terça-feira, 25 de novembro de 2014

O cão de Ali Bahadian



O cão
de Ali Bahadian

José Brígido / Indalício Mendes
Reformador (FEB) Junho 1955

            Ali Bahadian não era propriamente um mau. No entanto, tomava, às vezes, estranhas atitudes, das quais frequentemente se arrependia. Temperamento impulsivo, meio estourado, era, porém, fácil de acomodar, passados os primeiros instantes de irritação.

            Uma noite, ele começou a ouvir vozes. Voltou-se para o lado de onde partiam os sons e nada viu. Pôs-se inquieto e custou a conciliar o sono. Levou alguns dias preocupado, acabando por esquecer o incidente. Quando, dias após, empreendeu pequena viagem, as vozes voltaram. Ia Ali Bahadian batendo o pó da estrada, mais ou menos satisfeito. Amanheceu na aldeia de Banjalir. Acercou-se da margem de pequeno rio para comer alguma coisa. Nesse instante, aproximou-se, agitando a cauda, um cão sujo e faminto, que não tirou os olhos da boca de Ali. Enervado, o rapaz xingou-o, desferindo lhe um pontapé.

            - Que queres, diabo ?! Vai embora!

            O pobre animal correu, ganindo, rabo entre pernas, mas não ficou muito longe. A fome era muito mais forte que o medo. De lá onde estava, esticou um olhar triste, misto de ternura e humildade, que não comoveu Ali Bahadian. Mais zangado ainda, este o escorraçou, atirando-lhe uma pedra. Assustado, o cão desapareceu por trás de uns arbustos.

*

            Concluída a frugal refeição, Ali curvou-se sobre o rio para lavar as mãos. Fê-lo tão desastradamente que o fêz (1) escorregou-lhe da cabeça e tombou dentro d’água. Ali Bahadian lembrou-se do cachorro. Assobiou, chamando-o, e quando ele apareceu instigou-o a correr para o rio. O animal, entretanto, reconhecendo-o, fugiu, ligeiro, receando, talvez,
castigo.

            (1) fêz - espécie de barrete

            - Peste! - vociferou Bahadian. -. Vem cá, animal! Por tua causa vou perder meu fêz!

            Nesse instante, teve a impressão de que alguém lhe mussitava ao ouvido:

            - A culpa é tua e não dele, Ali. Se houvesses demonstrado generosidade, o cão estaria a teu lado, confiante, e certamente atenderia sem relutância à tua vontade. Em vez de ajudá-lo, escorraçaste-o. Agora estás recebendo o prêmio da tua má ação, porque não pode colher flores quem semeia pedras.

            Ali Bahadian, não vendo ninguém em seu redor, estremeceu, espantado. Eram as vozes que retornavam! Sentiu percorrer lhe o corpo um arrepio gelado e disse consigo mesmo:

            - Estou ouvindo "coisas". .. Sempre a mesma lengalenga. Eu não acredito nisso...

            No mesmo instante, como se estivesse dialogando com um ser invisível, ouviu ainda mais nitidamente:

            - Acreditas, sim... Irás acreditar, porque ninguém pode fugir à realidade... Verás ainda...

            Alarmado, Ali conseguiu uma vara e "pescou” o fêz que o rio já ia levando. A "pescaria" fora difícil, mas, afinal, ele podia, agora, recomeçar a viagem. O Sol queimava a terra e tornava intolerável o calor. Suado e cansado, Ali Bahadian estava com insuportável mau humor. De quando em quando soltava uma imprecação, amaldiçoando o pobre cachorro. Após uma curva, avistou um homem que tentava erguer até à lombada dum burro pesado fardo que se desprendera das cordas. A tarefa era demasiada para uma só pessoa. Por isto, quando ele viu Ali, sorriu de contentamento, cheio de esperança:

            - Amigo: foi Alá quem te enviou a mim! Alá esteja contigo! Queres dar-me uma "mãozinha? A carga é pesada e sozinho não consigo repo-la em cima do burro...

            - Ah! Quisera eu ter forças para ajudar-te. Não posso, porém. Estou fatigado e tenho ainda que andar muito...

            - Mas, com um pouco de boa vontade, meu amigo, será possível, sem que te prejudiques, levantar o fardo. Eu farei mais força e tu apenas darás um empurrão para a carga subir...

            - Não! Se soubesses como estou cansado, não insistirias...

            E foi andando, ainda mais zangado.

            Enxugando o suor que corria sem cessar do rosto queimado pelo Sol, o desconhecido apenas disse:

            - Compreendo, compreendo... Não podes...  Está bem. Alá há de me dar forças para fazer o que almejo, já que me negas o auxílio que poderias prestar-me, se tivesses boa vontade.

            Ali Bahadian não deu atenção, resmungando:

            - Ora, ora! Quase perdi meu fêz, cansei-me deste jeito e ainda vem esse homem falar em boa vontade! Terei cara de idiota, porventura?

            Andou por todo o resto da tarde. Ao anoitecer, recostou-se a uma grande pedra, debaixo de copada árvore e adormeceu, despertando quando o Sol já fazia sentir os seus efeitos. Abriu o alforje que trazia às costas e pôs-se a comer figos secos. Ao ouvir alguém cantarolar, levantou a cabeça e avistou o homem do burro. Esforçando-se por ser amável,
Ali Bahadian saudou-o:

            - Benvindo sejas, em nome de Alá!

            - E tu também, meu amigo, ganha as bênçãos do Todo Poderoso, porque sem Ele nada valemos - respondeu o desconhecido.

            - Tenho aqui algumas moedas - tornou Ali e serão tuas se me permitires viajar nesse burro.

            Não aguento caminhar nesta dura estrada, sob sol tão forte.

            - Alá te ilumine o pensamento, irmão! A única moeda que realmente tem curso em nossa vida é a boa-vontade. Poderás vir, mas não me precisas pagar nada.

            Perplexo com a generosidade do desconhecido, Ali Bahadian se agastou:

            - Pensas que estou aqui para te pedir favores? Vai embora com teu burro. Falas em boa--vontade, porém o que queres é humilhar-me. Não preciso de boa-vontade, ouviste?

            - Precisas mais do que pensas, Ali. Boa-vontade é moeda que rende muito, dá sempre troco, garante juros certos...

            A voz partia do lado oposto. Ali Bahadian voltou a cabeça, surpreso, e não viu vivalma. Não sabia explicar o que com ele acontecia. O homem e o burro já haviam sumido na estrada cheia de voltas. Assustado, Ali pôs-se a andar apressadamente, monologando:

            - Será um djim (2) que me está perseguindo?

            (2) espírito bom ou mal, superior ao homem e inferior ao anjo, segundo os muçulmanos.

