Sou
trazida a narrar-vos triste episódio de minha derradeira experiência no mundo.
Onde,
porém, as palavras que me possam exprimir a desolação?
Ainda assim, amigos espirituais
asseveram que devo falar às mães e obedeço...
A Providência Divina honrou-me o
coração, concedendo-me um lar na Terra, mas, dentro dele, era eu a irritação em
movimento.
Nunca cheguei a examinar minha
cegueira de espírito. Em minha inquietação e egoísmo, dedicava-me a descobrir
as faltas alheias. Respirando, entre a maledicência e a desconfiança, notava
golpes nos mínimos gestos de amizade espontânea.
O próprio tempo não escapava, Toda
temperatura, no curso de cada dia, me encontrava despejando condenação:
A chuva ensopa.
O calor asfixia.
Vento de peste.
Melhor que o frio nos mate a todos...
Qualquer bagatela me arrancava
blasfêmias:
- Deus não me atende!..
- Não oro mais...
- Porque não morri, na hora do nascimento?
- De todas as mulheres, sou a mais
infeliz...
Alimentando a ira por vício, estimava
que os outros me acreditassem enferma, sem perceber que me transformava, a
pouco e pouco, em fera humana, sob a jaula da pele.
Se meu esposo, leal e amigo, surgia
calmo, esbravejava contra ele, acusando-o de inerte; se ponderava quanto a despesas
desnecessárias, chamava-lhe, de imediato, unha-de-fome; se me estendia alguma
dádiva menos cara, interpretava--lhe a gentileza por sovinice; se me ofertava uma
lembrança de preço, queixava-me da mesma forma, gritando-lhe em rosto que ele nunca
passara de um mané gastador...
Foi nessa disposição insensata que
me ergui, excitada, no dia terrível da provação.
Às sete da manhã, acordei meu
filhinho de oito anos para as lides da escola e escutei-o a choramingar:
- Estou doente, mãezinha, hoje quero
ficar com a senhora, não posso sair, tenho dor de cabeça...
Precipitada, frenética, não me
contive e bradei:
- Preguiçoso! Trate de levantar-se!
Doente com essa cara! Era só o que faltava... Chega o que sofro!..
- Mãezinha, deixe que eu fique! Hoje
só...
- Levante-se, levante-se, menino!..
Transtornada, sentei-o à força.
Ordenei a ele se calçasse, ao que se
opôs, pedindo, suplicante:
- Mamãe, não me deixe ir!.. Hoje só...
Encolerizada, tomei de um dos seus
sapatos, colocando-o no pé, com a violência de quem espanca, e ouvi-o clamar em
altos gemidos:
- Ai! ai, mãezinha!.. um espinho, um
espinho!..
Sujeitei-o, com mais energia, ao
calçado, alegando, arbitrária:
- Malandro, não me venha com
mentiras!
- Escola ou surra!..
Nisso, porém, meu filhinho
empalideceu e desmaiou... Retirei o sapato e vi que um escorpião, escondido no
fundo, lhe descarregara todo o veneno.
Ó Deus de Infinita Bondade, tu que
foste imensamente piedoso para confiar um anjo a uma leoa, porque não
eliminaste a leoa para que o anjo conseguisse viver?!..
O que se passou, alcança o
indescritível.
Apesar de toda a medicação, em breve
tempo, minha ternura, que a dor desentranhara ao rebentar-me o coração de
pedra, apertava simplesmente um cadáver miúdo, de encontro ao peito...
As horas no relógio continuaram as
mesmas; entretanto, de minha parte, não mais me reconheci.
“Ai! ai, mãezinha!... um espinho, um
espinho!” Aquelas palavras gemidas cresceram em
minha alma. Jamais o equilíbrio, não mais a esperança, Minha cabeça encaneceu,
meu pensamento destrambelhou. .. Chorei até que meus olhos parassem,
alucinados, na noite da loucura; acusei-me, até que o manicômio me asilasse e até
que o manicômio me escondesse, piedoso, o agoniado transe da morte!..
Desencarnada, encontrei a mim
própria, dementada, atormentada, arrependida, padecente..
Amparada por benditos mensageiros da
caridade, tenho recolhido o consolo de vários círculos consagrados à prece.
Dizem que os supostos mortos devem
falar às criaturas em aprendizado na Terra, para que as criaturas da Terra lhes
aproveitem o aprendizado. Será talvez por isso que, hoje, algo reanimada para
abraçar o trabalho reeducativo que me espera, estou sustentada por benfeitores,
entre os vossos ouvidos, não somente para rogar-vos um pensamento de auxílio,
mas também para repetir às irmãs, a quem Deus confiou as alegrias do lar:
- Mães que pisais no mundo,
compadecei-vos de vossos filhos!... Corrigi, amando! Ensinai, servindo! À
frente de qualquer dificuldade, conservai a paciência e cultivai a oração!..
Dulce
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Maio 1963
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