terça-feira, 30 de dezembro de 2014

7b. AntiCristo senhor do mundo


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            Desses lamentáveis excessos, a que toda convulsão no organismo social, desaçaimando as paixões populares, semelhantemente dá lugar, é certo que a França retrocederia até a normalidade de sua vida politica, não somente para consolidação de suas novas instituições, mas para restauração oficial do catolicismo, a cujo serviço tantos prelados ilustres, reatando a tradição dos Bossuet e Fenelon, haviam de por os seus dons de eloquência e de persuasão. Não é menos certo, contudo, que os germens de irreligiosidade, postos em circulação pelas doutrinas dos enciclopedistas, não obstante o teísmo fundamental dos seus principais autores, continuariam, favorecidos pela atitude incorrigivelmente reacionária e intolerante da igreja, a produzir os seus frutos nas inteligências, que os estudos científicos e as especulações filosóficas de Kant, Saint-Simon, Charles Fourier, Victor Cousin e outros, culminando nas audaciosas concepções de Augusto Comte, iam divorciando cada vez mais da ortodoxia dogmática.

            A anarquia mental, desenvolvida nessa época de demolição e de frágil reconstrução doutrinária, embalde tentaria o último desses pensadores opor um corretivo com a sua genial sistematização científica e a malograda pretensão de fundar uma nova religião - a religião da humanidade, produto abortivo do que, a seu ver, corresponderia ao último termo da sua denominada "lei dos três estados", mas que de fato não passou de uma grotesca adaptação do catolicismo romano em sua feição inferior, isto é, do culto idolatra individual e, portanto, fetichista. O materialismo, expressão imediata e grosseira da incredulidade, prosseguiu em sua obra de dissolução, transpondo a órbita dos costumes para a das inteligências.

            Surgiram então, prestigiadas por nomes em pouco aureolados de fama, as teorias puramente mecanicistas e organísticas, interpretativas do universo e da vida, e as próprias investigações de Darwin, expostas em sua Origem das Espécies, pondo em relevo a lei natural da seleção dos seres por via de evolução, foram entendidas no sentido da exclusão de uma Causa suprema na ordem geral da natureza, isto é, no de um ateísmo que nunca esteve no pensamento do seu autor. Abolida assim, para quantos se pretendiam o direito exclusivo de pensar, a ideia de Deus, a "força e matéria" de Büchner e o "monismo" de Hoeckel adquiriram foros de razão suficiente para substituir a Soberana Inteligência na criação, governo e harmonia do Cosmos e na orientação da humanidade a seus destinos, subordinados em tal caso ao arbítrio de forças inconscientes e cegas. O ser pensante, no conjunto de suas admiráveis faculdades superiores, passou a ser considerado mero produto das funções do cérebro, sem responsabilidade moral, portanto, e sem nenhum estímulo enobrecedor de suas ações, rebaixado, numa palavra, à mesma condição do bruto.

            Do cimo das inteligências cultas, obnubiladas pelo orgulho do saber e, em tais condições, inconscientes instrumentos do AntiCristo, que as propelia nesse desvairado rumo, era fatal que semelhantes aberrações, circulando com o prestigioso rótulo de verdades científicas apoiadas na experimentação, se propagassem pelas camadas sociais subjacentes, gerando, com o morbus da irreligiosidade absoluta, os sentimentos de revolta, que se não exprimiriam apenas nas várias formas teóricas do anarquismo, preconizadas pelos revolucionários apóstolos e pregoeiros da Reforma Social, senão que seriam levados à prática nos repetidos atentados contra a vida de soberanos e chefes de Estado, em que se celebrizariam, numa sanguinolenta explosão de ódio sectário, os Ravachol, Caserio Santo e tantos outros.

            Mais que nunca ficou então provada a incapacidade da igreja para esclarecer e orientar as multidões, sobre as quais, excetuadas as pessoas que um irresistível pendor devocional encaminhava para a religião, perdera totalmente a autoridade espiritual, outrora incontrastável.