            No mesmo instante, a voz se manifestou, forte:

            - Acompanho-te porque gosto de ti, Não és mau, embora gostes de parecer que o és. Precisas criar juízo, rapaz. Amabilidade não faz mal a quem a usa. Generosidade é ponte que nos faz atravessar muitos valões perigosos. Cultiva a boa-vontade. Sempre que puderes, ajuda a alguém, mesmo que ninguém te ajude. Acabarás por ter amigos e, quem tem amigos, nunca está só, Ali. Faze uma experiência na primeira oportunidade que tiveres. Tenta...

            Outra vez "a voz", aquela voz que lhe penetrava o íntimo. Nervoso, Ali Bahadian perdeu a noção das coisas e saiu correndo, sem sentir a fadiga, porque o temor era maior do que o cansaço. Quando deu acordo de si, estava novamente ao lado do homem do burro. Ofegante, pálido, quase sem poder falar, Ali se apoiou no animal, que caminhava a passo lento. Nesse instante, as cordas que amarravam o fardo às costas do solípede rebentaram de novo e a carga veio estrepitosamente ao chão. O pobre homem ficou desapontado. Como iria transportá-la, se não tinha cordas sobressalentes, que lhe permitissem prender o fardo ao animal?

            Ali Bahadian lembrou-se, então, do conselho de "a voz" e, mostrando-se solícito, ofereceu:

            - Olha: tenho comigo uma corda fina, de cânhamo. É forte e talvez possa servir... Antes que o homem, admirado da bela ação, dissesse algo, Ali Bahadian emendou as pontas rebentadas, experimentando se as emendas estavam seguras. Depois, ajudado pelo companheiro, pôs novamente a carga na lombada do burro. Os dois sorriram de satisfação, depois disto. Recomeçada a marcha, Ali se entregou a animada conversa, talvez receoso de ficar só e ser assediado pela "voz". Em dado momento, o homem lhe propôs:

            - Vieste a mim pela mão do Profeta, amigo.

            Se não viesses, eu ainda estaria parado na estrada, nesta soalheira terrível. Alá te cubra de flores, irmão, por tão boa-vontade!

            Estremeceu Ali Bahadian ao ouvir falar em "boa-vontade". Lembrou-se imediatamente da voz. Nem respondeu ao companheiro, tão atarantado ficou. Sem lhe apreender a perturbação, o homem prosseguiu:

            - Sou Aziz Abud Sizza, de AI-Farid, para onde vou. E tu?

            - Eu? Ali Bahadian, de Katarucha. Também vou para AI-Farid... - esclareceu Ali.
E puseram-se os dois a conversar animadamente.

            - Para que não te canses muito, Ali, monta no burro até à próxima pousada. Bem o mereces por tua boa vontade.

            Ali Bahadian exultava de íntima alegria. Nunca se vira tão bem tratado, nunca sentira alguém demonstrar satisfação em o ter por companhia. Era como se houvesse alcançado o Paraíso. Não esperou que Aziz Abud Sizza repetisse a invitação. Ajeitou-se diante do fardo e lá se foram os três, estrada afora, como velhos amigos. O burro parecia igualmente feliz, porque, enquanto caminhava, movimentava a cauda de um para outro lado.

            Ali bendizia a bondade de Deus:

            - Abençoado seja Teu nome, Alá! Nunca pensei que alguém pudesse ajudar-me! - pensou.

            - Não te dizia eu, Ali? - sussurrou-lhe a voz misteriosa. - Cultiva a boa-vontade, a tolerância, a amizade com os teus semelhantes, procura ser bom, evita ser mau. Acabarás por ter amigos e quem tem amigos, nunca está só. Tiveste o prêmio da tua boa ação.

            Embora empalidecendo, Ali Bahadian não denotou seu sobressalto. Tinha o coração aos pulos, mas, desta vez, sentira indefinível bem-estar. Então, a voz seria mesmo verdade? Não havia dúvida alguma, tanto que lhe predissera bons momentos e ele estava fruindo realmente uma situação que não previra.

*

            Em AI-Farid, onde pernoitava, Ali Bahadian despertou em sobressalto. Ouvira insólito ruído junto à porta da alcova. Abriu os olhos, atento, mas tudo eram trevas. Lepidamente, ergueu-se e acendeu a lâmpada de óleo. Nada viu de anormal. Supôs haver sonhado. Ia deitar-se de novo quando a chama da lâmpada começou a minguar, até desaparecer totalmente. Ali reergueu-se, tornou a acender a lâmpada, que tinha óleo suficiente para toda a noite. Não queria ficar às escuras... Deitou-se outra vez. Repetiu-se a cena: a chama foi diminuindo devagarinho até sumir. Desta vez, entretanto quarto não ficou na escuridão, porque, imediatamente, se iluminou por igual, como se o Sol lá houvesse nascido. Ali Bahadian sentou-se no leito, apavorado. Que seria aquilo? Através da porta fechada começou, então, a surgir uma luz azulada e de dentro dela saiu um homem alto, moreno, de turbante amarelo. Seus olhos negros e vivos denotavam aguda inteligência. Parecia um dervixe. (3) Aproximando o rosto da face de Ali, indagou:

            (3) dervixe - monge muçulmano.

            - Sabes quem sou?

            Tartamudeando, o rapaz respondeu:

            - Não... não sei...

            - Sou "a voz". .. A voz que tens ouvido frequentemente. Depois da boa ação que praticaste, resolvi apresentar-me a ti. Não te assustes. Sou teu amigo, há muito, muito tempo... se andares direito, continuarei a sê-lo. Se entortares, o resto será contigo.

            Ali Bahadian suava frio e tremia como caniços em vendaval. Supunha estar sendo dominado por terrível pesadelo. Mas, nada disto: achava-se até bem desperto. Pretendeu gritar, mas não pôde. Olhos arregalados, sossegou um pouco quando compreendeu que "a voz" lhe sorria com amabilidade, despedindo-se. Depois que a estranha visão desapareceu, Ali Bahadian se colou à parede, certo de que iria morrer de susto. O coração batia descompassadamente e o ar lhe faltava. Porém, nada lhe sucedeu de ruim. "A voz", agora num tom quase paternal, lhe disse:

            - Se todos os homens fossem um pouco mais pacientes, se soubessem ter tolerância em face de certas atitudes de seus semelhantes, se não se mostrassem irritados, mas serenos, muita coisa que parece difícil se tornaria fácil e estabeleceria a compreensão que falta na vida de relação. Um dia, Ali, desceu à Terra um grande Espírito. Isa (4) veio dar aos homens as regras do bom viver e da felicidade. Todos os seus mandamentos podem ser resumidos num só: "Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos façam." Se as criaturas humanas se dispusessem a proceder assim, as condições desse mundo seriam melhores. Tu tiveste um exemplo, Ali. Bastou que ajudasses aquele desconhecido na estrada para que ele também te ajudasse. A vida tem de ser vivida com espírito de reciprocidade e paciência. Nada somos isoladamente, mas valemos muito, quando unidos pela compreensão. Tudo deve ser feito com boa-vontade, porque tudo merece nossa simpatia, nosso amor: as criaturas humanas, os animais, as pedras, as plantas, a terra, a água, o ar, tudo, enfim, Ali Bahadian, porque é criação de Alá. Em certas ocasiões, devemos até abençoar o mal, porque ele nos esclarece a jornada. Sem paciência e boa-vontade pouco se consegue na vida. O homem que compreende as lições do Livro Sagrado, faz a vontade do Profeta e se aproxima de Alá.

