pgs. 79/80 de
‘Sonhos Estelares’ de Camille Flammarion
(Edição FEB - 1941)
-com tradução de Arnaldo S. Thiago-
O
Universo Anterior
"Tive
um sonho, que não era bem um sonho.
Achava-me
como observador do mundo há cerca de cem milhões de anos, habitando um planeta situado
no cortejo de uma das estrelas longínquas do espaço, em meio de um universo sideral
análogo ao que existe atualmente, ainda não fosse o mesmo, pois que o universo
de então está hoje destruído e o universo de hoje existia ainda.
Havia,
como em nossa época, constelações e estrelas, mas não eram as mesmas
constelações nem as mesmas estrelas.
Havia
sóis, luas, terras habitadas, dias, noites, estações, anos, séculos, seres, impressões, ideias, fatos; mas não eram os
mesmos.
A
Terra em que nos achamos não estava ainda formada. Os materiais que a compõem flutuavam
no espaço em estado de nebulosidade difusa, gravitando em torno do foco solar
que gradualmente se condensava. Ainda não havia água, nem ar, nem terra, nem
pedras, nem vegetais, nem animais, nem mesmo corpo algum dos reputados simples
pela química: oxigenio. hidrogênio, azoto (nitrogênio), carbono, ferro, chumbo, cobre, etc. O gás que devia, por suas
condensações e suas transformações ulteriores, dar nascimento às substâncias diversas.
gasosas, líquidas ou sólidas, que constituem atualmente o nosso globo e seus habitantes,
era um gás simples, homogêneo, contendo em seu seio - crisálida inconsciente -
as possibilidades do futuro. Nenhum profeta, porém, teria podido pressentir o
desconhecido que dormitava em seu mistério.
Oferecia
então o nosso planeta o aspecto dessas vagas nebulosas de gás, que o telescópio
descobre no fundo dos céus e que o espectroscópio analisa. No meio das estrelas
flutuava a nebulosa solar em via de condensação.
A
humanidade, com toda a sua história, cada um de nós com todas as suas
energias, todos os seres terrestres -
estavam em gérmen nessa nebulosa e em suas forças; mas os seres e as coisas que
conhecemos, não deviam chegar à existência senão após a longa incubação dos
séculos. No lugar do que devia ser a Terra, nada mais havia do que um gás
flutuando na imensidade estrelada. Ainda não era esse, realmente, "o lugar"
em que nos achamos atualmente, porquanto a Terra, os planetas e todo o sistema
solar vêm de longe e avançam rapidamente através da imensidade.
*
Na
história da criação, cem milhões de anos passam como um dia; apagam-se,
dissipam-se - fugitivo sonho - no seio da eternidade que tudo absorve.
*
Então,
ainda que o nosso planeta não existisse, havia como hoje estrelas, sóis,
sistemas solares e mundos habitados. As humanidades que povoavam esses mundos
viviam sua vida, como nós vivemos a nossa.
Era
um espetáculo comovente para o pensador, contemplar o grande trabalho de todos esses seres. Na indiferença ou na paixão, no
prazer ou na dor, no riso ou nas lágrimas, eles viviam, agitando-se ou
repousando; combatendo, perdoando; acusando, esquecendo; amando, odiando;
arrebatados no turbilhão fatal; nascendo, morrendo; sucedendo-se cegamente
através das gerações e dos séculos; ignorantes da causa que os fez nascer;
ignorando a sorte futura das mônadas e das almas; joguetes da Natureza que sopra
mundos e seres, estrelas e átomos, séculos e minutos, como essas bolhas de
sabão que as crianças fazem flutuar no espaço; todos precipitando-se no mar, à
imagem desses turbilhões de areia que o vento do deserto levanta e
transporta nas asas dos furacões ou das brisas suaves. Era espetáculo idêntico
ao que nos oferece hoje a Terra: multidões animadas combatendo pela vida e não
alcançando nada mais do que a morte.
O
que mais nos deve impressionar, nessa contemplação retrospectiva, é que, nessa
época, a Terra não existia. Nenhum dos seres humanos que vivem atualmente, que
viverão no futuro, ou que têm vivido no passado, nem estava ainda para nascer.
Nada, nada do que existe em torno nós, existia. E, não obstante, sobre esses
mundos antigos, desde muito desaparecidos, tinham as humanidades que os
animavam a sua história atual e presente, cidades florescentes, campos cultivados,
organizações sociais, ciências e artes, lutas e combates, leis e tribunais, e
os árbitros da inteligência, historiadores, economistas, políticos, teólogos, literatos, esforçavam-se por
distinguir o verdadeiro do falso e por escrever conscienciosamente o que
chamavam - eles também - a história universal. Para todos eles, a criação limitava-se
ao seu tempo e ao seu habitat; para todos eles, aí acabava a criação: o resto
do universo sem limites perdia-se na insignificância, eclipsado por sua
atualidade. Não imaginavam que antes deles uma eternidade já houvesse
transcorrido e que após eles uma eternidade transcorreria ainda.
