sexta-feira, 26 de julho de 2013

'Movimento e Doutrina'


Movimento e Doutrina
Roque Jacintho
Reformador (FEB) Julho 1972

I

            Movimento espírita nem sempre é Doutrina Espírita.

            Embora chocante de início, a afirmativa pede reflexão madura e coragem moral para um exame desapaixonado, a fim de que não venhamos efetivamente, em nome do Espiritismo, a promover um desvio dos objetivos fundamentais do Cristianismo redivivo, como ocorreu outrora, quando sobre a doutrina de Jesus se construiu uma igreja dos homens.

            Inclusive  pelo adensamento de prosélitos, vindos das mais diversas províncias de fé, e pela popularização crescente e inestancável da Doutrina Espírita - a resposta da fé raciocinada a um mundo treinado na inteligência -, o tema valerá por uma revisão de atitudes, de programas, de propósitos do indivíduo e dos agrupamentos.

            Não é indução à defecção religiosa.

            Compreendemos que, cada um de nós, de acordo com o grau de amadurecimento do senso moral, possui uma métrica de verdade. Desde que estejamos agindo com sinceridade de propósitos, o trabalho nos aprimorará e terminaremos por corrigir-nos, mais cedo ou mais tarde. Essa ocorrência, porém, não obstará que se levantem questões a solicitar-nos raciocínio mais largo, prevenindo desvios de dolorosas e lamentáveis consequências que, por vezes, poderemos estar promovendo despercebidamente.

            Ninguém se aborrecerá com o tema.

            Se estas ponderações não forem sensatas, os sensatos saberão neutralizá-las pela força mesma da. superioridade espiritual que desfrutam. Ninguém de bom senso se oporá a considerar anotações que visam ao nosso melhoramento no seio da Doutrina que nos irmana. Já que agimos todos desinteressadamente, sem outro móvel pessoal, sem nenhum fito de lucro ou desejo de destaque individual, sem vaidade e sem egoísmo, sem exaltação da personalidade e sem orgulho, é com naturalidade que encararemos a conveniência de auto-exame de nossas atitudes coletivas no campo do Espiritismo cristão.


II

            Que é movimento espírita?

            A rigor, deveria ser a corporificação da Doutrina no seio da Humanidade. O exemplo da caridade moral, na sua mais ampla acepção, a beneficio de quantos nos circundam; a espiritualização de nossos comportamentos e atitudes, “a iluminação dos sentimentos, na sagrada melhoria das características morais do homem”, na sábia expressão desse genial Emmanuel.

            Kardec, definindo oque deveria ser o movimento espírita, conclamava:
           
            “Espíritas, sois os pioneiros dessa grande obra. Tornai-vos dignos da gloriosa missão, cujos primeiros frutos já recolheis. Pregai por palavras, mas, sobretudo, pregai por exemplos. Comportai-vos de modo a que, em vos vendo, não possam dizer que as máximas que ensinais são palavras vãs em vossos lábios. A exemplo dos apóstolos, fazei milagres, pois para isso, Deus concedeu-vos o dom! Não milagres que chocam os sentidos, porém. milagres de caridade e de amor. Sede bom para com os vossos irmãos, sede bons para com o mundo inteiro, sede bons parra com vossos inimigos! A exemplo dos apóstolos, expulsai os demônios. Para isso, tendes o poder, e eles pululam em torno de vós, os demônios do orgulho, da ambição, da inveja, do ciúme, da cupidez, da sensualidade, que alimentam todas as más paixões e semeiam entre vós os pomos da discórdia. Expulsai-os de vossos corações, a fim de que tenhais a força necessária para expulsá-los dos corações alheios.

            "Fazei esses milagres e Deus vos abençoará, as gerações futuras vos abençoarão como as de agora abençoam os primeiros cristãos, dentre os quais muitos revivem entre vós para assistir e concorrer para o coroamento da obra do Cristo."