            (4) nome pelo qual os árabes denominam Jesus cristo.

            Ali Bahadian ouvia as palavras da visão, sem se mexer. Mesmo que desejasse falar, não teria ânimo, porque sofrera rude abalo. Entrementes, "a voz" prosseguiu:

            - Ser bom é obrigação de todos os filhos de Alá. A bondade não tem fórmulas nem formas; pode ser demonstrada de muitas maneiras e em qualquer ocasião. Ninguém vence com violência e aqueles que aparentam triunfos assim são verdadeiramente derrotados, porque ele mesmo escreve no livro da vida o seu próprio destino. É sempre inteligente ceder um pouco, todas as vezes que se fizer necessário. Sem boa-vontade e esperança de um lado, será difícil encontrar boa-vontade e esperança do outro. Simpatia é um passe livre para a boa compreensão. Mesmo que não te compreendam, guarda a serenidade nos momentos difíceis. Com paciência e tolerância acabarás vencendo, assim como a água, gota a gota, acaba por perfurar o granito mais consistente. A questão está em saber ter paciência e trabalhar, esperando. É preferível que te desapontes procurando ser bom e útil
a teus semelhantes, do que desapontares a alguém, mostrando-te duro e imprestável. Todos nós apenas colhemos na medida do que semearmos. Portanto, Ali Bahadian, tem juízo. Educa-te, porque a glória maior do homem não está na riqueza nem nas posições que ocupa, mas na força interior que possui , na capacidade de dominar-se a si mesmo.

*

            Em seguida, a visão, tocando com a ponta dos dedos a testa, os lábios e o coração, se despediu sorrindo. Atravessou a porta fechada, ante os olhos atônitos de Ali, que se viu, imediatamente imerso em completa escuridão. Reanimando-se, saltou do leito, acendeu a lâmpada de óleo, inquieto por se encontrar sozinho.

            - Só pode ter sido um pesadelo! - exclamou.

            - Vou lá acreditar em fantasma? Eu? Só se eu não me chamasse Ali Bahadian. Sou inteligente. Fui vítima de uma alucinação, apenas. E só acreditarei "nisso" se tudo se repetir...

            Mas nada se repetiu. Pelo menos naquela noite.

*

            No dia imediato, depois de haver satisfeito os deveres que o haviam levado a Al-Farid, Bahadian iniciou a viagem de retorno a Katarucha. Conseguira lugar numa carreta, até a metade do caminho. Ao atingir a aldeia onde escorraçara o cão, procurou a margem do rio, a fim de fazer ligeiro repasto. Lá encontrou, esquelético, rondando os poucos transeuntes, na esperança de ganhar restos de alimentos, o mesmíssimo cão sujo e infeliz. Ao ver o rapaz, para ele se dirigiu. O primeiro impulso de Ali foi afugentá-lo, porém, no instante se lembrou da visão e das vozes, na quais ele "não acreditava"... Tirou um pedaço defumada carne do alforje e lançou-o ao cachorro, que inesperadamente vivo e rápido, devorou-o sem tardança, para, a seguir, olhar para Ali, entre agradecido e pedinchão.

            - Queres mais, hem? Fiz-te a vontade e não estás satisfeito?

            Como se compreendesse o que ouvia, o cão pôs as orelhas em pé e abanou a cauda. Ali achou graça. Retirou do alforje um bolinho de farinha e entregou-o ao animal, que se acercara mais confiante. Depois, alimentou-se e empreendeu a jornada sem dar maior importância ao cachorro. Andou muito sendo surpreendido por forte ventania, ao cair da tarde. Em dado instante, um golpe de vento arrebatou-lhe o fêz, que caiu numa grota de acesso. Ali Bahadian tentou apanhá-lo, infrutiferamente.  Irritado, dando o fêz por perdido, pôs o alforje às costas e foi procurar abrigo conveniente. Nesse ínterim, ouviu latidos. Voltou-se e avistou o cão faminto que o acompanhara. Corria para ele trazendo à boca o fêz. De momento a momento, como que brincando, punha o fêz no chão, latia e corria em volta desse barrete. Ali, contente, apanhou o fêz e alisou o pelo imundo do humilde cão, que se arriscara para o servir. Deu-lhe o resto de carne defumada que trazia, afagando lhe um vez mais o lombo ossudo. Depois desse incidente, Ali Bahadian recomeçou a viagem, chegando em Katarucha já noite densa. Nem mais se lembrava do cão. Abriu a porta de casa, entrou, e, antes acendesse a lâmpada, tudo se iluminou, tal sucedera em AI-Farid. Ali correu para um canto do quarto, fechando os olhos. A visão se lhe apresentou mais uma vez:

            - Não te espantes, Ali. Já sabes que sou amigo. Aprendeste muita coisa. Olho para o teu futuro e vejo... zafar qarib. (5) Precisas continuar sim, melhorando sempre. Por mais zangado que estejas, por mais pressa que te aflijas, não te irrites, não maltrates ninguém, muito menos os animais. Paciência, tolerância e boa-vontade, Ali Bahadian, três gigantes que nos decuplicam as forças, quando sabemos usá-las. Boa vontade é moeda de câmbio forte, de juros certos. Ajuda sempre que puderes, não esperando recompensa. Quando não deres ajuda, dirige uma prece a Alá,  porque ele te dará forças para suportares resignadamente as dificuldades. Conforma-te com as injustiças, mas procura nunca ser injusto, porque, assim, os espinhos sairão de teu caminho. Agora, vai lá fora: há uma surpresa para ti. Recebe-a com paciência e boa-vontade, Ali Bahadian.

            zafar qarib. (5) triunfo próximo.

            Mal a visão se diluiu através da parede, Ali correu a acender a lâmpada e tornou à porta para ver a que se referia o fantasma. Qual não foi seu espanto ao deparar com o cão, que o seguira humildemente e se deitara ao relento.

            - Era isto! - exclamou, um tanto decepcionado.  - Que vou fazer com este cachorro aqui?!

