulos e os apetites do organismo, é
o triunfo sem combate.
Não acrediteis, entretanto, que a
desesperação e a elevação do corpo sejam o predomínio da carne; precisamente, o
que este predomínio revela é a inferioridade do corpo.
O aperfeiçoamento do corpo segue
paralelo ao do Espírito; porque ambos obedecem à mesma lei - e o Espírito
edifica o seu teto conforme as suas necessidades e na altura das suas
aspirações.
A medida que o Espírito se emancipa
das suas impurezas, o corpo se desprende também das suas, pela comunicação que
existe entre o Espírito e o corpo, e em virtude da influência que o primeiro
exerce sobre o segundo.
O homem tem dois corpos. Pelo
primeiro, que o toma da substância etérea fluídica, comunica o Espírito sua atividade
e perfeição ao segundo.
O primeiro é tanto mais etéreo e
celestial, quanto maior é a elevação do espírito do segundo, e menos carnal, conforme
a purificação do primeiro.
O limite superior do corpo carnal é
o corpo espiritual; o limite do corpo espiritual é o Espírito - e o limite do Espírito
é Deus.
Não o duvideis, embora não o compreendais.
O corpo terreno se purifica gradualmente e se eleva até ao corpo espiritual - o
corpo espiritual até ao Espírito - e o Espírito
até a Deus.
Esta é a lei. Não a conheceis hoje;
esperai, que a conhecereis amanhã."
VIII
Donde vieram esses homens, novos no meio
dos homens? A Terra não lhes deu nascimento, porque eles nasceram antes de ela
ser fecunda.
A Humanidade não se transforma num
dia, mas no decurso de séculos e séculos.
No meio dos homens antigos da Terra
descubro homens novos, meninos, mulheres e varões robustos; donde vieram esses
homens que nasceram antes da fecundidade da Terra?
Em cima e ao redor da Terra,
rodopiam os céus e os infernos com sementes de gerações e de luz.
O vento sopra para onde o impulsa a
mão que criou a sua força, e o Espírito vai para onde o chama o cumprimento da
lei.
Os homens novos que descubro entre
os homens antigos da Terra, e que nasceram antes de esta ser fecundada, vêm a
ela em cumprimento de uma lei e de uma sentença.
Eles vêm de cima, pois vêm envoltos
em luz, e a sua luz é um farol para os que moravam nas trevas da Terra.
Se, porém, seus olhos e suas frontes
desprendem luz, nos semblantes eles trazem o estigma da maldição. É a reprovação
das suas consciências.
São árvores de pomposa folhagem, mas
privadas de frutos, arrancadas e lançadas fora do paraíso, onde a misericórdia
as havia colocado, e donde as desterrou por algum tempo.
A sua cabeça é de ouro, as suas mãos
de ferro e os seus pés de barro. Conheceram o bem, praticaram a violência e
viveram para a carne.
Os que, entre eles, se aproveitaram
da luz e praticaram a justiça, viram o ferro das suas mãos e o barro dos seus
pés transformar-se em ouro, como o de suas cabeças, e ficaram residindo no
paraíso até à sua elevação. Para os outros, a misericórdia foi justiça, e seu
pecado acompanhou-os em maldição perpétua, até ao renascimento.
Eles tinham a luz, e desprezaram-na
- e, em vez dela, surgiram o orgulho e o desejo de oprimir os bons.
Moisés viu a sua luz e disse: São
anjos decaídos; viu-os feitos de barro e disse: São homens - Adão e Eva; sem os estímulos e os apetites do organismo, e fê-los ser
expulsos do paraíso pela tentação dos anjos decaídos.
Vós perguntais: Como se pode
retrogradar no caminho da felicidade e da perfeição. Poderemos deste modo ir
viver um dia na morada da ventura? Somos fracos, e o temor e o desânimo se
apossam de nós.
Recuperai a paz; eu, João, vê-lo
digo: descansai no seio da sabedoria e da misericórdia do Pai, como descansei a
minha cabeça no regaço e no amor do Filho, Jesus-Cristo.
(38)
(38) No começo desta
comunicação, sabíamos que era Lamennais quem nos falava: mas a diferença do
estilo e dos conceitos em alguns pontos nos fez suspeitar que não era ele só quem
a Inspirava. Com efeito, ao chegarmos a este ponto, tivemos a inefável
satisfação de ver que o pensamento do evangelista João também nos vinha
fortalecer e iluminar.
Na perfeição nunca se retrocede; o
Espírito é sempre atraído para o centro da perfeição, que é Deus. Os homens de
Adão, ao virem para a Terra, não perderam um só átomo
do aperfeiçoamento adquirido.
Eles tinham sido elevados ao paraíso
pela misericórdia divina e não pelos seus merecimentos, porque as felicidades
são também provas, assim como os sofrimentos
e
as misérias.
Muitos saíram bem na prova e
mostraram que era justiça o que tinha sido misericórdia; estes herdaram o paraíso
até que aí fossem elevados, porque a felicidade da
justiça se perpetua de tempos a tempos e de geração a geração.
Outros abusaram dos dons da
misericórdia, e as suas obras clamaram justiça; e o peso dessas obras na
balança da justiça fê-los descer à Terra, até ao renascimento.
Mas a misericórdia de Deus os segue
sempre de século em século, de geração em geração.
A geração proscrita traz na fronte o
selo da sentença, mas também tem o da promessa no coração.
Tinham pecado por sabedoria e
orgulho, e o seu entendimento obscureceu-se.
Passarão os anos e os séculos, e o
entendimento estará nas trevas e as trevas no entendimento.
Foi o entendimento quem pecou; as
trevas são o seu castigo; não há outro.
A obscuridade foi a sentença do
entendimento ensoberbado - a luz, a promessa da misericórdia que subsiste e
subsistirá.
E essa luz deve iluminar a todos os
homens que vêm ao mundo para cumprir uma sentença.
A uns com o sol nascente, a outros o
sol meridional, a outros, com o sol poente, prestando-lhes o seu calor até a manhã
em que ele despontará mais luminoso.
É lá no Oriente que irrompeu os
primeiros albores do sol dos Espíritos, os crepúsculos do novo dia, a aurora da
redenção. Bem-aventurados os que não dormem e têm os olhos voltados para o
nascente do Sol: porque serão os primeiros a ver a luz e se regozijarão antes
do dia, e o dia não os cegará.
Bem-aventurados os que choram por
causa das trevas e da condenação, e cujos corações não edificam moradas nem
levantam tendas.
Porque serão peregrinos no cárcere,
e renascerão para morar perpetuamente, de geração em geração, nos cimos onde
não há trevas; porque recuperarão os dons da misericórdia na consumação.
Ai dos que dormem com o rosto
voltado para o poente! Ai dos que olvidam e riem! Ai dos que estabelecem moradas
e levantam tendas! Ai dos que se enraízam no pó!
Eles ficarão cegos antes de verem a
luz - os seus olhos renascerão na obscuridade - e o seu dia não renascerá nem
neste nem no século vindouro.
Eles serão considerados, não como
peregrinos, mas como habitantes; é a sua justa sentença.
Serão novamente plantados no pó das
suas raízes, até à hora do fruto, na justiça e na renovação.
Eu
- João."
‘Roma e o Evangelho’
(trecho)
estudos
resumidos por D. José Amigó y Pellicer
7ª Edição FEB - 1982
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