"... Não sei qual o ponto de vista do
leitor, mas, para mim, prefiro fazer uma distinção bem nítida, sem a qual não é
possível compreender racionalmente a questão: primeiro, a substância doutrinária do
Cristianismo; segundo, a história do Cristianismo, desde suas
origens até os dias de hoje, e, finalmente, a teologia dogmática que se
teceu à sua volta.
No meu entender, a substância do
Cristianismo está no ensinamento primitivo, original, incontaminado, do Cristo,
antes de qualquer interpolação ou deformação. Essa doutrina, evidentemente
trazida de muito alto, é um código de moral religiosa que não conhece tempo,
nem fronteiras, porque goza dos privilégios da universalidade cósmica. Ainda
que a maculem e a distorçam, ela renascerá, mais além, purificada e imortal.
Quanto à historiografia, sabemos o
que seja: seu
objeto é a preservação ordenada de fatos ocorridos, verificados ou seguramente
inferíveis. Nela não há, portanto, espaço para a invencionice; no instante em
que descamba para a fantasia, vira romance. Aqueles que bordaram ficções em
torno da história do Cristianismo, prestaram um desserviço de lamentáveis e
trágicas consequências à Humanidade.
Já a teologia dogmática, que
se emaranhou em torno do Cristianismo primitivo, acabou por, sufocar, com suas
bizantinices, a pregação singela do Cristo. Os conceitos fundamentais ensinados
pelo Mestre não precisavam e jamais precisarão das escoras artificiais do
dogmatismo teológico. Para se praticar a doutrina do amor ao próximo e de
obediência consciente às leis divinas, não é necessário dissecar a Suma Teológica, nem consumir a
existência e repassar toneladas de alfarrábios que se escreveram sobre coisas
tão simples e evidentes. Claro que não podemos, em nossa limitação biológica e
espiritual, compreender
toda a ideia da infinita grandeza e perfeição de Deus. Para que, então, prender
o corpo físico à sombra empoeirada das bibliotecas, quando lá fora há tanto que
fazer em favor do próximo? Teria Francisco de Assis desempenhado sua missão se,
em lugar de sair pelo mundo exemplificando sua doutrina de amor, ficasse a
estudar dogmas antigos e
inventar novos?
É evidente que poucos podem
ombrear-se com o homem de Assis, como também é verdade que o estudo e a
interpretação correta dos ensinos do passado é condição necessária ao progresso
futuro; o que não se pode é permitir que o acessório, o secundário que se
contém no estudo teórico da doutrina, sufoque, aniquile o que tem ela de
essencial. A
doutrina pode perfeitamente sobreviver e produzir até melhores frutos sem a teologia dogmática, enquanto que esta sem aquela é mera especulação
filosófica, ainda que erudita. Não é, porém, a erudição que leva os espíritos
para Deus - é a prática de uns poucos preceitos morais ao alcance do mais
simplório dos analfabetos. Se, conforme o simbolismo evangélico, é difícil ao
rico chegar ao Céu, não é impossível ao erudito subir para Deus, desde que sua
erudição - serva e não senhora - seja subordinada à moral doutrinária."...
Trecho do artigo 'Lendo e Comentando' de Hermínio Miranda
publicado em Maio 1963 pela revista 'Reformador' (FEB).
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