            Quis enxotar o pobre animal, mas seu subconsciente reagiu imediatamente. Ali Bahadian volveu ao interior da casa e deitou-se, pensando como livrar-se da companhia que lhe parecia incômoda. Ao despertar, na manhã seguinte, porém, era bem diversa sua disposição de espírito. Ao vê-lo, o cão manifestou-lhe agrado e Ali, bem humorado, decidiu:

            - Só poderás ficar comigo se tomares um banho.

            Foi o que fez. Depois da limpeza, o cachorro lhe parecia bonito, embora muito maltratado pela fome. Ali Bahadian alimentou-o e, depois disto, o cão, dócil e atento, distraiu-o bastante. Chegara ele a conclusão de que, afinal, tinha necessidade de algo
que lhe afastasse as preocupações inúteis que lhe assomavam o espírito.        

            - Vais ficar comigo, se não me incomodares. Mas deves ter um nome. .. Qual será? Já sei: "Paciência". Para te aturar devo ter muita paciência... Então, aprende: teu nome é "Paciência", ouviste?

            E saiu, sorrindo, a cuidar de suas obrigações.

*

            Alguns meses decorreram. Ali Bahadian e "Paciência" haviam-se tornado muito bons amigos. O rapaz passara a considerar o cão indispensável à sua existência e não saía sem ele. Certa noite, porém, a tranquilidade de sua vida foi perturbada pela visita de um ladrão. Despertado, o rapaz viu diante de si um vulto que o ameaçava:

            - Se tens dinheiro, dize-me onde está... Depressa!

            Ali Bahadian, sentindo a ponta de uma faca roçar-lhe o tórax, disse a meia voz:

            - "Paciência", "Paciência"...

            O malfeitor não compreendeu porque ele o fazia e comentou:

            - Vamos, vamos! Onde está o dinheiro? Dize-me onde está, antes que eu perca a paciência!

            Nisto, pela porta arrombada entrou o cão, que, notando a presença dum estranho, rosnou e invadiu a casa. Percebendo que a atenção do intruso se desviara, Ali com ele se atracou, lutando bravamente na escuridão. A esse tempo, já o cão atacara o malfeitor, mordendo lhe as pernas. Para desvencilhar-se de Ali, o desconhecido feriu-o e correu para a porta. "Paciência", no entanto, se tornara feroz na peleja. Depois de grande alarido, o ladrão logrou fugir, fazendo-se pesado silêncio nas trevas. A um canto, Ali Bahadian tentava reerguer-se para acender a velha lâmpada de óleo. Chamou o cão, mas este não respondeu. Talvez houvesse saído atrás do assaltante e permanecesse lá fora. Com dificuldade, Ali pôs fogo à lâmpada e o quarto se alumiou. Nesse instante viu caído, numa poça de sangue, o bravo e infeliz "Paciência". As lágrimas lhe vieram aos olhos. Aflito, o rapaz pôs sobre as pernas o corpo inanimado do animal, que mostrava a garganta aberta por certeiro golpe de faca.

            - "Paciência"! "Paciência"! Meu amigo! ...

            E se entregou a sincero pranto. De nada adiantava o desespero, pois o cão estava irremediavelmente perdido. Foi nesse momento que "a voz", há tanto tempo ausente, se fez ouvir novamente:

            - Não chores, Ali, embora, pelas lágrimas que derramas, estejas demonstrando a dor que te alanceia a alma. Reage para que possas dar aos despojos do teu cão o agasalho sagrado no seio da terra. Saibas que "Paciência" não foi aniquilado, como supões. Posso mostrar-te que isso é verdade. Está aqui a meu lado, mais vivo do que pensas, porque a morte não é o fim de tudo, não é o aniquilamento, mas a libertação de uma vida para o recomeço de outra, em plano diferente.

            Ali Bahadian viu, então, que "a voz" se tornava visível e não escondeu sua surpresa ao ver que "Paciência", cujo corpo permanecia inerte a seu lado, saltitava, alegre, na companhia do Espírito. "Como poderia ser isso?" - indagou, de si para consigo, o rapaz, sem atinar com a explicação. "A voz" apreendeu lhe a dúvida e tranquilizou-o:

            - Ainda é cedo, Ali Bahadian, para penetrares certos mistérios da existência terrena. Posso adiantar-te que, além da vida física, há outra, extraterrena, espiritual, em que as criaturas se situam, consoante sua hierarquia moral. Os animais são também, de certo modo, dotados de uma "alma", inferior à dos homens, pois não se valoriza pelo livre arbítrio. Depois da morte física, a "alma" dos animais conserva a sua individualidade e a vida inteligente lhe permanece em estado latente. Sobrevivem, como no caso de "Paciência", à morte do corpo material usado na Terra, e se demoram na erraticidade até que se lhes ofereça nova encarnação. Com o auxílio de Alá, pude conseguir que visses o que estás vendo, a fim de mostrar-te um aspecto da verdade e consolar-te da dor de haver perdido o companheiro. Ainda hás de aprender todas estas coisas e muitas mais que ora nem imaginas. Para isso, terás de retemperar teu espírito nas boas obras e na prece sincera. Posso adiantar--te, já, que "Paciência" continua vivo, muito embora tenhas entre as mãos o corpo inanimado que ele usou. Mas evoluirá através dos tempos, porque também está sujeito à lei progressiva a que estão subordinados todos os animais.

            O semblante de Ali Bahadian se desanuviou por instantes. Fez peculiaríssimo sinal, que "Paciência" compreendia como ordem para dar cabriolas, e foi com regozijo que verificou ser imediatamente atendido. Radiante de alegria, tentou tomar nos braços o amigo querido, mas nada encontrou, senão o vácuo... Restava-lhe, porém, a lembrança macabra daquele cadáver ainda morno, do cão amado que morrera para que ele sobrevivesse...

*

            Vamos reencontrar Ali Bahadian grisalho, mas ainda forte de corpo e espírito. Fizera-se um símbolo de tolerância, boa-vontade e dedicação ao próximo. Conhecia muitos dos segredos que lhe haviam sido revelados pela "voz". Todas as noites, quando o silêncio amortalhava Katarucha, Ali promovia o intercâmbio de ideias e pensamentos com respeitáveis entidades do mundo espiritual. Evolvera bastante e daquele jovem estouvado de outros tempos nada mais restava. Aos discípulos mais íntimos, ensinava que "nascer, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, tal é a lei".

*

            Numa linda manhã de sol, Ali Bahadían ergueu--se do alquicer (6) e viu diante de si o inesquecido "Paciência". Correu para ele, pegou-o ao colo, afagou-o e deixou aquela casa para sempre... Quando os discípulos chegaram, bateram em vão à porta e, ao entrarem, compreenderam que de Ali Bahadian restavam somente velhos despojos de uma encarnação bem aproveitada...

