O
tempo do Senhor
Irmão
X
por Chico Xavier
Reformador
(FEB) Janeiro 1962
No
lar dos apóstolos em Jerusalém, era Tiago, filho de Alfeu, o mais intransigente
cultor dos princípios de Moisés, entre os seguidores da Boa Nova.
Passo
a passo, referia-se à alegação do Cristo: “eu não vim destruir a Lei...” e
encastelava-se em severa defesa do moisaísmo, embora sustentasse fervorosa
lealdade à prática do Evangelho.
Não
vacilava em estender braços generosos aos irmãos infelizes que lhe recorressem
aos préstimos; contudo, reclamava estrita obediência à pureza dos alimentos, às
posturas do hábito, às festas tradicionais e à circuncisão. Mas, de todos os
preceitos, detinha-se particularmente na consagração do chamado “dia do Senhor”. Para isso, compelia todos os companheiros ao
estudo e à meditação, à prece e ao silêncio, cada vez que o sábado nascesse,
conquanto fossem adiados importantes serviços de assistência e socorro aos
necessitados e enfermos que lhes batiam à porta.
Dominado
de zelo, o apóstolo notara a ausência de Zorobatan ben Assef das orações do
culto, com manifesto pesar. Zorobatan, o vendedor de lentilhas, fora-lhe colega
de infância na Galileia; no entanto, desde muito vivia nos arredores da grande
cidade, viúvo e sem filhos, prestando desinteressado auxílio ao movimento
apostólico. Amanhava pequeno campo e negociava os produtos colhidos, depondo a
maior parte dos lucros na bolsa de Simão Pedro, para as garantias da casa;
entretanto, se vinha à instituição, suarento e cansado, nas horas de trabalho
exaustivo, era ele, nos instantes da prece, o faltoso renitente.
Várias
vezes Tiago mandara portadores adverti-lo, mas, porque a situação se mostrasse
inalterada, por mais de seis meses, deliberou ele próprio repreendê-lo, em
pessoa, no ambiente rural.
Sobraçando
grande rolo com apontamentos do Pentateuco, junto de André, o fiel defensor da
Lei, na ensolarada manhã de um sábado de estio, varava trilhas secas e
poeirentas, em animada conversação.
A
certo trecho, falou-lhe o companheiro, sensato:
-
Consideras, então, que um crente sincero, qual Zorobatan, seja passível de
reprimenda, simplesmente porque não nos partilhe as assembleias?
-
Não tanto por isso - volveu Tiago, dando ênfase aos conceitos. - Ele não apenas
nos esquece o refúgio, mas também foge de respeitar o
terceiro mandamento. Empregados e vizinhos do seu campo avisam-me, cada semana,
que ele passa os sábados inteiros em atividade intensiva, recebendo auxiliares
adventícios, que lhe revolvem os celeiros e as terras.
E
o diálogo continuou:
-
Não se trata, porém, de abnegado amigo das boas obras?
-
Sem dúvida. E creio igualmente que a fé sem obras é morta em si mesma; contudo, a Lei determina seja santificado o tempo do Senhor.
-
E o próprio Jesus? Não curou nos dias de sábado?
-
Não podemos discutir os desígnios do Mestre, de vez que a nós nos cabe
reverenciá-lo tão somente... Se ele mesmo lia os Sagrados Escritos nas
sinagogas, nos dias de repouso, ensinando-nos a orar, não vejo, como desmerecer
as veneráveis prescrições.
André
silenciou alguns instantes e voltou a observar:
-
Se uma de nossas crianças caísse no poço, em dia de sábado, não deveríamos salva-la?
-
Sim - concordou Tiago -, mas, nos sábados subsequentes, ser-nos-ia obrigação
prender todas as crianças em recinto adequado, para que a impropriedade não se
repetisse.
-
E se fosse um animal de trabalho, um burro prestimoso por exemplo, que viesse a
tombar em cisterna profunda? Seria lícito deixá-lo morrer à míngua de todo
amparo, porque o desastre ocorresse num dia determinado para o descanso?
-
Não hesitaria em socorrer o burro - disse o interlocutor, solene -, mas
vendê-lo-ia, de imediato, para que não voltasse a ocasionar
transtorno semelhante.
Nesse
ponto do entendimento, a pequena casa de Zorobatan surgiu à vista.
No
átrio limpo e singelo, erguia-se mesa tosca e, junto à mesa, magras mulheres
lavavam pratos de madeira. Velhos doentes arrastavam-se em torno, enquanto
meninos esquálidos traziam frutos do depósito de provisões.
Apesar
da pobreza em derredor, todos os semblantes irradiavam alegria.
À
curta distância, Tiago viu Zorobatan que vinha do interior, carregando enorme
vasilha fumegante.
Surpreendido,
escutou-lhe a palavra, chamando os presentes para a sopa que oferecia,
gratuita, ao mesmo tempo que tornava à cozinha para buscar nova remessa.
Sentaram-se
todos os circunstantes, nos quais o apóstolo anotou a presença de aleijados e
enfermos, viúvas e órfãos, que ele próprio já conhecia desde muito.
Aproximou-se,
no entanto, da porta e esperava que o amigo regressasse ao pátio, de modo a
exprimir-lhe a desaprovação que lhe rugia n’alma, quando viu Zorobatan sair da
intimidade doméstica, arfando de fadiga, ao peso de recipiente maior. Dessa
vez, porém, um homem de olhar brando vinha, junto dele, apoiando-lhe as mãos
calosas, para que o precioso conteúdo não se perdesse.
O
visitante, irritado, dispunha-se a levantar a voz, quando reconheceu no
ajudante desconhecido o próprio Cristo que ele, só ele Tiago, conseguia ver...
-
Mestre!.. exclamou entre perplexo e
constrangido.
-
Sim, Tiago respondeu Jesus sem se alterar
-, agradeço as preces com que me honram, mas devo estar pessoalmente com todos
aqueles que auxiliam os nossos irmãos por amor de meu nome...
Com
grande assombro para André, o velho apóstolo, em pranto mudo, largou o rolo da
Lei sobre um montão de calhaus superpostos, segurou também a panela e começou a
servir.
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