*
6e
Depois de enumerar algumas
atividades de Inácio de Loiola, como o estabelecimento, em Roma, de um colégio
para educar vinte e quatro alemães, destinados a ocupar os bispados
e outros altos cargos eclesiásticos, a composição dos Exercícios Espirituais e a redação das Constituições da Ordem, completadas com as Declarações, o historiador assinala com surpresa, que lhe não
causaria o fato, se conhecesse o poder da sugestão oculta sobre os ânimos
predispostos:
"Singular fenômeno: um místico fundou uma associação notável pelo seu
espírito prático, pelas suas poderosas faculdades de ação; um entusiasta
delineou uma disciplina que ficou sendo modelo: um ignorante organizou uma
corporação que se havia de assinalar na ciência e influenciar energicamente o
espírito humano."
E prossegue:
"Os novos religiosos
professavam os três votos ordinários, mas obrigavam ti pobreza o individuo e
não a corporação, e os seus colégios podiam adquirir e possuir bens. Se ha
épocas em que precisa isolar-se da sociedade quem pretende dirigi-la,
outras há em que precisa estar perto dela, e nesse caso se achava o século XVI.
Compreendendo essa verdade, Inácio de Loiola, que do seu ascetismo só havia
colhido motejos e desprezos"
- também foi assim, advirtamos de passagem, interrompendo a transcrição, que a
plebe, de começo, acolheu Francisco de Assis e os seus companheiros, o que os
não impediu de intrepidamente prosseguir
em seu glorioso e exemplificador apostolado - "quis que os jesuítas vivessem no mundo social, mas sem se misturarem
com ele; deu-lhes colégios, mas não conventos, um hábito eclesiástico, porém
não monacal e nem sequer bem
determinado, pois que os padres da companhia vestiam-se de mercadores na Índia,
de mandarins na China, sempre conforme o uso do país e como o comportava o seu
teor de vida, apropositado para a ação enérgica, real, influente. Não deviam
cansar os mancebos com trabalhos excessivos nos colégios, sempre bem edificados,
nem exigir deles mais de duas horas seguidas de aplicação, e tinham casa de
campo para recreação dos discípulos. Nos colégios eram admitidos rapazes de
todas as condições; os padres sabiam aproveitar as aptidões de toda espécie e
não consentiam que ninguém fizesse votos antes dos trinta anos, para que o
longo e penoso noviciado evitasse as profissões imprudentes e os
arrependimentos inúteis. Enquanto duravam as provas, os superiores podiam
observar as propensões e as faculdades dos noviços, para depois os empregarem
nas escolas, junto aos príncipes, na direção das almas; mandavam-nos como missionários
para as aldeias ou como mártires para as Índias.” Depois de fanatizados -
acrescentemos - por uma férrea e implacável disciplina.
"Cada província tinha um chefe
(provincial) e empregos graduados, dependentes do geral, que residia na capital
do mundo católico e que, conhecendo cada um dos seus súditos pelos relatórios
dos superiores, dispunha dos rendimentos, dos talentos e da vontade de todos. A
sua autoridade era absoluta e perpétua; todavia ao lado dela havia um ‘ad monitor’,
escolhido pela congregação geral, para o advertir, quando observava no seu
procedimento alguma irregularidade. Para que a sua obediência fosse mais
completa" (e não - advirtamos - por espírito de humildade), "os
jesuítas não deviam procurar as dignidades eclesiásticas, e ao princípio até se
abstinham de qualquer emprego permanente: quando Jay rejeitou o bispado de
Trieste, que lhe oferecera Fernando III, toda a Ordem entoou ações de
graças."
Compreende-se quanto havia de
calculado e inteligente nesse exclusivismo, que de certo modo subtraía os
membros da milícia à dependência hierárquica do papa, com o fim de
os conservar de preferência e incondicionalmente subordinados ao "papa
negro", como veio a tornar-se conhecido no mundo o geral dos jesuítas.
"O seu
ensino - prossegue o historiador - era
gratuito. Não deviam usar de sutilezas na confissão nem de charlatanismo na prédica,
nem ter preconceitos na devoção. A regra não lhes exigia rezas contínuas, dias
passados no coro, para os não desviar do estudo e da ação útil; também lhes não
impunha exageros de disciplina e penitência, para que não macerassem o corpo,
que devia ser válido para o serviço da ordem.
"Não
desaproveitando nenhum meio de influência, procurando sempre fazer-se aceitar
pela sociedade, em cujo seio operavam, se viam a poesia latina apreciada, exercitavam
os discípulos na composição de versos latinos; se estavam em voga as
representações cênicas, davam representações, para assunto delas escolhendo
fatos da história religiosa. O seu fundador fizera da obediência um preceito
capital; os jesuítas, pois, tinham por indeclinável obrigação obedecer ao
papado; muito embora procurassem também dirigi-lo, pugnar pela sua autoridade e,
portanto, combater sem tréguas os protestantes. Não consideravam, porém, a violência
como meio eficaz de combate. Em vez de servir-se das armas sinistras da
Inquisição, de dar caça aos hereges, pediram e obtiveram de Júlio III privilégio
de os absolver das penas temporais; esse privilégio indispôs contra eles os
reis de Espanha e os dominicanos, que não queriam que faltasse alimento às suas
fogueiras.