            (6) alquicer - enxergão usado pelos árabes.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4f. AntiCristo senhor do mundo


4f


            Voltemos ao patriarca.

            Entre as numerosas conversões que obteve, conta-se, em 1213, a do fidalgo Orlando de Chiusi de Consentino, que ofertou à Ordem a propriedade do Mont’ Alverne, tornado célebre não somente pelas demoradas visitas que a ele fez posteriormente o apóstolo, mas pelo fenômeno de estigmatização, que aí se lhe produziu e de que adiante falaremos.

            Prosseguindo a obra de evangelização com êxito crescente, quer pela entrada de novos irmãos na Ordem, quer pelo acolhimento que da parte do povo encontrava, operando sensível ressurgimento da fé e melhorando os costumes, promovendo, numa palavra, uma verdadeira restauração, pelo menos parcial, da Igreja Cristã, houve que amplia-la a outros países da Europa e ao Oriente, para onde Francisco enviou alguns de seus abnegados companheiros, seguindo ele mesmo, em 1219, com outros irmãos para o Egito, a anunciar a Boa Nova (1).

            (1) Dos frutos dessa evangelização nos dão noticia os trechos seguintes de uma carta de Jacques de Vitry, citada pelo cronista de cujos depoimentos nos temos socorrido:
               "Tenho a dizer-vos que, Maitre Reynier, prior de S. Miguel, entrou na Ordem dos Irmãos Menores, ordem que por todos os lados se multiplica muito, porque imita a Igreja primitiva e segue em tudo a vida dos apóstolos.    "O mestre desses irmãos chama-se o irmão Francisco: é tão amável que se faz venerar por todos. Vindo para o nosso exército, não temeu, por zelo pela fé, as iras dos nossos inimigos.
               "Colin, o inglês nosso letrado, entrou na mesma Ordem, assim como dois outros dos nossos companheiros, Miguel e D. Matheus, ao qual eu tinha confiado o curato da Santa Capela. Castor e Henrique fizeram o mesmo, bem como outros cujos nomes esqueço."
           
            Antes disso, porém, ocorreu um sucesso que merece destaque. Levado a Roma pelo cardeal Hugolino, que tomara como protetor da Ordem, contra a má vontade do sacro colégio, e obrigado a pregar diante do papa, Francisco de Assis, tendo preparado a sua oração, no momento de a proferir, esqueceu completamente o que escrevera e humildemente o confessou. Mas tão inspirado logo se sentiu que improvisou um eloquente discurso, com que subjugou toda a assistência.

            Ali sofreu ele a primeira investida contra a pureza institucional da sua comunidade. Encontrando-se com o patriarca da Ordem dominicana, pretendeu este induzi-lo a fundir na dele a Ordem franciscana, para satisfazer os desejos do papado e também para melhor desse modo retribuir os favores que da cúria romana recebera, em virtude dos quais não hesitara em adoptar na sua comunidade a regra de S. Agostinho.

            Francisco de Assis opôs-se formalmente: "queria isolada e simples a sua querida Ordem dos irmãos menores".

            O inimigo, entretanto, não desanimou. Enquanto Francisco evangelizava no Oriente, o cardeal Hugolino, que só hipocritamente se fizera protetor dos franciscanos, impunha às clarissas a regra beneditina, a que tanto se opusera o patriarca, ao mesmo tempo que os substitutos deste no governo da Ordem, atraiçoando a confiança que neles fora depositada, "mitigavam os votos, multiplicavam as observâncias, precipitavam a Ordem na imitação das antigas, adstringindo-a a meras prescrições ritualísticas".

            Avisado Francisco de Assis do que ocorria, regressou imediatamente do Egito e ficou desolado, ao encontrar "evidentes sinais de relaxação: os frades já eram proprietários", violando assim o voto de pobreza absoluta que haviam feito.

            Recorrendo ao cardeal Hugolino, este, em lugar de apoiar o patriarca, procurou convence-lo de que "convinha entrar a Ordem sem demora no regime habitual do catolicismo, aceitando as concessões de Roma". O privilégio das irmãs clarissas foi cassado, e o papa Honório III expediu em 1220 uma bula modificando os dispositivos da regra franciscana.

            Diante desse criminoso desmoronamento da sua amada comunidade, no que se refere ao espírito em que fundamentalmente a instituíra, Francisco de Assis, com a alma transpassada de amargura, reuniu em setembro daquele ano o último capítulo geral, a que presidiu, e abdicou suas funções em Pedro de Catania, dizendo aos companheiros: "De ora avante, irmãos, morri para vós; mas eis aqui o irmão Pedro de Catania, a quem todos vós e eu obedeceremos".

            Fiel aos seus sentimentos de humildade, não tendo embora senão lágrimas no coração para presenciar a deturpação da obra que com tanto amor edificara, conservou-se o patriarca na prometida obediência, assistindo ainda ao capítulo geral de 1221, em que Pedro de Catania foi, a seu turno, substituído pelo irmão Elias.

            Terminara para a Ordem o período de inspiração e liberdade, entrando ela no regime de absoluta sujeição à igreja.

            "O santo - informa o cronista - deixando a Porciúncula, buscou a solidão nas montanhas da Úmbria. Em 1224 assistiu ele pela última vez ao capítulo geral, dirigindo-se em seguida, com os irmãos Masseo, Ângelo e Leão, para o famoso Mont'Alverne".  Alí ocorreu, na manhã de 14 de setembro, após uma longa vigília de penitência e oração, o fenômeno de estigmatização, a que aludimos.

            "Nos raios quentes do sol a erguer-se, o qual, sucedendo ao frio da noite, vinha reanimar lhe o corpo, distinguiu de repente o santo uma forma estranha. Um serafim, asas abertas, voava para ele dos confins do horizonte, inundando-o de alegrias inexprimíveis. No centro da visão aparecia uma cruz e o serafim estava pregado nela. Quando a visão desapareceu, sentiu que às delicias do primeiro momento se juntavam dores pungentes. Profundamente confundido, procurou com ansiedade a significação de tudo isso e encontrou, impressos em seu corpo, os estigmas do Crucificado".

            Tratou de ocultar humildemente os sinais glorificadores, passando desde então a andar calçado e escondendo as mãos nas mangas do hábito, mas não tardou em ser descoberto, daí lhe provindo a conhecida designação de "São Francisco das Chagas".

            Em fins de setembro deixou para sempre, com profunda saudade, o Mont' Alverne, dizendo adeus às arvores amigas e seguindo para a Porciúncula, onde pouco se demorou, entrando em seguida a evangelizar o sul da Úmbria.