            Definir, para nós mesmos, o que seja 'movimento espírita’ e o que deveria ser, na inspiração dos postulados de Kardec, ampliados e explicados nas obras psicografadas pelo médium Francisco Cândido Xavier, valerá por um reconhecimento de posição, um sondar de terreno, permitindo-nos manter a regularidade na marcha e impedindo-nos de consorciar-nos a projetos ou a grupos que, embora bem intencionados, estejam divorciados de nossa realidade doutrinária.

III

            Abstraiamos o homem da Doutrina.

            Sem que nos analisemos separadamente da Doutrina Espírita, teremos alguma dificuldade de compreender que, quase sempre, a contribuição humana está eivada das paixões que nos caracterizavam até ontem.

            Sentimos dificuldade em pensar como espíritas e como espíritos.

            Raciocinamos dentro dos esquemas e nas angulações em que nos condicionamos, esbarrando em empeços para perceber a dinâmica espiritual da Doutrina. Planificamos e corporificamos programas no seio da coletividade espírita, em nome do Espiritismo, dentro de nossos padrões habituais, com soluções que classificamos de pragmáticas, objetivas, realistas, em contraposição com aspirações que consideramos utópicas, sonhadoras, subjetivas, doutro mundo.

            Nosso cunho pessoal está em tudo.

            Somando-se a essa atitude de querer ser mais prático que o Cristo, temos a sobrecarga de nossa vaidade que, não raro, nos induz a considerar-nos intérpretes impecáveis da vontade do Alto. Arautos da Espiritualidade. Que Jesus fará o seu reino na Terra na esteira de nosso esforço. Que a obra encetada por nós é um monumento à bondade Divina, a expressão do Mundo Maior entre os homens.

            Porfiamos pelos nossos programas.

            Raramente vamos cotejá-los com a Doutrina.

            O amor-próprio dificulta-nos dar um passo atrás, a fim de revisar o programa no seu conjunto, de examinar acertos e desacertos. Impede-nos de, compreender, inclusive, que, pelas limitações de nossa visão, tudo o que realizamos é carente de aperfeiçoamento. Não que a Doutrina seja obscura ou incompleta para a quadra evolutiva ; não que esteja cercada de mistérios ou segredos que inda não desvendamos. É que vivemos os limites de nossa própria experiência, evolutiva e, no dia seguinte, sempre poderemos ver mais longe, discernir com mais segurança, corrigir o que não esteja bem, porque já teremos maior maturidade, maior acuidade moral.

IV

            Há tempos ocorreu um alertamento.

            Era para diferenciar fenômeno mediúnico de Doutrina Espírita.              

            A princípio, pretenderam alguns confundir a questão, afirmando que se lutava contra a fenomenologia mediúnica na área espírita. O fenômeno seria, então, intocável, no conceito de alguns que se distanciavam, propositadamente dos estudos doutrinários. Preferiam que a mediunidade estivesse envolta numa cortina de mistério, o que lhes dava uma posição mágica aos olhos dos leigos e dos crédulos.

            Vencida a resistência, aclarou-se a questão.

            Não se pugnava contra o fenômeno mediúnico em si, mas se pedia que os espíritas
o fizessem acomodar-se na sua verdadeira posição.

            O fenômeno não é Doutrina Espírita.

            Poderá ser caminho para o conhecimento das leis de natureza espiritual. Exigirá, todavia, que o seu pesquisador, o elemento que o utilize ou que dele participe, conheça previamente todas as experiências acumuladas desde Alam Kardec até os nossos dias, a fim de não estagiar em etapas sobejamente estudadas e não se enredar no trato com forças espirituais que desconhece.

            A mediunidade, assim, coloca-se a serviço da regeneração da Humanidade, secundando o esforço de redescobrir o Cristianismo em seus valores fundamentais e mais consoantes ao gênio do próprio Cristo, desvestido das gangas humanas, das alfaias com que as religiões tradicionais tentavam sufocá-lo.

            Desvincularam-se outras áreas mediúnicas.