Viviam,
sábios ou ignorantes, ilustres ou obscuros, ricos ou pobres, opulentos ou miseráveis,
religiosos ou céticos, viviam como se a era em que se encontravam jamais devesse
acabar. Estes amontoavam, sem descuido de um minuto, uma fortuna que seus herdeiros
apressar-se-iam em dissipar; aqueles sonhavam e contemplavam, sem receio do dia
de amanhã; aqui, batalhões inflamavam a populaça por meio de clamores
patrióticos; mais longe, pares amorosos casavam no mistério suas almas
frementes. Premidos, como supunham eles, por negócios de uma importância imperiosa,
enlevados na atração do prazer, ou arrebatados nas asas da ambição, os seres de
então, como os de hoje, precipitavam-se no turbilhão da vida. Esses povos tiveram, como nós, dias de
glória e dias de desespero: tiveram os seus 89 e os seus 93, como os seus Austerlitz e os seus
Waterloo. Lá também os dramas da politica tiveram os seus 18 Brumário e os seus 2 de
Dezembro. Do mesmo modo, não há muito ainda, sobre a nossa própria Terra, resplandecia a
vida das Babilônias, das Tebas, Nínive, Memphis e Cartago; a glória das Semiramis, dos Sesostris,
dos Salomão, Alexandre, Cambises, César, ao passo que em nossos dias o silêncio das fúnebres
solidões reina soberanamente sobre as ruínas dos palácios e dos templos, na
sono da noite avassaladora. Através da historia do Universo imenso somente
povos, reinos, impérios têm desaparecido; mas também mundos inteiros, grupos de
mundos, arquipélagos de planetas, universos!
.....................................................
Não
se pode pensar sem terror na inumerável quantidade de seres que tem vivido
sobre todos os mundos hoje desaparecidos, em todos
os espíritos superiores que têm pensado, agido, guiado as humanidades na via do progresso, da
luz e da liberdade: não se pode pensar nesses PIatão, nesses Marco Aurélio,
nesses Pascal, nesses Pascal, nesses Newton dos mundos desaparecidos, sem
perguntar no que se transformaram eles. É muito fácil responder que deles nada
resta, que assim como nasceram também morreram, que tudo é pó e em pó se
converte: eis aí uma resposta fácil mas pouco satisfatória.
*
Certamente,
ninguém pode ter a ingênua pretensão de desvendar o grande mistério. Para
tratar desses insondáveis problemas de eternidade e de infinito,
estamos pouco mais ou menos na situação de formigas que procurassem entre si informar-se
a respeito da história da França. Malgrado todas as suas aptidões intelectuais tão
legitimamente reconhecidas, aliás, mal grado toda a sua boa vontade, todos os
seus esforços e todas as suas pesquisas, é bem provável que não fossem elas
além da história do seu formigueiro e se não elevassem à concepção de ideias um
pouco sensatas sobre os humanos e sobre os seus negócios. Para elas,
evidentemente, os verdadeiros proprietários dos bosques e dos parques, são as
formigas, os pulgões domesticados por elas e os parasitas da Terra são os insetos
não comestíveis que as incomodam. Sabem que os pássaros existem? É duvidoso.
Quanto aos homens, é bem provável que elas ignorem a sua existência (a menos,
entretanto, que as dos países civilizados tenham em sua linguagem antenal uma
expressão que corresponda à ideia de fabricante de açúcar, pasteleiro, cozinheiro,
ou confeiteiro, ou de algum inimigo implacável tal como jardineiro). Mas ainda que acreditassem em nossa
existência, não poderiam evidentemente adquirir sobre a raça humana e sua
história, mais do que ... ideias de formigas.
*
Seria,
sem dúvida, tão inútil quão infantil perdermo-nos nas nebulosidades da metafísica
para alcançar uma solução que verossimilmente nos escapará sempre; não é,
porém, um objeto de contemplação menos digno de ocupar nossas ideias, o de
pensar nesse aspecto particular da criação: o Tempo; como também o de pensar
que de toda eternidade terras habitadas como a nossa flutuaram na luz de seus
respectivos sóis, que de toda a eternidade tem havido humanidades gozando as alegrias
da vida, e que de toda eternidade a hora do fim do mundo soou no quadrante secular
dos destinos, amortalhando alternativamente os universos e os seres no sudário
do aniquilamento e do olvido.
Porque
nos é impossível conceber um começo que não fosse precedido de uma eternidade
de inação, e por tão longe quanto nos possam conduzir as ciências de
observação, mostram-nos elas, por toda parte, forças em perpétua atividade.
Se
o espaço infinito nos deslumbra por sua idade sem limites, a eternidade sem
começo e sem fim, ergue-se, talvez ainda mais formidável,
diante da nossa contemplação terrificada. As vozes do passado falam-nos do
fundo do abismo: falam-nos do futuro.
O
passado dos mundos desaparecidos, é o futuro da Terra."
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