XXVII
‘Apreciando a Paulo’
comentários em torno
das Epístolas de S. Paulo
por Ernani Cabral
Tipografia Kardec – 1958
“Que os homens nos considerem como
ministros do Cristo,
e dispenseiros dos ministérios de
Deus.
Além disso, requer-se nos
dispenseiros que cada um se ache fiel.
Todavia, a mim mui pouco se me dá de
ser julgado por vós,
ou por algum juízo humano;
nem eu tampouco a mim mesmo me
julgo.
Porque em nada me sinto culpado;
mas nem por isto me considero
justificado,
pois quem me julga é o Senhor.”
(Paulo - 1ª Epístola
aos Coríntios, 4:1 a 4)
Nós, espíritas cristãos, que nos
dedicamos com sinceridade à Terceira Revelação de Deus, somos também, como o
apóstolo - embora longe dele em estatura moral -, ministros do Cristo, a
serviço de sua causa, que é a da verdade e do amor espiritual.
Paulo fala aqui nos “mistérios de
Deus”. Sendo a inteligência humana limitada, muitos mistérios para nós
continuarão a existir, como frutos de nossa percepção restrita ou apoucada.
Sabemos que os mistérios são consequência
de nossa ignorância; porém, à medida que o homem evolui, eles vão desaparecendo,
porque as trevas da incompreensão são espanca das pela luz do entendimento. O
estudo e a reflexão, ao lado de um procedimento reto, dão à criatura humana a
serenidade de espírito para compreender e sentir a justiça de Deus, que sempre
se manifesta na vida.
Cada um é artífice de sua evolução e
sacerdote de si mesmo.
Se somos deuses, como está nas
Escrituras (Isaías, 41:23; Salmos, 82:6) como Jesus mesmo repetiu (João,
10:34); se nosso estado espiritual ainda é de imperfeições, mas se buscamos a
fonte perene de amor e de verdade, que é nosso Pai Celestial, algum dia os
mistérios desaparecerão e tudo compreenderemos, quando nossa cultura e nossa
moral atingirem, através dos séculos, a perfeição Sideral.
Todavia, antes de entender os
aspectos fundamentais da verdade, que só o Espiritismo logicamente esclarece o
homem tem inquietações e temores. Mas depois que a fé raciocinada, lhe dá a
certeza da imortalidade da alma e a elucidação dos pontos básicos da
filosofia da vida, depois que adquire a convicção da justiça e da misericórdia
da lei divina, ele trabalha, confia e espera, sem quaisquer dúvidas que lhe
toldem o Espírito.
O Divino Mestre aconselhou mesmo,
como regra de conduta:
“Não
se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. (João, 14:1)
Aquele que tem fé, jamais pode
mostrar-se perturbado; assim, quem crê em Deus verdadeiramente, não se irrita e
nem se contraria, mas confia sempre no Senhor, que ampara os que o buscam com
pureza de coração e firmeza de propósitos.
O próprio mal que nos sucede, é
sempre para nossa evolução, ou seja, para nosso bem. Será resgate ou
experiência, expiação ou provação. Mas se o Espírito suportar a prova
resignadamente (certo de que Deus não dá a cruz superior às forças), galgará
mais um degrau em sua trilha evolutiva, que o conduzirá mais tarde às regiões
de luz e de felicidade eternas. Fomos criados para uma destinação sublime e não
para o sofrimento; se padecemos, sendo Deus bom, é porque necessitamos de tal,
como meio imprescindível para nosso adiantamento moral.
Mas “requer-se nos dispenseiros que cada um seja fiel”, como adverte
Paulo, nesta sua Primeira Epístola aos Coríntios.
É preciso calma, humildade e
resignação, e não sentimento de revolta, que, além de nada resolver, ainda complica
os acontecimentos. Portanto, é indispensável muita fidelidade aos ensinamentos
de Jesus Cristo, Mestre querido, roteiro de nossa salvação.
Podemos enganar os homens, mas não a
Deus. Ele lê em nosso íntimo, e sabe da sinceridade de nossos propósitos.
Assim, que nosso coração jamais se turbe - sejam quais forem os acontecimentos
da vida -, pois que a angústia ou a revolta é falta de fé ou de confiança em
nosso Pai Celestial.