            As religiões de origem medianímica, anteriores à própria Codificação Espírita, ganharam vida própria, após viverem um período à sombra do nome da Doutrina. Recebem dos espíritas toda a consideração devida às manifestações de fé ou de crença, mas não se mesclam com o movimento.

            É a tolerância, sem transigência.

            Respeitamos toda ideologia, seja qual seja, contudo sermos compelidos a viver
com elas, a partilhar de seus propósitos e de seus objetivos, sem que nos confundamos quanto a nossos programas.

            Mediunidade é mediunidade.

            Doutrina Espírita é Doutrina Espírita.

V

            Houve os que ficaram descontentes com essas definições. Houve os que se desagradaram. Alguns eram bem intencionados, vivendo, contudo, sob a pressão de falsas noções de tolerância e de fraternidade. Outros, simplesmente, não desejavam que a luz se fizesse sobre a mediunidade, despojando-a das aparências de magia, de sortilégio, diluindo uma posição artificial do próprio médium. 

            Os benefícios, porém, foram enormes.

            Ficamos com a área doutrinária definida.

            O espírita, dessa forma, retomou aos princípios da Codificação, para construir a fé raciocinada. Tomou as rédeas de seu destino, para interiorizar-se e descobrir-se, sem o descabido temor das potências espirituais estranhas. Sentiu-se integrado na dinâmica kardequiana, viu destruídos os redutos da fantasia e da ficção religiosa.

            E não ocorreu, aliás, cisão alguma.

            Simplesmente cada um tomou o seu justo lugar, a ponto de o próprio povo distinguir, hoje, que nem todo espírita é médium. A criatura pode abraçar a Doutrina Redentora sem ser médium ostensivo. Sabe, por outro lado, que nem todo médium é espírita. A faculdade mediúnica não é nem criação e nem privativa do Espiritismo. Existia antes e continua existindo depois da Codificação. Não pede, para aflorar, sua aceitação por um ponto de vista religioso. Entre católicos, evangelistas, materialistas e acomodados, despontam os medianeiros dos Espíritos, no intercâmbio generalizado com os encarnados.

VI

            É hora de reexaminar o nosso movimento espírita.

            Até onde ele é expressão dos ideais da Doutrina que abraçamos. Em que ponto começa a ser um movimento de espiritas, uma expressão humana de prosélitos a concretização de nossos anseios pessoais, um gesto digressivo e até conflitante com a dinâmica doutrinária? Até onde aceitarmos as soluções do Cristo para os angustiantes problemas de nossa Humanidade? Em que ponto começamos a impor as nossas soluções, buscamos substituir, por vezes inconscientemente, os caminhos de regeneração de nossa Humanidade?

            Não raro, somos simplesmente afoitos.

            Queremos exprimir a nossa fé "por obras", olvidamos que a autêntica e legítima obra espírita-cristã é a da reforma íntima: a construção do templo de fé nos redutos de nosso coração; a edificação do altar de Deus na intimidade de nossa consciência. Materializamos também o conceito de obra que passamos a refletir e a aspirar em termos de alvenaria.   Alguma coisa que satisfaça as vistas dos observadores ou aos ocasionais visitantes de nosso campo de atividades. Similarmente, também materializamos tanto o conceito de caridade que quase a transformarmos numa versão moderna de esmola, sem nenhum liame moral, sem nenhum sentido de recuperação espiritual da criatura assistida.

            A miséria impressiona-nos.

            Justo que nos sensibilize até às lágrimas.

            Indispensável distribuir o socorro material, já que ninguém terá condições de elevar-se espiritualmente enquanto oprimido pela fome, pela nudez. Não poderemos, contudo, restringir-nos exclusivamente a tal amparo, já que estaremos amenizando um efeito, sem nos ocuparmos das causas primárias que o geram.

            Nosso problema é todo espiritual.

            As diversas formas de manifestação são orgânicas.

            Ninguém, em sã consciência, se alheará à dor física e aos gritos do estômago vazio. Ninguém ignorará a mãe de seio estéril, incapaz de amamentar o próprio filho. Ninguém se fará cego diante da penúria de um corpo desnudo, a sofrer as agruras das intempéries. Ninguém se furtará de amparar, com medicamentos, o organismo minado pela enfermidade.

