Campanha Diferente
Irmão X
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Novembro 1962
Esperava por você justamente aqui,
para tratarmos de assunto sério - falou-me Capistrano, velho amigo agora no
Plano Espiritual, que conheci maduro e próspero, em pequena loja de Botafogo,
ao tempo em que ainda me acomodava à carcaça enferma.
Em torno de nós, na esquina da rua
Real Grandeza, grupos fraternos de amigos desencarnados chasqueavam (zombavam) , alegres, dos
carros que despejavam criaturas e flores para as comemorações dos finados,
junto ao aristocrático cemitério de São João Batista.
Corbelhas e buquês, recordando joias
da primavera, derramavam-se de mãos ricas e pobres, engelhadas e juvenis, em
homenagem aos afetos queridos, que quase todos os visitantes supunham para
sempre estatelados ali no chão.
- Soube, meu caro - prosseguiu
Capistrano singularmente abatido -, que você ainda escreve para os vivos do
mundo...
E, apontando para respeitável
matrona, acompanhada de dois carregadores que portavam ricos vasos, continuou:
- Grafe uma crônica, recomendando a
extinção de semelhantes excessos. Mostre a inconveniência do orgulho e da
vaidade na casa dos mortos imaginários da Terra, que hoje reconhecemos deve ser
um recinto de silêncio e oração. Em toda a parte, o progresso marca no mundo
admiráveis alterações. Guerras modificam a geografia, apóstolos renovam leis, a
Civilização aprimora-se, engenhos varrem o espaço, indicando a astronáutica do
futuro; no entanto, com raras exceções de alguns países que estão convertendo
necrópoles em jardins, os nossos cemitérios repousam estanques, lembrando
parques improdutivos, onde se alinham primorosas obras de arte. Órgãos de fiscalização
e sistemas de vigilância controlam mercados e alfândegas, na salvaguarda dos
interesses públicos, e ninguém coíbe os investimentos vãos em tanta riqueza
morta.
Capistrano fitou-nos, como a
verificar o efeito das palavras que pronunciara, veemente, e seguiu adiante:
- Imagine você que também errei
nisso por faltar-me orientação. Tive uma filha única que foi todo o encanto de
minha viuvez dolorida. Marília, aos dezoito janeiros, era a luz de minh'alma.
Criei-a com todo o enternecimento do jardineiro que observa, enlevado, o
crescimento de uma flor predileta. Entretanto, mimada por meus caprichos
paternos, minha inexperiente menina negou-me todas as previsões. Enamorou-se,
na praia, de um rapaz doidivanas, que se entregava aos exercícios da bola, e,
certa feita, menosprezada por ele, tomou violenta dose de corrosivo,
relegando-me à solidão. Ao vê-la, nas raias da agonia, sem que meu amor pudesse
arrebatá-la ao domínio da morte, rendi-me, dementado, a total desespero. Nunca
averiguei as razões que lhe ditaram atitude assim tão drástica
e jamais procurei o moço anônimo que, decerto, ao abandoná-la, não teria a
intenção de fazê-la infeliz. Passei, no entanto, a cultuar-lhe loucamente a
memória. Despendi mais da metade de minhas singelas economias para erigir lhe
um túmulo de alto preço... E, por vinte anos consecutivos, adorei o monumento
inútil, lavando frisos, fazendo lumes, mudando enfeites, plantando flores.
Envelheci chorando sobre a lápide, e, quando os meus olhos cansados mal
divisavam o custoso jazigo, eu tateava o relevo das chorosas legendas... Um
dia, chegou minha vez. O coração parou, deslocando-me do corpo hirto. No
entanto, embora desencarnado, apeguei-me ao sepulcro que venerara, estirando-me
nele. Se amigos logravam afastar-me para esse ou aquele mister, acabava
tornando ao formoso monstro de mármore para lamentar-me e clamar pela filha que
não conseguira ver. Quatro anos rolaram sobre minha aflitiva situação, quando,
em determinada manhã, experimentei contentamento
indizível, sentindo-me à feição da terra gelada que se reaviva ao calor do Sol.
Inexplicavelmente contemplava Marília na tela da saudade, qual se lhe fosse
receber, de novo, o beijo de amor e luz, quando antigo orientador me buscou,
presto, e, conduzindo-me, bondoso, à rua General Polidoro, apontou-me um homem
suarento e cansado, a carregar ternamente, nos braços, triste menina muda,
paralítica e pobre... Ao fixar-lhe os olhos embaciados de criança-problema, a
realidade espiritual clareou-me a razão.
Surpreendera Marília reencarnada, em rudes padecimentos expiatórios, e, mais
tarde, vim a saber que renascera por filha do mesmo homem que lhe fora motivo
ao gesto tremendo de deserção... Desde essa hora, fugi das ilusões que me
prendiam a pesadelo tão longo!..
Acordei renovado, para novamente
respirar e viver, trabalhar e servir...
Capistrano enxugou o pranto que lhe
corria copioso e ajuntou com amargura:
-
Escreva, meu amigo, escreva às criaturas humanas e informe, claramente, que os
vivos da
Espiritualidade agradecem o respeito e o carinho com que lhes dignificam os
restos, mas rogue
para que se abstenham destes quadros fantásticos de vaidade ostentosa com que
se pretende honrar o nome dos que partiram... Peça para que socorram as
crianças desajustadas e enfermas, enjeitadas e infelizes, com o dinheiro
mumificado nestes cofres de cinzas... Diga-lhes para que se compadeçam dos
meninos desamparados e que, provavelmente, muitos daqueles entes inolvidáveis,
que procuram nos carneiros de luxo, estão hoje em provações cruéis, nos
institutos de correção ou no leito dos hospitais, na ociosidade das ruas ou em
pardieiros esburacados que o progresso esqueceu... Fale da reencarnação
e explique-lhes que muitos dos imaginados mortos que ainda amam, jazem sepultas
em corpos vivos, quase sempre desnutridos e atormentados, suplicando alimento e
remédio, refúgio e consolação...
A palavra do amigo silenciou,
embargada de lágrimas, e aqui me encontro, atendendo à promessa de redizer-lhe
a história numa página simples. Entretanto, não guardo a pretensão de ser
prontamente compreendido, de vez que se eu estivesse na Avenida Rio Branco ou
na Praça Mauá, envergando impecável costume de linho inglês, entre homens ainda
encarnados, eu diria também que este caso é um conto de mortos para
os mortos, e que os mortos devem continuar mortos...
Nenhum comentário:
Postar um comentário