"Pois que a Reforma havia argumentado com a corrupção e a ignorância do
clero, a milícia organizada para a combater precisava assinalar-se pelo saber e
pelos bons costumes: efetivamente os padres de Jesus conservaram-se por muito
tempo sujeitos a uma severa disciplina moral, e os homens de letras da época
estão de acordo em elogiar as suas escolas. Eram, pois, admiravelmente
organizados, educados e dirigidos para o desempenho da missão do seu instituto."
"Mas - acrescenta o historiador, e
aí se desnuda a chaga visceral que tornou abominável a instituição - por outra
parte o regime, bem estudado e calculado, que lhes dava essa superioridade,
mutilava neles a personalidade humana, e a mutilação se efetuava por processos
muitas vezes em desarmonia com a moral comum. A obediência os tornava passivos;
o rigor disciplinar lhes impunha, como deveres, atos repugnantes de vigilância" (devia dizer espionagem) "recíproca;
o zelo pela prosperidade da ordem e pela realização dos seus fins lhes fazia
considerar legítimos todos os meios conducentes a esses fins, a essa
prosperidade. Inteiramente absorvido pela sua sociedade particular, o jesuíta
sacrificava-lhe, quando o supunha preciso, os mais preciosos interesses e os
mais sagrados direitos da sociedade geral em que vivia. Quando sucedia serem
paralelas as conveniências das duas sociedades, o discípulo de Inácio de Loiola
era um vigoroso agente do progresso humano, como quando missionava em mundos
novos: se eram divergentes essas conveniências, tornava-se um perigo para os
Estados e convertia-se num obstáculo ao desenvolvimento da humanidade. Têm esse inconveniente - remata o
historiador - todas as associações que
desprendem os seus membros das relações comuns do homem social e que lhes
impõem uma finalidade especial."
Como toda forma de fanatismo -
acrescentemos - que oblitera a razão e o sentimento humano e pode levar o indivíduo,
com a consciência tranquila, à prática de crimes. Foi o
que se deu com esses mesmos jesuítas que, se repudiavam ostensivamente a violência
organizada como meio de combate à heresia, não hesitavam na consumação de
atentados secretamente planejados, como os que em tão grande número lhes são
atribuídos, desde que a sua prática lhes parecia aconselhada pela suprema conveniência
da sua ordem ou do papado.
Recordaremos apenas dois, a título
ilustrativo: o caso de Paulo Sarpi, o religioso servita de San Vito que, depois
de haver combatido ativamente as doutrinas de Roma, escreveu uma contundente
história do concilio de Trento, à qual julgou dever a igreja, para defender-se
do libelo tremendo nela formulado, opor a que, em contradita, fez escrever pelo
jesuíta cardeal Pallavicino Sforza. "Atacado
cinco vezes por assassinos e ferido uma vez, exclamou Sarpi: Reconheço o estilete
da corte de Roma. Ficou sendo crença vulgar, mas não fundada em provas, que o
golpe havia sido vibrado pelos jesuítas". - Essa, ao demais, era uma
das particularidades da sua ação dissimulada e sinistra: ferir na sombra, sem
deixar vestígios da sua criminalidade.
O outro caso é referente a Clemente
XIV (Lourenço Ganganelli), o infortunado pontífice a quem coube a, para ele
corajosa, determinação de abolir, em 1773, pelo breve Dominus ac Redemptor, a
ordem jesuítica, cedendo à pressão e ao exemplo dos governos de Espanha,
Portugal, ltália e França, que já a haviam banido dos seus territórios. De tal
modo se havia ela, por toda parte, incompatibilizado com as classes mais
influentes da sociedade pela concorrência que lhes fazia, sobretudo na esfera dos
interesses temporais, pois que eram os seus membros habilíssimos manejadores de
negócios. Para ter-se uma ideia da ausência de escrúpulos em que se inspiravam
as suas atividades basta mencionar o golpe que, trinta e dois anos antes, lhes
fora vibrado pela própria cúria romana, quando - refere a historia - "os papas entenderam que o comércio não devia
andar associado à profissão religiosa, Benedito XIV renovou (1741) a proibição
já feita por Urbano VIII e, além disso, uma bula do mesmo ano proibiu aos eclesiásticos
escravizar índios, vende-los, troca-los, separa-los das mulheres ou dos filhos,
priva-los de algum modo da sua plena liberdade. Essas acertadas determinações
- assinala o historiador - foram um golpe
funestíssimo para a Companhia."
Pois bem, Clemente XIV que,
advertido por denúncia dos intuitos sinistros dos jesuítas, já "não tomava senão alimentos muito simples
preparados por um religioso de sua confiança", um ano depois da
publicação do breve de extinção, "morreu
em grandes aflições." - "Disse-se,
acrescenta o historiador, que tinha sido
envenenado pelos jesuítas, mas não apareceram provas nenhumas desse crime".
Como as não apareceram de outros
semelhantes que lhes são imputados, o que não admira, tratando-se de "uma ordem muito rica, muito poderosa, cujo
geral governava despoticamente vinte e seis mil homens, que tinham clientela
entre o povo e amigos nas cortes."
Como quer que seja, a obra planejada
por Inácio de Loiola, a impulsos místicos degenerados em fanatismo, teve o seu
epílogo em meio de uma execração geral. Porque, em lugar de buscar a glória de
Deus, converteu-se num instrumento de poderio mundano, desse modo incidindo na
aplicação da sentença do Divino Mestre: "Toda planta que meu Pai não plantou
será arrancada."
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