AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1935
2b
Dez dias apenas depois daquele em
que o Senhor Jesus "foi assunto ao céu",
achando-se os apóstolos reunidos em Jerusalém, uma inesperada transfiguração se
lhes operou, semelhante àquela de que fora teatro o cimo do Tabor.
Se aí o Cristo, envolto em
deslumbrante auréola, havia conversado com os espíritos visíveis de Moisés e de
Elias, em presença de Pedra, Tiago e João, no cenáculo em que ocorreu a
poderosa manifestação do Espírito Santo, foram as "virtudes do céu" que, sob a visível aparência de "umas como línguas de fogo",
precedidas de "um estrondo como de
vento que soprava com ímpeto", repousaram sobre os apóstolos, em cada
um desenvolvendo os dons supranormais, mediante cujo influxo não somente eles,
homens rudes e incultos, entraram a falar em vários idiomas, que lhes eram
desconhecidos, perante a numerosa assembleia de israelitas e forasteiros de
procedências diversas, que ali acorreram, atraídos pelo estrondo precursor da
manifestação, mas adquiriram, no mesmo instante, a consciência profunda do seu
ministério, tornando-se de então em diante "homens novos”, sem mais vacilações
nem desfalecimentos, aptos para afrontar, destemidos,
os poderes humanos e as resistências adversas do invisível, que lhes seriam, de
concerto com aqueles, frequentemente opostas.
De posse da herança maravilhosa que
lhes transmitira o Mestre e em que acabavam de ser confirmados, converteram-se
verdadeiramente em bandeirantes da fé, empreendendo frequentes excursões, de
que a cidade de Jerusalém se constituiu o núcleo de irradiação, e indo alguns
deles aos mais remotos confins da Palestina - posteriormente até muito mais
longe - levar a boa nova de que o reino de Deus estava próximo e anunciar, não
o Senhor crucificado, mas o Cristo redivivo.
As conversões, desde o começo,
entraram a ser obtidas aos milhares e não faltavam prodígios para testificar a
autoridade de que se achavam investidos.
Pedro e João, dirigindo-se um dia ao
templo, a pragar, como o costumavam, notaram, junto à porta denominada Especiosa, a presença de um homem que
era coxo de nascença e ali estendia a mão aos transeuntes, de cujos óbolos
vivia. Detiveram-se um instante a contempla-lo e, como se obedecesse a uma
inspiração do Alto, disse-lhe Pedro:
- Olha para nós.
Atendido, começou de acentuar a sua
condição de pobreza, que sempre foi o apanágio e a ufania dos verdadeiros
discípulos de Jesus, para em seguida transfundir-lhe a graça de que se sentia
portador, nestes termos:
- Não tenho prata nem ouro; mas o
que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda.
E no mesmo instante, auxiliado pelo
apóstolo, que o tomou pela mão direita, "os pés e artelhos se lhe firmaram" e o homem começou a andar,
entrando, com os dois, no templo, bem dizendo a Deus, na presença do povo, que
se maravilhava do ocorrido.
Aproveitou Pedro o fato para uma
prédica exortativa, secundado por João, a qual, porém, não tardou em suceder a
primeira reação dos vigilantes e interesseiros guardas da tradição
mosaica. Foram ambos presos e levados no dia seguinte à presença do Sinédrio,
sendo contudo soltos, depois de ameaçados, para serem, algum tempo depois,
novamente metidos no cárcere, por intervenção do sumo sacerdote e dos saduceus,
enfurecidos de inveja contra eles.
"Mas um anjo do Senhor - refere o texto (Atos, V, 19) - abrindo-lhes de noite a porta do cárcere",
os restituiu à liberdade, ordenando-lhes que voltassem a pregar no templo, o
que fizeram no dia seguinte com o mesmo desassombro.
Sucediam-se assim alternadamente a difusão
da palavra divina e as perseguições que visavam embaraça-la,
Estevão, "cheio de graça e de poder", na plenitude da mocidade, que
comunicava ao seu verbo inspirado os arroubos do entusiasmo, tornando-o a tal
ponto contundente que
os adversários "não podiam resistir à
sabedoria e ao Espírito pelo qual ele falava", do mesmo passo que
"fazia grandes prodígios e milagres
entre o povo", é também preso e
conduzido á reunião do Sinédrio, acusado, mediante falsos testemunhos, de
proferir palavras subversivas "contra
o lugar santo e contra a lei".
Defende-se com eloquência,
produzindo um longo discurso baseado nas Escrituras, mas, não podendo conter a
sua indignação, remata-o com veementes apóstrofes aos "homens de dura cerviz, incircuncisos de
coração e de ouvido", que se haviam tornado "traidores e homicidas" relativamente ao Justo anunciado nas
profecias, o que lhe valeu
ser violentamente arrastado, posto fora da cidade e apedrejado.