Se sofremos injustiças, é porque já
fizemos injustiças, nesta ou em vidas pregressas. É preciso que a lei se cumpra
para nosso resgate e elevação espiritual.
Mas, por outro lado, no cumprimento
do dever, não nos preocupemos com o juízo dos homens, conforme Paulo aqui nos
ensina.
É certo que o julgamento duro ou
perverso, o ato de injustiça ou de ingratidão, quando parte de companheiro ou
de familiar, dói profundamente. As feridas morais, não resta dúvida, são as
mais profundas. Contudo, o discípulo não é maior, nem melhor do que o Mestre,
como disse o divino Rabi. Se Jesus sofreu as incompreensões e as maiores
iniquidades, por que não poderemos passar por provações semelhantes? Destarte,
se quisermos ser cristãos, sigamos seu exemplo, fazendo tudo para não murmurar.
Se o julgamento injusto de um
confrade, por exemplo, nos afastar do serviço divino, é porque nosso propósito
de trabalhar ainda não era sincero, mas fraco ou indeciso. E como na parábola
do semeador, vieram os espinhos e sufocaram a semente. Qualquer pretexto
serviria, porque a palavra que tínhamos no coração caíra em pedregais e não
eram profundas as raízes...
É aconselhável sempre que nos
abstenhamos de julgar. Quem sabe se, em situação igual, não procederíamos pior?
Há sempre circunstâncias que revestem os fatos, às vezes ocultas, e que passam
despercebidas pelo julgado leviano.
Mas se nosso semelhante errar mesmo,
digno é de nossa piedade, de nosso perdão e de nosso amor. Quanto maior for a
culpa, maior deve ser a misericórdia para com o pecador. Escorraçá-lo do grupo
é demonstrar grande falta de caridade. O irmão que erra deve ser cercado de
carinho e não de censuras acres, a fim de que possa retroceder e voltar ao
aprisco. Lembremo-nos de que Jesus pediu perdão ao Pai Celestial até para seus
algozes, muitos dos quais
somos nós, os que nos encontramos aqui na Terra, em processo de reencarnação e
de ascensão espiritual pelo sofrimento.
Mas é difícil o homem apontar o lado
bom de seu semelhante, porém está sempre pronto para criticar o que lhe parece
digno de censura na conduta do irmão, e às vezes o faz com palavras veementes
ou rigorosas, quase sempre pelas costas, estraçalhando a reputação alheia. Esses
devem lembrar-se de que, portando-se assim, não estão agindo como cristãos, mas
como inimigos da obra de Deus, que é de perdão e de misericórdia. Não basta
frequentar sessões, nem a elas presidir ou falar bonito. É necessário ao
espírita, sobretudo, que busque sua própria transformação moral, lembrando-se
de que, “fora da caridade não há salvação”.
E precisamos cultivar a caridade, deixando de comentar a conduta dos que erram,
mesmo porque não somos perfeitos. E só mereceremos misericórdia de Deus, se
usarmos de misericórdia também.
Portanto, evitemos julgar! O
Cordeiro Imaculado, que tem a suprema autoridade, afirma: “Eu a ninguém julgo.” (João, 8,15).
Ele sabe que a lei divina é tão
perfeita, que prescinde de qualquer julgamento, pois “a cada um será dado segundo as suas obras.” (Mateus, 16:27)
Além disto, o Cristo de Deus, cheio
de generosidade, não veio para julgar o mundo, mas para salvar o mundo, como Ele
mesmo declarou (João, 12:47).
Recordemos ainda São Paulo, a tal
propósito:
“A
mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por algum juízo humano, nem
eu tampouco a mim mesmo me julgo.”
O complemento do problema é o
indivíduo não se julgar importante ou indispensável à obra, que é de Deus. O
Senhor quer nosso serviço, mas nós precisamos muito mais d'Ele, do que Ele de nós.
Nosso dever é o de trabalharmos com humildade, embora com a certeza de que nos
estamos conduzindo bem (na medida de nossa relatividade ou de nossas
imperfeições) e de que a justiça virá de cima e não de baixo, de Deus e não dos
homens. E quando provenha destes, é porque Deus assim o quis. Tudo o que somos,
tudo o que sofremos, tudo o que gozamos, está dentro da lei e d'Ele provém.
