domingo, 10 de novembro de 2013

Confissão Materna



            Sou trazida a narrar-vos triste episódio de minha derradeira experiência no mundo.

            Onde, porém, as palavras que me possam exprimir a desolação?

            Ainda assim, amigos espirituais asseveram que devo falar às mães e obedeço...

            A Providência Divina honrou-me o coração, concedendo-me um lar na Terra, mas, dentro dele, era eu a irritação em movimento.

            Nunca cheguei a examinar minha cegueira de espírito. Em minha inquietação e egoísmo, dedicava-me a descobrir as faltas alheias. Respirando, entre a maledicência e a desconfiança, notava golpes nos mínimos gestos de amizade espontânea.

            O próprio tempo não escapava, Toda temperatura, no curso de cada dia, me encontrava despejando condenação:
           
            A chuva ensopa.
            O calor asfixia.
            Vento de peste.
            Melhor que o frio nos mate a todos...

            Qualquer bagatela me arrancava blasfêmias:

            - Deus não me atende!..
            - Não oro mais...
            - Porque não morri, na hora do nascimento?
            - De todas as mulheres, sou a mais infeliz...

            Alimentando a ira por vício, estimava que os outros me acreditassem enferma, sem perceber que me transformava, a pouco e pouco, em fera humana, sob a jaula da pele.

            Se meu esposo, leal e amigo, surgia calmo, esbravejava contra ele, acusando-o de inerte; se ponderava quanto a despesas desnecessárias, chamava-lhe, de imediato, unha-de-fome; se me estendia alguma dádiva menos cara, interpretava--lhe a gentileza por sovinice; se me ofertava uma lembrança de preço, queixava-me da mesma forma, gritando-lhe em rosto que ele nunca passara de um mané gastador...

            Foi nessa disposição insensata que me ergui, excitada, no dia terrível da provação.

            Às sete da manhã, acordei meu filhinho de oito anos para as lides da escola e escutei-o a choramingar:

            - Estou doente, mãezinha, hoje quero ficar com a senhora, não posso sair, tenho dor de cabeça...

            Precipitada, frenética, não me contive e bradei:

            - Preguiçoso! Trate de levantar-se! Doente com essa cara! Era só o que faltava... Chega o que sofro!..
            - Mãezinha, deixe que eu fique! Hoje só...

            - Levante-se, levante-se, menino!..

            Transtornada, sentei-o à força.

            Ordenei a ele se calçasse, ao que se opôs, pedindo, suplicante:

            - Mamãe, não me deixe ir!..  Hoje só...

            Encolerizada, tomei de um dos seus sapatos, colocando-o no pé, com a violência de quem espanca, e ouvi-o clamar em altos gemidos:

            - Ai! ai, mãezinha!.. um espinho, um espinho!..

            Sujeitei-o, com mais energia, ao calçado, alegando, arbitrária:

            - Malandro, não me venha com mentiras!

            - Escola ou surra!..

            Nisso, porém, meu filhinho empalideceu e desmaiou... Retirei o sapato e vi que um escorpião, escondido no fundo, lhe descarregara todo o veneno.

            Ó Deus de Infinita Bondade, tu que foste imensamente piedoso para confiar um anjo a uma leoa, porque não eliminaste a leoa para que o anjo conseguisse viver?!..

            O que se passou, alcança o indescritível.

            Apesar de toda a medicação, em breve tempo, minha ternura, que a dor desentranhara ao rebentar-me o coração de pedra, apertava simplesmente um cadáver miúdo, de encontro ao peito...

            As horas no relógio continuaram as mesmas; entretanto, de minha parte, não mais me reconheci.

            “Ai! ai, mãezinha!... um espinho, um espinho!” Aquelas palavras gemidas cresceram em minha alma. Jamais o equilíbrio, não mais a esperança, Minha cabeça encaneceu, meu pensamento destrambelhou. .. Chorei até que meus olhos parassem, alucinados, na noite da loucura; acusei-me, até que o manicômio me asilasse e até que o manicômio me escondesse, piedoso, o agoniado transe da morte!..

            Desencarnada, encontrei a mim própria, dementada, atormentada, arrependida, padecente..

            Amparada por benditos mensageiros da caridade, tenho recolhido o consolo de vários círculos consagrados à prece.

            Dizem que os supostos mortos devem falar às criaturas em aprendizado na Terra, para que as criaturas da Terra lhes aproveitem o aprendizado. Será talvez por isso que, hoje, algo reanimada para abraçar o trabalho reeducativo que me espera, estou sustentada por benfeitores, entre os vossos ouvidos, não somente para rogar-vos um pensamento de auxílio, mas também para repetir às irmãs, a quem Deus confiou as alegrias do lar:

            - Mães que pisais no mundo, compadecei-vos de vossos filhos!... Corrigi, amando! Ensinai, servindo! À frente de qualquer dificuldade, conservai a paciência e cultivai a oração!..
Dulce
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Maio 1963


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