            Mas, são problemas de origem espiritual.

            Se nos toca amenizar lhes os efeitos, isso não nos exime da obrigação de eliminar a sua causa, que é o desajuste espiritual da criatura humana, vinda a esta escola da vida, que é a Terra, para reajustar-se no campo do amor e iniciar a fase de sua regeneração espiritual.

VII

            Não raro, somos unicamente precipitados.

            Queremos reeditar o domínio do mundo pelo poder da fé religiosa, na sua configuração espírita.

            Irrefletidamente, então, planeamos a invasão de áreas estranhas aos nossos objetivos, suspirando por sujeitar a Ciência e a Filosofia, colocando-as sob nosso diapasão, revivendo as limitações que já um dia as Igrejas impuseram à pesquisa humana, ao desenvolvimento da inteligência. Não nos apercebemos de que o Espiritismo tem por "finalidade divina a iluminação dos sentimentos, na sagrada melhoria das características morais do homem".

            Pelo avanço da inteligência, destruindo mitos e espancando a ignorância, sem subordinação à ordem religiosa - aliás, a mãe do materialismo, pelos freios impostos às pesquisas livres e pelo seu divórcio da realidade universal -, a Ciência marcha ao encontro de Deus, cujos arcanos penetra sob o amparo celestial.

            Vale prestigiar o conhecimento.

            Será alimentar tola veleidade julgar que o Espiritismo, por ora, tudo poderá abarcar, tudo virá substituir, quando na atualidade ele é alavanca do avanço humano exclusivamente no campo espiritual.

            Noutras atitudes, refletimos fanatismo.

            Pretendemos invadir a consciência alheia, violentar o degrau do senso moral, o Espiritismo numa imitação das religiões falidas no seu ministério. Esperamos que os homens se rendam a nossos pés e sonhamos em criar outra Jerusalém, outra Roma, tornando-nos outro porta-voz de todo o sentimento religioso; o novo magister dixit da espiritualidade, ignorando, desta forma, que as várias províncias de fé religiosa são decorrência do estágio evolutivo das mentes.

            Só o renitente espírito de seita nos induz a tal.

            Desde, porém, que estejamos libertos das ânsias de poder e de mando, na esfera do espírito, saberemos alimentar o mais absoluto respeito às várias expressões de crenças, aceitando que cada um se dirija ao Pai na linguagem que lhe seja peculiar.

            O Espiritismo existe para o homem, em sentido lato.

            O homem, porém, não estará constrangido a esposar-lhe as prédicas redentoras, enquanto não sentir no próprio coração o desejo de alçar voos mais altos, de desprender-se de artificialismos e recursos ilusórios, para o seu diálogo com os planos mais altos do Universo.

VIII

            Kardec encareceu que a divisa Máxima do Espiritismo é: "Fora da caridade não há salvação". Ponderou que jamais se poderia apregoar o "fora do Espiritismo não há salvação", porque induziria os espíritas a uma falsa posição diante do mundo e da vida.

            Enquanto, pois, o movimento espírita não for uma expressão raciocinada, ponderada, balanceada, de amor ao próximo; de reerguimento da dignidade humana sob as luzes do Evangelho; de regeneração espiritual do homem, diante da lei da reencarnação - teremos rutilantes planos, majestosos edifícios assistenciais, ensaios canhestros de mútuo entendimento, despertando perplexidade nos perplexos, mas tomando distância, cada vez maior distância, Ido objeto fundamental da  Doutrina Espírita.

                        Se uma comunicação mediúnica deve ser cotejada com a Codificação, a fim de ganhar foros de validade; se a contribuição da Espiritualidade deve ser examinada e reexaminada, para que não consagremos fábulas e fantasias, por que dar regime de exceção ao movimento espírita, quando ele também poderá ser fruto de iniciativa individual ou grupal, conflitante com a Doutrina?

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