Há
criaturas que se consideram muito religiosas, que se julgam protótipos da
piedade
cristã,
apenas porque frequentam regularmente este ou aquele templo, de cujas
cerimônias cultuais participam, com unção.
Outras existem que se vangloriam de
já estarem “salvas”, em virtude deste ou daquele privilégio, desta ou daquela
graça especial, e, muito anchas, vivem a fazer fosquinhas aos “heréticos e
excomungados” que não pertencem à sua grei e que, por isso, estão, a seu ver,
irremediavelmente condenados às penas infernais: ...
Outras há também que, por haverem
decorado o conteúdo de certos livros, deixam-se empolgar por essa façanha e, a
seu turno, julgam suficiente conhecer textos e mais textos em que se fala do
reino do céu, para que nele tenham entrada franca...
E, coisa interessante, o maior
desejo de cada uma dessas criaturas é ganhar o céu, sem as outras... e,
tranquilamente, gozar-lhe as delícias, sem cogitar dos que ficariam de fora ...
Acreditam num paraíso reservado a um
punhado de comodistas, a entoarem eternamente cânticos de aleluia pela sua
felicidade individual, indiferentes ao sofrimento de milhões e milhões de seus
irmãos que não partilhassem a mesma sorte!
Onde está, nessas pessoas, o senso
da solidariedade humana?
Que representa, para elas, a
mensagem de amor universal que o Cristo nos trouxe há cerca de dois mil anos?
Como podem crer em um só Deus e
deixar de crer em uma só Humanidade, em um só destino comum, em uma redenção
total, de todos os povos e de todos os homens?
Como podem sonhar com a bem aventurança,
com a beatitude, enquanto um só de seus irmãos humanos não tiver a
possibilidade, próxima ou distante, de ser feliz também?
Merecerá o supremo gozo, a paz
celestial, quem ainda se ressinta de egoísmo tão profundo e anticristão?
Aqueles que, a exemplo do rico da
parábola, fossem capazes de banquetear-se alegremente, sem se incomodarem com a
miséria e as chagas dos Lázaros que lhes mendigassem à porta, poderiam, acaso,
comparecer sem pejo ante a figura amorável e sublime de Jesus?
Como não os horroriza a ideia de
verem rolar milhares de milhões de séculos, lentamente, minuto a minuto, e...
numa parte qualquer do universo, em estâncias maravilhosas, onde tudo são
magnificências e deslumbramentos, apenas um contingente de almas afortunadas
haja merecido viver entre deleites inenarráveis, enquanto, alhures, outras almas
irmãs daquelas, estejam votadas às trevas eternas, em misterioso abismo, onde
só se ouvem gritos lancinantes de dor, uivos de desespero e imprecações de
ódio?
Oh! Deus de amor e de misericórdia,
como se pode desfigurar-vos assim?
Como se pode conceber que sejais tão
bárbaro e cruel, a ponto de estatuirdes, para aqueles que Vós mesmos criastes,
flagícios e angústias que não ocorreriam ao pior dos celerados?
Ter-nos-íeis arrancado do nada,
ter-nos-íeis dotado de uma funesta liberdade, ter-nos-íeis feito atravessar
tentações sem número e multiplicadas provas e, depois de uma curta vida, que
não é senão um átimo no tempo, fechar-nos-íeis para sempre a porta do
arrependimento e da reabilitação, queimando-nos nas chamas de um intérmino auto
de fé, fogo inexorável, que calcina sem purificar, martírio atroz, que tortura
sem regenerar?
*
Haja aqui uma festa, já o dissera
alguém, em que a melhor orquestra encha os salões com seus acordes harmoniosos,
em que os sentidos sejam excitados pelas mais picantes bebidas e iguarias,
assim pelos encantos da beleza e, no momento da mais intensa alegria, brados de
desespero se façam ouvir de uma casa em chamas que ameace reduzir a cinzas
desgraçados que clamam por socorro... Súbito, a festa cessará, os corações se enlutarão,
os mais generosos correrão a arrancar as presas do incêndio, com risco da
própria vida, enquanto as senhoras, abandonando o baile, deixarão cair algumas
de suas joias mais custosas nas mãos daqueles que ficaram sem teto...
Eis o que fazemos cá na Terra, e
este movimento é bom, é agradável a Deus.
Que fariam, no céu, os chamados
justos, se houvesse, realmente, um inferno flamejante, onde fossem atirados
alguns de seus entes mais queridos?
Segundo o ensino de certos teólogos,
os eleitos sentem crescer a sua felicidade à visão dos suplícios dos
condenados, sem terem por eles a mínima compaixão.
Não é mesmo de pasmar?
Não partissem tais ensinos, mais do
desvairamento da fé, que verdadeiramente de seus corações, e eles seriam uns
monstros! Pois quê! Então, para sermos felizes, teremos que sacrificar os
nossos sentimentos e as nossas mais caras afeições? Teremos que arrancar da
alma aqueles que o próprio Deus colocara em nossos caminhos?
É lá possível que alguém possa
entregar-se a êxtases de ventura, sabendo que seus irmãos, sua esposa, seus
pais ou seus filhos estejam sendo submetidos aos mais terríveis tormentos que
jamais... jamais... terão fim?!!
Piedade, oh! Deus, para os infelizes
que, por não Vos conhecerem ainda, acreditam nessa possibilidade,
rebaixando-Vos, assim, à imagem e semelhança deles!
Solilóquio
Rodolfo
Calligaris
Reformador (FEB) Maio 1970
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