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Desses lamentáveis excessos, a que
toda convulsão no organismo social, desaçaimando as paixões populares,
semelhantemente dá lugar, é certo que a França retrocederia até a normalidade
de sua vida politica, não somente para consolidação de suas novas instituições,
mas para restauração oficial do catolicismo, a cujo serviço tantos prelados
ilustres, reatando a tradição dos Bossuet e Fenelon, haviam de por os seus dons
de eloquência e de persuasão. Não é menos certo, contudo, que os germens de
irreligiosidade, postos em circulação pelas doutrinas dos enciclopedistas, não
obstante o teísmo fundamental dos seus principais autores, continuariam,
favorecidos
pela atitude incorrigivelmente reacionária e intolerante da igreja, a produzir
os seus frutos nas inteligências, que os estudos científicos e as especulações filosóficas
de Kant, Saint-Simon, Charles Fourier, Victor Cousin e outros, culminando nas
audaciosas concepções de Augusto Comte, iam divorciando cada vez mais da ortodoxia
dogmática.
A anarquia mental, desenvolvida
nessa época de demolição e de frágil reconstrução doutrinária, embalde tentaria
o último desses pensadores opor um corretivo com a sua genial
sistematização científica e a malograda pretensão de fundar uma nova religião -
a religião da humanidade, produto abortivo do que, a seu ver, corresponderia ao
último termo
da sua denominada "lei dos três estados", mas que de fato não passou
de uma grotesca adaptação do catolicismo romano em sua feição inferior, isto é,
do culto idolatra individual e, portanto, fetichista. O materialismo, expressão
imediata e grosseira da incredulidade, prosseguiu em sua obra de dissolução,
transpondo a órbita dos costumes para a das inteligências.
Surgiram então, prestigiadas por
nomes em pouco aureolados de fama, as teorias puramente mecanicistas e organísticas,
interpretativas do universo e da vida, e as próprias investigações de Darwin,
expostas em sua Origem das Espécies, pondo em relevo a lei natural da seleção
dos seres por via de evolução, foram entendidas no sentido da exclusão de uma
Causa suprema na ordem geral da natureza, isto é, no de um ateísmo que nunca
esteve no pensamento do seu autor. Abolida assim, para quantos se pretendiam o
direito exclusivo de pensar, a ideia de Deus, a "força e matéria" de
Büchner e o "monismo" de Hoeckel adquiriram foros de razão suficiente
para substituir a Soberana Inteligência na criação, governo e harmonia do
Cosmos e na orientação da humanidade a seus destinos, subordinados em tal caso
ao arbítrio de forças inconscientes e cegas. O ser pensante, no conjunto de
suas admiráveis faculdades superiores, passou a ser considerado mero produto
das funções do cérebro, sem responsabilidade moral, portanto, e sem nenhum estímulo
enobrecedor de suas ações, rebaixado, numa palavra, à mesma condição do bruto.
Do cimo das inteligências cultas,
obnubiladas pelo orgulho do saber e, em tais condições, inconscientes
instrumentos do AntiCristo, que as propelia nesse desvairado rumo, era fatal
que semelhantes aberrações, circulando com o prestigioso rótulo de verdades
científicas apoiadas na experimentação, se propagassem pelas camadas sociais
subjacentes, gerando, com o morbus da
irreligiosidade absoluta, os sentimentos de revolta, que se não exprimiriam apenas
nas várias formas teóricas do anarquismo, preconizadas pelos revolucionários apóstolos
e pregoeiros da Reforma Social, senão que seriam levados à prática nos
repetidos atentados contra a vida de soberanos e chefes de Estado, em que se
celebrizariam, numa sanguinolenta explosão de ódio sectário, os Ravachol,
Caserio Santo e tantos outros.
Mais que nunca ficou então provada a
incapacidade da igreja para esclarecer e orientar as multidões, sobre as quais,
excetuadas as pessoas que um irresistível pendor devocional encaminhava para a
religião, perdera totalmente a autoridade espiritual, outrora incontrastável.
Não foi, de resto, somente nessa esfera,
em que se devera ter superiormente conservado sempre, que o declínio da igreja
se patenteou. O seu mesmo prestigio politico, em má hora cobiçado e obtido ao
preço de tão graves mutilações no depósito sagrado que lhe fora primitivamente
confiado, já havia padecido violento soçobro na Itália, desde que, sob a
influencia de Cavour, o estadista de largo descortino que se constituíra
preeminente fator da unificação italiana (1852-1861), teve que submeter-se a
medidas radicais por ele decretadas, como a liberdade de cultos, a venda dos
bens de mão morta e a extinção do monopólio do ensino pelas corporações religiosas.