Como Jó, saibamos agradecer tudo, porque EIe é justo e bom.
Já de uma feita escrevi, repetindo o
ensinamento de um Espírito sincero, que só Deus encarna em si mesmo, simultaneamente,
os atributos de bondade e de justiça. Porque nós, quase sempre, sendo justos,
deixamos de ser bons; e, sendo bons, deixamos de ser justos. É difícil o
equilíbrio perfeito entre tais virtudes. Eis porque o julgamento só a Ele
compete. Só Ele sabe ser justo e bom, ao mesmo tempo.
Jesus Cristo, ensinando aos homens
que não era Deus, declarou:
“Não
há bom senão um só, que é Deus.” E completou a lição: “Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos.” (Mateus,
19:17, in fine.)
Tenhamos a convicção, contudo, de
que:
“O
que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia em abundância, em
abundância também ceifará.” (II Coríntios, 9:6)
Mas é preciso que a semeadura seja
isenta de orgulho ou de vaidade, sem propósitos de superioridades. Porém, ainda
aí o problema é individual e dispensa julgamento, porque só Deus conhece os
corações. Geralmente, nem nós mesmos conhecemos nosso mérito ou demérito. Ele é
quem dá valor ao trabalho, porque é o dono da lavoura e nós somos simples
trabalhadores, sujeitos ao seu arbítrio, em que podemos confiar.
Entretanto, não devemos trabalhar
com os olhos fitos na recompensa, porque faltará aí a pureza de coração, para
abundar o interesse, que diminui o grau do amor.
Sobre o julgamento, a regra geral é:
“Não
julgueis para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgardes
sereis julgados, e com a medida com que
tiverdes medido vos hão de medir a vós.” (Mateus, 7:1 e 12)
Tais palavras de nosso querido
Mestre deviam ser sempre objeto de recordação por parte de todos os cristãos,
pois somos muitas vezes apressados nas apreciações ou no juízo que fazemos de
nosso semelhante. É preferível que olhemos e que louvemos seu lado bom, pois toda
criatura de Deus o possui, em estado evolutivo,
E se há propensão ao mal ou ao erro,
é certo que todos a possuímos, em maior ou menor dose, sem que saibamos
exatamente nosso grau evolutivo. Portanto, sejamos rigorosos conosco, cada um
estudando a si mesmo e combatendo suas próprias imperfeições, mas sendo
misericordioso com o irmão, para merecer a misericórdia de Deus.
Se a regra geral é não julgar, há,
todavia, casos excepcionais em que devemos julgar. Tal é a missão do juiz, do
professor, do perito etc., daquele que se vê, por força do cargo ou das
circunstâncias, compelido a esse dever, a que não deve fugir. Para esses casos,
Jesus dá também a regra: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo
a reta justiça.” (João, 7:24)
Quando formos compelidos a julgar,
façamo-lo com ponderação e critério, com o propósito sincero de fazermos
justiça. A função do julgador é nobre, mas cheia de responsabilidade moral.
Tenhamos presente que daremos contas a Deus de todos os nossos atos.
Conhece-se o cristão pela conduta e não somente pela fé. É através de nossos
atos que atestaremos viver o Evangelho. Ao julgarmos, conseguintemente,
procedamos de acordo com nossa consciência, pois cada um possui dentro de si o
discernimento entre o bem e o mal, o justo e o injusto, que é a característica
do ser consciente.
E procuremos dar a César o que é de
César, como damos a Deus o que é de Deus.
Paulo de Tarso termina os versículos
que comentamos, dizendo:
“Em
nada me sinto culpado; mas nem por isto me considero justificado, pois quem me
julga é o Senhor.”
Por mais acertada que seja nossa
conduta, nada de vanglórias, nem de jactâncias, que são orgulho ou vaidade.
Sejamos humildes e confiantes em Deus. Esforcemo-nos por ter uma conduta
cristã; sejamos sinceros para com o Senhor.
Mas se o apóstolo dos gentios, aquele
gigante da fé, tinha dúvidas sobre seu próprio mérito, quanto mais nós,
pequenos trabalhadores da seara do Cristo?
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