            Era já o ocaso da sua missão. Ferido no amor exuberante com que servia ao Senhor e que se desdobrava enternecido por todos os seres da criação, não era mais que uma sombra angustiada e errante daquele jovial condottiere do Bem, que fraternizava com as aves, entoando, de conserto, hinos de glorificação ao Criador; que tirava as formigas e as lagartas do caminho, para não serem pisadas, e agasalhava na manga do hábito as cigarras, que lhe vinham cantar na palma da mão; que, em sua profunda humildade, não apagava as lâmpadas e as velas, “para não profanar a luz com o seu sopro", nem amarfanhava uma folha de papel escrito, porque podia conter as letras com que se escreve o nome de Jesus. O poeta, que compusera o maravilhoso "Hino do Sol", que celebrara as cariciosas belezas da Água, como das mais preciosas dádivas de Deus às criaturas deste mundo e tecera apaixonados madrigais a Dona Pobreza, continuava, sim, a bem-dizer e louvar o Criador por tudo e por todas as coisas, sem exceção do próprio sofrimento, com que exalta e aperfeiçoa as potencialidades da alma humana, mas não podia esquivar-se à infinita amargura que lhe resultava de ver lançada por terra a obra com que, no seu expressivo dizer, "Deus quisera fazer um novo pacto com o mundo".

            Esse traumatismo moral não podia deixar de afetar-lhe profundamente o organismo. Adoeceu, por isso, mais de uma vez, gravemente, sendo removido, em busca de melhoras, para a ermida de Monte Colombo, perdida entre árvores e rochedos, e mais tarde para Siena, sem resultado, sendo acometido de vômitos de sangue.

            Quis então voltar para a Úmbria. "Tinha pressa em rever a sua Porciúncula e os mais lugares que se avistam dos terraços de Assis e tão doces recordações lhe avivavam".

            Numa de suas mais agudas crises viram-no, ardendo em febre, levantar-se de repente na cama e bradar com desespero: - Onde estão os que me roubaram os irmãos? Onde estão os que me roubaram a família?

            "É necessário recomeçar - pensava alto - criar uma nova família, que não esqueça a humildade: ir servir os leprosos e, como outrora, pormo-nos sempre, não só em palavras, mas na realidade, abaixo de todos os homens".

            Na PorciúncuJa ditou um testamento para os irmãos menores e ditou outro para as filhas de santa Clara, "que interessados fizeram desaparecer".

            Aproximava-se o desenlace, cujas particularidades resumimos. Do palácio episcopal de Assis, onde ocorrera a derradeira crise, foi a seu pedido carregado pelos companheiros para a sua querida Porciúncula, detendo-se em caminho, para abençoar a cidade e dirigir-lhe, numa comovida prece ao Senhor Jesus, os últimos adeuses.

            No dia primeiro de outubro (1226) mandou que, despido, o deitassem na terra: queria morrer nas braços de sua dama, a Pobreza. Reposto no leito, a todos pedia perdão e abençoava.

            Da radiosa serenidade, com que encarava a sua próxima libertação, pode ajuizar-se pela despedida que antes, ainda em Assis, dirigira aos companheiros, exortando-os: "Adeus, meus filhos! ficai sempre no temor de Deus, ficai sempre unidos em Jesus. Grandes provações vos estão reservadas! a tribulação vem perto. Felizes os que perseverarem como começaram, pois haverá escândalos e cisões entre vós. Eu vou para o Senhor e para o meu Deus. Sim, tenho certeza de que vou para Aquele que eu servi".

            Depois disso, ainda reuniu ao pé de si os irmãos Ângelo e Leão e entoou com eles o cântico em louvor da morte corporal.

            O desenlace, porém, só veio a ocorrer na Porciúncula, como íamos descrevendo, ao cair da tarde de 3 de outubro, verificando-se por essa ocasião um tocante sucesso, assim narrado pelo irmão Boaventura:

            “À hora do passamento, as cotovias, aves que amam a luz e temem as sombras do crepúsculo, juntaram-se em grande número sobre o teto da casa, embora se aproximassem as sombras da noite, e, esvoaçando com certa alegria desusada, entraram a dar testemunho, tão gracioso quão evidente, da glória do santo, que costumava convida-las para louvarem a Deus".

            Saudado assim, do lado de cá, por esse coro de inocentes e delicadas criaturas, que um poder divino punha indubitavelmente em alvoroço naquele momento, para confusão dos néscios e edificação dos sapientes, penetrou os umbrais da imortalidade e foi, do lado de lá, recebido entre hinos glorificadores dos anjos do Senhor, aquele que, fiel até a morte, O servira com todas as potencialidades de sua alma, ébria de amor divino, e tudo fizera realmente para cumprir a determinação de "restaurar a sua Casa, na iminência de ruina".

            Pouco importa que, na obnubilação da consciência, que os infelicitava, não tivessem os detentores da direção visível da igreja aproveitado a misericordiosa lição e advertência que, pelo humilde "poverello" de Assis, lhes enviara o Senhor e de que voltaremos, no próximo capítulo, a ocupar-nos com o possível desenvolvimento. Nem por isso a obra franciscana, por sua repercussão nos costumes e na restauração da fé, entre membros do clero e no seio do povo, deixou de ser uma fecunda tentativa de salvação da igreja, indubitável, embora temporariamente apenas, obtida, amparando-a contra os mais graves efeitos da crise que a assoberbava e - tal a pressão oculta que a desorientava - apenas mitigada, não tardou em recrudescer, como vimos páginas atrás, desdobrando-se nos séculos imediatos.

            Rematemos, por agora, as referências ao sublime "poverello", por muitos com justo título denominado "o Cristo da Idade Média", assinalando que o prestígio de suas virtudes de tal modo universalmente se impusera que, menos de dois anos após o seu desprendimento, isto é, aos 26 de julho de 1228, com inobservância do interregno para casos tais estabelecido pela cúria romana, mas tendo em consideração os notórios e abundantes sinais de santidade patenteados em sua vida, o papa Gregório IX presidia em Assis às cerimônias da canonização e a 27 colocava a primeira pedra da famosa basílica consagrada S. Francisco".

            Assim - não é possível esquivar-nos ao oportuno comentário - os infiéis "vigários do Cristo" que, insensíveis à providencialidade e aos intuitos da obra franciscana, haviam atormentado a vida do seu excelso fundador, acabrunhando-o de desgostos pela impiedosa deturpação com que a mutilaram, tanto que o viram libertado, deram-se pressa em reivindicar para a periclitante igreja, que desgovernavam, a glória daquela figura incomparável. E eles, que lhe não tinham sabido respeitar as virtudes, nem muito menos imitá-las, arrogaram-se a autoridade, de resto meramente convencional e exterior, de conferir-lhe a santificação. Infiéis, todavia, uma vez mais ao espírito do Cristianismo, outra forma não encontraram, para glorificar a memória do que fora, antes de tudo, acima de tudo e sempre, o apóstolo da Pobreza, senão a ereção de uma basílica suntuosa.