Esse desprestígio atingiu em 1867 o seu ponto
culminante, quando a Itália, prosseguindo naquela obra de unificação, se
apoderou dos Estados pontifícios, expropriação consumada em 1870 com a tomada
de Roma pelas tropas garibaldinas, pondo termo definitivamente ao poder
temporal do papa, que desde então, como platônico protesto, passou a ornar-se
voluntariamente com o título de "prisioneiro do Vaticano".
Em lugar de conformar-se com esse
afastamento dos negócios do século, imposto pela força das armas, uma vez que
não tivera a clarividência de o fazer séculos antes e espontaneamente,
como lh 'o inspiraria o senso de sua missão divina, se há muito o não tivesse
abandonado, para lançar-se no conflito das ambições mundanas, a igreja
permaneceu obstinada em suas pretensões, para vir afinal a contentar-se, em
nossos dias, com uma caricatura do seu antigo poderio, mediante o denominado
"acordo de Latrão", feito
com o primeiro ministro italiano, em virtude do qual a tão ambicionada
soberania temporal do papa ficou reconhecida, mas circunscrita ao minúsculo
território ocupado pela sede pontifícia. Em troca e como compensação dos territórios
para sempre abandonados, recebeu ele a soma de 750 milhões de liras em dinheiro
e um bilhão em títulos italianos de cinco por cento, o que em moeda brasileira
representa cerca de novecentos mil contos de réis.
Quando houvermos de apreciar a
situação da igreja em face do movimento de renovação que se inicia para a
humanidade e cujos lineamentos mal se percebem na confusão dos sucessos
contemporâneos, voltaremos a fazer algumas oportunas considerações sobre essa
transação, ajustada entre verdadeiros filhos do século e que revela a
mentalidade puramente mercantil predominante nos que, por um supremo escárnio,
se arrogam a investidura de representantes de Deus e sucessores do humilde
pescador, que se ufanava, como digno continuador do Mestre, de não possuir ouro
nem prata. Por agora, como remate das apreciações que vimos fazendo sobre o
declínio dessa igreja, que, no dizer de um inspirado apóstolo do moderno
espiritualismo, já não é mais que o cadáver de uma grande ideia, queremos
deixar ainda assinalado que o eclipse, em que definitivamente mergulhou o seu
prestígio, parece ter-se estendido ao mesmo esplendor artístico atingido, com o
máximo domínio espiritual, na Idade Media e representado nesse eloquente
monumento de pedra que foram as suas numerosas catedrais.
Tal foi, por exemplo, e num sentido
mais amplo a desolada impressão de um pensador e esteta - o Dr. Jayme Cortezão,
antigo diretor da biblioteca pública de Lisboa - por
ocasião de sua visita, há alguns anos, à "cidade eterna”, da qual traçou
com raro vigor, em seu livro de viagens, a instantânea e decepcionante visão,
falando-nos de "Roma católica - O túmulo do Cristianismo" e pondo em
relevo o flagrante, ao mesmo tempo que pungente, contraste entre o idealismo
doutrinário de Jesus, expresso em sua vida como na de
seus apóstolos e discípulos, e a materialidade sensualista das representações
objetivas - prolongamento das concepções; romanas e pagãs da mesma natureza -
concretizadas simbolicamente no aglomerado monumental da sé de pontifícia.
Julgamos, por isso, a título
ilustrativo, dever aqui reproduzir essa página impressionista, a que o caráter
leigo do autor, isento de espirito sectário, empresta um cunho de
imparcialidade, que torna digno de apreço o seu depoimento. Não adota ele
certamente o nosso ponto de vista da interferência de fatores ocultos na
deturpação da obra eminentemente espiritualista do Cristianismo, tornando-o
verdadeira, antítese, no fundo e na forma, do que foi em sua gloriosa fase
inicial. Mas essa mesma circunstância, longe de prejudicar o valor das
apreciações criticas do Dr. Jayme Cortezão, serve para conservar lhe toda a
espontaneidade, inspirada em motivos exclusivamente racionais e estéticos, a
que “Uns laivos ora de melancolia, ora de ironia amarga dão mais
acentuado
relevo”.
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