quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Do Cristianismo - O pensamento de Hermínio Miranda






           "... Não sei qual o ponto de vista do leitor, mas, para mim, prefiro fazer uma distinção bem nítida, sem a qual não é possível compreender racionalmente a questão: primeiro, a substância doutrinária do Cristianismo; segundo, a história do Cristianismo, desde suas origens até os dias de hoje, e, finalmente, a teologia dogmática que se teceu à sua volta.     

            No meu entender, a substância do Cristianismo está no ensinamento primitivo, original, incontaminado, do Cristo, antes de qualquer interpolação ou deformação. Essa doutrina, evidentemente trazida de muito alto, é um código de moral religiosa que não conhece tempo, nem fronteiras, porque goza dos privilégios da universalidade cósmica. Ainda que a maculem e a distorçam, ela renascerá, mais além, purificada e imortal.

            Quanto à historiografia, sabemos o que seja: seu objeto é a preservação ordenada de fatos ocorridos, verificados ou seguramente inferíveis. Nela não há, portanto, espaço para a invencionice; no instante em que descamba para a fantasia, vira romance. Aqueles que bordaram ficções em torno da história do Cristianismo, prestaram um desserviço de lamentáveis e trágicas consequências à Humanidade.

            Já a teologia dogmática, que se emaranhou em torno do Cristianismo primitivo, acabou por, sufocar, com suas bizantinices, a pregação singela do Cristo. Os conceitos fundamentais ensinados pelo Mestre não precisavam e jamais precisarão das escoras artificiais do dogmatismo teológico. Para se praticar a doutrina do amor ao próximo e de obediência consciente às leis divinas, não é necessário dissecar a Suma Teológica, nem consumir a existência e repassar toneladas de alfarrábios que se escreveram sobre coisas tão simples e evidentes. Claro que não podemos, em nossa limitação biológica e espiritual, compreender toda a ideia da infinita grandeza e perfeição de Deus. Para que, então, prender o corpo físico à sombra empoeirada das bibliotecas, quando lá fora há tanto que fazer em favor do próximo? Teria Francisco de Assis desempenhado sua missão se, em lugar de sair pelo mundo exemplificando sua doutrina de amor, ficasse a estudar dogmas antigos e inventar novos?

            É evidente que poucos podem ombrear-se com o homem de Assis, como também é verdade que o estudo e a interpretação correta dos ensinos do passado é condição necessária ao progresso futuro; o que não se pode é permitir que o acessório, o secundário que se contém no estudo teórico da doutrina, sufoque, aniquile o que tem ela de essencial. A doutrina pode perfeitamente sobreviver e produzir até melhores frutos sem a teologia dogmática, enquanto que esta sem aquela é mera especulação filosófica, ainda que erudita. Não é, porém, a erudição que leva os espíritos para Deus - é a prática de uns poucos preceitos morais ao alcance do mais simplório dos analfabetos. Se, conforme o simbolismo evangélico, é difícil ao rico chegar ao Céu, não é impossível ao erudito subir para Deus, desde que sua erudição - serva e não senhora - seja subordinada à moral doutrinária."...

Trecho do artigo 'Lendo e Comentando' de Hermínio Miranda
publicado em Maio 1963 pela revista 'Reformador' (FEB). 

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