            Incoerência de cegos, que se obstinavam em permanecer condutores de cegos!

4e. AntiCristo senhor do mundo

4e

            O mesmo se pode, infelizmente para ela, dizer da magnífica obra realizada, com idêntica intenção, no começo do século XIII, por esse outro iluminado, verdadeiro espírito celeste, que se chamou Francisco de Assis.

            À semelhança de Saulo, no período anterior ao desabrochar de sua vocação, mas de um caráter diametralmente oposto ao do convertido de Damasco, pela compassiva doçura e jovialidade, que era o traço fundamental da sua índole, o "poverello" de Assis apresenta um contraste expressivo entre os primeiros anos de sua mocidade, dissipada em estroinices levianas, e a fase imediata, de consagração integral ao serviço do Senhor, em que se revelou a mais completa, a mais fascinante personificação das virtudes evangélicas.

            De origem plebeia, filho que era do mercador Pedro Bernardone, que se enriquecera no comércio de fazendas, escassa foi a instrução que recebeu e que, mesmo depois de convertido, não se preocupou de ampliar além do indispensável ao exercício do seu ministério, conservando assim a mente liberta das sutilezas teológicas e o coração inteiramente livre para amar com fervor e servir com fidelidade a causa de Jesus. Como, por outro lado, nunca veio a receber as ordens sacras, conservando-se sempre um filho do povo, mais propriamente, um leigo militante do Evangelho, essa mesma ignorância, que as efusões transfiguradoras do Senhor iluminavam de sabedoria, o preservou das seduções e do contágio da igreja oficial.

            Até aos 20 anos repartia a sua atividade entre os misteres da loja de seu pai e as estroinices a que o arrastavam a sua imaginação e o pendor para as aventuras, quando, ao rebentar, em 1202, o dissídio entre as cidades de Assis e Perugia, alistou-se e combateu pela causa popular da primeira, caindo, porém, prisioneiro e ficando detido como réfem um ano inteiro.

            Assinada a paz de 1203, foi restituído à liberdade e recomeçou a mesma vida de dissipações, de que lhe resultou adoecer gravemente e ter de pedir aos ares tonificantes das montanhas da Úmbria a restauração das energias combalidas.
           
            Durante essa crise de enfermidade a graça do Senhor o visitou, infundindo-lhe ao começo um desgosto profundo pela "vã saciedade dos prazeres a que se entregara", e, em seguida, mediante sonhos reveladores, despertando-lhe vivo o sentimento de sua vocação, cujo verdadeiro rumo, todavia, não se lhe apresentou senão depois de angustiosas perplexidades e porfiadas lutas interiores.

            Um primeiro sonho pareceu indicar-lhe que estava destinado a combater pela glória do Senhor, incorporando-se aos Cruzados, que por esse tempo se organizavam para ir à Terra Santa reinvidicar o Santo Sepulcro. Alistou-se, por isso, no exército de Gauthier de Brienne, que andava pelejando por conta do papa Inocêncio IIl. Novo sonho, porém, o dissuadiu, mostrando-lhe a inanidade das glórias cavalheirosas e fazendo-lhe sentir que não aos servos, improvisados em guerreiros, mas ao Senhor diretamente, empunhando as únicas armas espirituais e com desprezo do mundo, é que devia obedecer.

            Regressa a Assis, com extrema surpresa dos seus conterrâneos e, retirado do convívio dos companheiros de estroinice, refugia-se frequentemente no ermo, a procurar no recolhimento e na oração as inspirações para a escolha da direção que conviria imprimir a sua vida. A tranquilidade do ambiente, a paz religiosa que sentia penetrar-lhe a alma o induziam a preferir a vida contemplativa como refúgio e defesas contra as seduções e o tumulto do século. A piedade, porém, pelas misérias do mundo e a profunda simpatia humana, que sempre manifestara por todos os sofredores e constituía; por assim dizer, o substrato de sua natureza comunicativa e amorosa, o convidavam à ação. Mas de que modo?

            Nessas dolorosas perplexidades se lhe atribulava o espírito, até que um dia, entrando na pobre e arruinada capela de S. Damião, como tantas vezes o fizera, prosternado em oração diante do altar, julgou receber a orientação que procurava, ouvindo, maravilhado e enternecido, a voz do Senhor que lhe dizia: "Vai, Francisco, restaura a minha casa que como vês, ameaça ruina".

            Era, com efeito, a deslumbradora revelação, que o Senhor lhe fazia, da missão espiritual a que o destinava. Amortalhado contudo nas obscuridades da matéria, não tendo ainda aberto o entendimento à nítida percepção das divinas verdades, interpretou Francisco literalmente a amorosa intimativa e entrou resolutamente a trabalhar pela restauração material do pequenino templo, logrando mediante esmolas, que diligentemente pedia, ver, no prazo de três anos, concluída não, somente essa obra, mas as da igreja de S. Pedro e do santuário de Nossa Senhora dos Anjos, ou da Porciúncula, para as quais do mesmo modo trabalhou.

            Foi somente ao fim desse tempo, isto é, em 1209 que, assistindo à missa nessa mesma igreja da Porciúncula, a verdadeira natureza da sua missão, como súbita claridade, lhe penetrou o espirito, ao ouvir o celebrante ler os seguintes versículos do Evangelho, contendo as instruções dadas por Jesus aos seus discípulos:

            "Ide e pregai, dizendo que está próximo o reino dos céus. -Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios, dai de graça o que de graça recebestes. Não possuais ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cintas, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento."

            Compreendeu então o sentido espiritual daquelas palavras que o Senhor lhe fizera ouvir na capela de S. Damião: a Casa, na iminência de ruína, que Ele lhe ordenara saísse a restaurar, não eram os templos de pedra, mas a Igreja cristã, em sua verdadeira significação - ecclesia - formada pela comunhão dos crentes, periclitante, de um lado, pelas deturpações e pelos exemplos desmoralizadores dos ministros do culto, do outro e como consequência, pelo declínio da fé e da caridade patenteado na dissolução dos costumes e na indiferença religiosa que lavravam, como sintomas alarmantes, entre o próprio povo.

            Quis, não obstante, obter uma confirmação da verdade que se lhe patenteara e, encaminhando-se pouco depois, com dois companheiros, Bernardo de Quintavalle e Pedro de Catania, cônego da catedral de Assis, à igreja de S. Nicolau, "tomou do altar o Evangelho e lhes releu o trecho que decidira de sua vocação, tendo tido o cuidado de se recolherem previamente, a fim de receberem, pela prece, a inspiração que desejavam.

            Assentindo eles, com ânimo resoluto, aquele programa de ação, Francisco de Assis formulou solenemente o compromisso, dizendo-lhes: "Irmãos, eis a nossa vida e a nossa regra e de todos que se nos queiram agregar".