"E as testemunhas - refere o autor dos Atos dos Apóstolos - depuseram as suas capas aos pés de um moço
chamado Saulo. E apedrejaram Estevão", até vê-lo expirar, invocando o
Senhor Jesus e suplicando o perdão para seus algozes. "E Saulo -
acrescenta a narrativa - consentiu na sua morte".
Não somente consentiu nessa bárbara
imolação da primeira vítima ilustre que, depois do Mestre, havia de continuar a
gloriosa cadeia dos Sacrificados pela redenção dos homens, senão que,
arrebatado nos desvarios do zelo farisaico, marcaria de um violento contraste a
primeira fase da missão que lhe estava reservada, fazendo-se implacável
perseguidor da Igreja cristã.
É assim que, munindo-se de cartas do
sumo sacerdote para as sinagogas de Damasco, pôs-se a caminho, resolvido a
fazer prender e conduzir para Jerusalém quantos encontrasse no serviço do
Senhor.
"Vaso escolhido, entretanto, para levar o Seu nome perante os gentios e
os reis, bem como perante os filhos de Israel", essa atitude inicial
de Paulo serviria apenas para demonstrar até que ponto, amortalhado na matéria,
exposto às adversas sugestões do oculto, pode o espirito, mesmo de tamanha
envergadura, padecer uma verdadeira obsessão que, produzindo-lhe o fanatismo
religioso, lhe oblitere o senso da missão com que viera ao mundo e a cujo
desempenho esteve ele, Paulo, na iminência de falir.
Mas o Senhor, vigilante, o
observava. Tanto, pois, que, "respirando
ainda ameaças e morte contra os Discípulos", se avizinhava de Damasco,
sentiu-se Paulo de repente envolto em deslumbrante claridade. Cai por terra, e
uma voz, que lhe não era certamente estranha, percute lhe a consciência e os
ouvidos: "Saulo, Saulo, porque me
persegues?"
Acordado assim do pesadelo
espiritual que o atormentava e que até então estivera longe de perceber, brada
em resposta: "Quem és tu, Senhor?"
E logo a transfiguradora revelação:
"Eu sou Jesus, a quem tu persegues".
Estava operada a sua conversão e
definitivamente neutralizada a manobra do AntiCristo - que outra não era a
origem da obsessão de Paulo. - E aquela dileta ovelha, algum tempo tresmalhada,
regressava triunfante ao aprisco, não somente para ser a coluna viva, o atleta
inconfundível da organização cristã, mas para ser também glorificada no
indispensável batismo das perseguições, consoante o aviso dado pelo Mestre, em
visão, ao discípulo Ananias, de Damasco: "Eu lhe mostrarei quanto lhe é necessário padecer pelo meu nome".
Curado, por esse discípulo, da
cegueira psíquica, de que fora momentaneamente acometido na estrada, ao
manifestar-se lhe o Senhor, é incorporado à comunhão dos crentes e, depois de
batizado, entra ali mesmo em Damasco a pregar que "Jesus é o Filho de Deus", deixando atônitos os israelitas da
cidade, que não compreendiam essa mudança de atitude e "deliberaram entre si tirar-lhe a vida".
Conseguindo, porém, subtrair-se à
ronda sinistra dos que “guardavam também
as portas dia e noite para o matar", auxiliado pelos discípulos, que
"o tomaram de noite e o desceram
pela muralha, baixando-o numa alcofa", encaminha-se Paulo a Jerusalém
e aí, depois de vencida a natural relutância dos fieis, ainda atemorizados por
suas recentes façanhas, integra-se na comunidade dos apóstolos, cuja atividade
evangelizadora, até esse momento circunscrita aos da nação judaica, se incumbe
de ampliar aos gentios, imprimindo à propagação do Cristianismo o cunho de
universalidade, que estava nos desígnios do Mestre.
Antes,
porém, de acompanharmos neste rápido escorço a trajetória desenvolvida pela Boa
Nova, até implantar-se na capital dos Césares, para aí receber o batismo
supremo das perseguições em massa, detenhamo-nos a assinalar um dos caracteres
mais expressivos que, logo de começo, lhe foi impresso pelos imediatos
continuadores de Jesus, suficientemente compenetrados do seu pensamento, que de
resto continuava a assisti-los, inspirando-lhes os movimentos, para sentirem a
necessidade imperiosa de conformar não apenas os seus atos individuais, mas as
próprias condições de sua vida, coletivamente organizada, com os fraternos e
igualitários preceitos da doutrina.
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