            Não foi, de resto, somente nessa esfera, em que se devera ter superiormente conservado sempre, que o declínio da igreja se patenteou. O seu mesmo prestigio politico, em má hora cobiçado e obtido ao preço de tão graves mutilações no depósito sagrado que lhe fora primitivamente confiado, já havia padecido violento soçobro na Itália, desde que, sob a influencia de Cavour, o estadista de largo descortino que se constituíra preeminente fator da unificação italiana (1852-1861), teve que submeter-se a medidas radicais por ele decretadas, como a liberdade de cultos, a venda dos bens de mão morta e a extinção do monopólio do ensino pelas corporações religiosas. Esse desprestígio atingiu em 1867 o seu ponto culminante, quando a Itália, prosseguindo naquela obra de unificação, se apoderou dos Estados pontifícios, expropriação consumada em 1870 com a tomada de Roma pelas tropas garibaldinas, pondo termo definitivamente ao poder temporal do papa, que desde então, como platônico protesto, passou a ornar-se voluntariamente com o título de "prisioneiro do Vaticano".

            Em lugar de conformar-se com esse afastamento dos negócios do século, imposto pela força das armas, uma vez que não tivera a clarividência de o fazer séculos antes e espontaneamente, como lh 'o inspiraria o senso de sua missão divina, se há muito o não tivesse abandonado, para lançar-se no conflito das ambições mundanas, a igreja permaneceu obstinada em suas pretensões, para vir afinal a contentar-se, em nossos dias, com uma caricatura do seu antigo poderio, mediante o denominado "acordo de Latrão", feito com o primeiro ministro italiano, em virtude do qual a tão ambicionada soberania temporal do papa ficou reconhecida, mas circunscrita ao minúsculo território ocupado pela sede pontifícia. Em troca e como compensação dos territórios para sempre abandonados, recebeu ele a soma de 750 milhões de liras em dinheiro e um bilhão em títulos italianos de cinco por cento, o que em moeda brasileira representa cerca de novecentos mil contos de réis.

            Quando houvermos de apreciar a situação da igreja em face do movimento de renovação que se inicia para a humanidade e cujos lineamentos mal se percebem na confusão dos sucessos contemporâneos, voltaremos a fazer algumas oportunas considerações sobre essa transação, ajustada entre verdadeiros filhos do século e que revela a mentalidade puramente mercantil predominante nos que, por um supremo escárnio, se arrogam a investidura de representantes de Deus e sucessores do humilde pescador, que se ufanava, como digno continuador do Mestre, de não possuir ouro nem prata. Por agora, como remate das apreciações que vimos fazendo sobre o declínio dessa igreja, que, no dizer de um inspirado apóstolo do moderno espiritualismo, já não é mais que o cadáver de uma grande ideia, queremos deixar ainda assinalado que o eclipse, em que definitivamente mergulhou o seu prestígio, parece ter-se estendido ao mesmo esplendor artístico atingido, com o máximo domínio espiritual, na Idade Media e representado nesse eloquente monumento de pedra que foram as suas numerosas catedrais.

            Tal foi, por exemplo, e num sentido mais amplo a desolada impressão de um pensador e esteta - o Dr. Jayme Cortezão, antigo diretor da biblioteca pública de Lisboa - por ocasião de sua visita, há alguns anos, à "cidade eterna”, da qual traçou com raro vigor, em seu livro de viagens, a instantânea e decepcionante visão, falando-nos de "Roma católica - O túmulo do Cristianismo" e pondo em relevo o flagrante, ao mesmo tempo que pungente, contraste entre o idealismo doutrinário de Jesus, expresso em sua vida como na de seus apóstolos e discípulos, e a materialidade sensualista das representações objetivas - prolongamento das concepções; romanas e pagãs da mesma natureza - concretizadas simbolicamente no aglomerado monumental da sé de pontifícia.

            Julgamos, por isso, a título ilustrativo, dever aqui reproduzir essa página impressionista, a que o caráter leigo do autor, isento de espirito sectário, empresta um cunho de imparcialidade, que torna digno de apreço o seu depoimento. Não adota ele certamente o nosso ponto de vista da interferência de fatores ocultos na deturpação da obra eminentemente espiritualista do Cristianismo, tornando-o verdadeira, antítese, no fundo e na forma, do que foi em sua gloriosa fase inicial. Mas essa mesma circunstância, longe de prejudicar o valor das apreciações criticas do Dr. Jayme Cortezão, serve para conservar lhe toda a espontaneidade, inspirada em motivos exclusivamente racionais e estéticos, a que “Uns laivos ora de melancolia, ora de ironia amarga dão mais
acentuado relevo”.

            Julguem os leitores por si mesmos. 

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