            Assim deliberados, Bernardo de Quintavalle distribuiu pelos pobres os bens que possuía e, em companhia de Pedro de Catania e do patriarca - informa um seu biógrafo - que lhes lançou o hábito, composto de uma túnica de burel e uma corda", encaminharam-se os três para a Porciuncula onde construíram pobres cabanas, para se abrigarem, tendo em volta uma sebe que lhes servia de muro. O claustro - e que melhor lugar para o recolhimento e a oração a Deus - era a floresta em torno.

            Com essa absoluta singeleza estava criada a Ordem franciscana ou, mais propriamente, dos "irmãos menores", como a denominou intencionalmente o seu fundador, empenhado em fazer da Humildade e da Pobreza, que imortalizaram o seu ministério e o seu nome, os alicerces do edifício - renovação do primitivo - em que vinha convidar a abrigar-se a cristandade, na iminência de extravio.

            E como um tímido veio d’água, que em breve se faria caudal irresistível, começou a obra de evangelização pela prédica e o exemplo, não sem molestas resistências iniciais, opostas pela ignorância popular. Para obterem o alimento, ora ajudavam os agricultores nos trabalhos de colheita, ora esmolavam pelas ruas, expostos à irreverencia dos garotos.

            "Quando mendigavam pela cidade, sofriam não poucos vexames, sobretudo das famílias dos penitentes, as quais lhes não perdoavam a perda das riquezas". Deles se ocupa a Lenda dos Três Companheiros, nestes termos:

            "Muitos tomavam os irmãos por mariolas ou doidos e se recusavam a recebe-los em casa, com receio de serem roubados. Assim, em muitas localidades, depois de terem recebido toda a sorte de ultrajes, não achavam outro refugio, à noite, senão os portais das igrejas ou das casas.

            "Havia pessoas que lhes atiravam lama, outras lhes metiam dados nas mãos e os convidavam a jogar; outras se lhes penduravam do capuz e deixavam-se arrastar assim. Vendo, porém, que os irmãos estavam cheios de alegria no meio das tribulações, que não recebiam nem levavam dinheiro e, pelo amor uns aos outros, se faziam reconhecer como verdadeiros discípulos do Senhor, muitos sentiam-se arguidos no coração e lhes vinham pedir perdão das ofensas. Eles lhes perdoavam de todo o coração, dizendo-lhes: "O Senhor vos perdoe". E lhes davam piedosos conselhos sobre a salvação da alma".

            Com esse poder incoercível do amor e da humildade conseguiram não somente vencer as desconfianças e oposições da turba ignorante, mas ver aumentar o número dos irmãos, como eles, resolvidos a adoptar a mesma vida de renúncia, para prédica e exemplificação dos ensinos de Jesus. Francisco de Assis, entretanto, guiado sempre pelas inspirações do Alto, pressentindo o perigo que haveria para a sua obra em desenvolver-se á revelia e sem permissão da autoridade pontifícia, no ano seguinte, isto é, em 1210 partiu para Roma, com alguns companheiros, a fim de pedir a Inocêncio IV a aprovação da "regra" que organizara para a comunidade. Repelido ao começo com rudeza, terminou por obter a desejada aprovação, graças a uma expressiva alegoria com que, descrevendo a investidura da missão que o Senhor lhe havia dado, logrou vencer a resistência do pontífice.

            De regresso a Assis, já não teve que pregar diante de auditórios improvisados, que se formavam nas ruas e nas praças publicas, aos quais - informa ainda o cronista - "se juntavam membros do clero secular, monges, homens instruídos e mesmo ricos, nem todos certamente se convertendo, mas sendo-lhes impossível esquecer aquele desconhecido que um dia tinham encontrado no caminho e em algumas palavras lançara a perturbação e o temor até ao fundo de seus corações".

            A situação mudara. As pessoas que o tinham como herege, a ele e aos seus companheiros, se tranquilizavam, sabendo-o munido de autorização do sumo pontífice, e Francisco entrou a pregar na igreja de São Jorge, em breve tornada insuficiente para conter a multidão que acorria a ouvi-lo, de sorte que teve de transferir as suas prédicas para a catedral de Assis, crescendo sempre o número dos que a sua palavra inspirada convertia à fé e ao serviço do Senhor.

            As pobres cabanas, por isso, já não bastavam também para abrigar o crescente número dos irmãos que entravam para a Ordem, valendo-lhes nessa conjuntura a generosidade dos beneditinos, que lhes fizeram doação do santuário da Porciúncula, para uso perpétuo da nova comunidade.

            A glória, o esplendor perfeito da Ordem dos irmãos menores aí se expandiu durante 10 anos, período em que viveu santamente impregnada do espírito cristão, consoante a regra de 1210, a qual, vasada em preceitos e versículos do Evangelho, "derivava quase unicamente da fascinação exercida pelo santo" - refere um seu biógrafo. - "Segui-la, era imita-lo; aceita-la, era crer nas suas palavras com uma fé interior perfeita e ardente."

            "Tudo - prossegue - se passava com simplicidade inaudita. Em teoria, a obediência ao superior era absoluta; na prática, vemos a cada instante Francisco dar aos companheiros completa liberdade de ação. Entrava-se na Ordem sem noviciado de espécie alguma: bastava dizer a Francisco que se queria levar com ele a vida de perfeição evangélica e prova-lo, dando aos pobres tudo o que se possuísse."

            Em 1212 ingressaram na Ordem os mais notáveis companheiros do patriarca: Silvestre, João, Masseo, Junipero, Rufino e Leão.

            Nesse mesmo ano, a jovem Clara, da família dos Sciff, que se extasiara a ouvir Francisco pregar na catedral de Assis, resolvida a abandonar a vida faustosa da sociedade a que pertencia e dedicar-se ao serviço da pobreza, abandona a casa paterna, em companhia de duas amigas, e faz perante o patriarca o voto de consagrar-se à vida de caridade cristã. Contava 18 anos de idade.

            Com a nova doação, feita pelos monges de S. Bento, da capela de S. Damião, poude santa Clara instalar a sua comunidade, cuja residência era um hospital, para onde Francisco de Assis enviava os enfermos, principalmente leprosos.

            Aí - para resumirmos estas indispensáveis referencias - durante quarenta e dois anos realizou a santa, ou melhor, a irmã Clara uma fecunda obra de evangelização pelo fato, paralela à de Francisco de Assis, induzindo as pessoas do seu sexo a renunciar como ela às vaidades do mundo, não para se engolfarem na vida exclusivamente contemplativa, mas, alternando a ação com a contemplação, para operarem prodígios de caridade cristã, pela assistência aos leprosos, com que imortalizaram, por sua parte, o apostolado franciscano.