quarta-feira, 15 de maio de 2013

2b. 'O Dogma Espírita'




 2b   O dogma espírita

por Luciano dos Anjos
in Reformador (FEB) Jan-Fev 1964

            O Espiritismo alia a Razão pura à Revelação, objetivando a proposição dos seus postulados. E como também reconhece alguns limites à especulação, faz assentar o seu exame das Verdades nos fatos que ela. encerra, quer direta, quer indiretamente. É aqui que o Espiritismo se engrandece e torna suas convicções mais sensatas, mais sábias, mais lógicas e menos confutáveis. Deus existe, dogmatiza a Igreja, porque assim consta da Revelação, porque assim expressa a Tradição e porque assim o magistério "infalível" da Igreja o proclamou. Deus existe - afirma o Espiritismo - porque assim consta da Revelação, porque. assim compreende a nossa Razão e porque assim os fatos o comprovam. “O Espiritismo - sentencia Kardec - não estabelece como princípio absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação" ("A Gênese", pág. 42 da 13ª edição da FEB). "Que autoridade tem a revelação espírita - diz ainda o Mestre - uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis? A objeção seria ponderosa, se essa revelação consistisse apenas no ensino dos Espíritos, se deles exclusivamente a devêssemos receber e houvéssemos de aceitá-la de olhos fechados. Perde, porém, todo valor, desde que o homem concorre para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério; desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos" ("A Gênese", págs. 44/45, da edição citada).

            Quanto à Tradição, é óbvio que o Espiritismo também lhe empresta algum respeito, se considerada no sentido restrito do conjunto das verdades reveladas que os apóstolos pregaram sem as deixar escritas. Repele-a, entretanto, no sentido odioso que lhe empresta a Igreja, quando afirma: "Ao magistério infalível da Igreja cabe discernir, em última instância, quais tradições são de origem divina, e quais de origem humana" ("Os Dogmas da Fé", de João Pedro Junglas, pág. 51 da 3ª edição de "Vozes"). Ou: "O critério pelo qual se reconhece a bíblia verdadeira, é a tradição apostólica que a Igreja sanciona pelo magistério infalível" (idem, ibidem, pág. 51). Como vemos, há um "magistério infalível" (?!) que julga em última instância o valor da Tradição. Porque a sanção é só e exclusivamente da Igreja? Além do mais, à guisa de apor essa sanção, o clero passou, de repente, não apenas a sancionar os dogmas do Evangelho, mas a fazer também Revelação, autoridade para a qual, nem com muito boa vontade, conseguimos lobrigar na mensagem do Cristo. É certo que Jesus falou na descida do Espírito Santo, mas apenas para dizer que ele desceu sobre o colégio apostólico a fim de dar força e sabedoria aos pregadores da Boa-Nova e não para que fizesse qualquer Revelação. E, de fato, a própria Igreja não se considera com essa autoridade, pois "não compôs nenhum livro sagrado, porque não é inspirada, mas sim interpreta os livros sagrados porque é assistida pelo Espírito Santo", como afirma Caussette. Não é mentira que São Bernardo escreveu uma vez que a Igreja, como Esposa do Cristo, tem o Espírito Santo e pode infundir um sentido novo no escrito. Contudo, reconheçamos que, de direito, a Igreja jamais se arrogou esta autoridade e a opinião de São Bernardo permanece uma voz isolada. Seu procedimento, entretanto, é paradoxalmente outro, pois mais não tem feito, na prática, do que agir conforme diz que não deve agir. Se reconhece que não tem a autoridade para fazer revelação, como pois nos vem inspirar dogmas como o da Santíssima Trindade, da Infalibilidade Papal, da Ascensão de Nossa Senhora, do Purgatório, do Pecado Original, etc.? Não foi sem razão que Lutero acusou a Igreja de arrogar-se o poder absolutista sobre a Escritura: "Vangloriam-se de que o Papa e a sua Igreja estão acima da Sagrada Escritura. O Papa teria o poder de mudá-la, suprimi-la, proibi-la, interpretá-la a seu bel-prazer."

            O Espiritismo está pronto a aceitar todas as verdades contidas no Evangelho e, mesmo assim, depois de examinadas racionalmente. Perguntar-se-á, porém: mas, em que termos a Razão de que tanto falamos deverá ser aplicada? Qual o critério para esse exame? Que espécie de Razão deverá servir de fiel de balança: a dos Espíritos ou a dos Concílios? Adolfo Bezerra de Menezes, o apóstolo do Espiritismo no Brasil, ensina-nos na sua obra "A Doutrina Espírita como Filosofia Teogônica" (reeditada com o título de "Uma Carta de Bezerra de Menezes"): "Temos um critério infalível para o conhecimento da pura verdade. Temos esse critério nas perfeições infinitas do Criador. Tudo que as exaltar é pura verdade. Tudo que as rebaixar é pura mentira. E, por esse critério, podemos verificar quais os princípios de nossa religião que são verdades, quais os que são mentiras" (págs. 61/62 da 1ª edição da FEB).

            O grande equívoco da Igreja não está em apontar dogmas, mas em apontar determinados dogmas que não constam da Revelação ou que são produtos de interpretações distorcidas, distanciadas da grandeza de Deus e capazes de rebaixá-Lo , É o caso do Inferno, com a crença em Satanás, um ser e uma imagem que, apresentados tão poderosos quanto o próprio Deus, conseguem até desafiá-Lo, diminuindo-O e desmerecendo-O portanto (aqui temos uma falsa interpretação evangélica). Ou, então, no caso da vida única, que minimiza o Criador, apresentando-O injusto com os que não quis gerar perfeitos física, intelectual e moralmente (aqui temos uma afirmativa que não existe na Revelação).

            A própria Igreja chama "veritates catholicae" (verdades católicas) àquelas que não estão contidas na Revelação e que, portanto, não podem ser consideradas dogmas. As verdades católicas constituem apenas as "doctrinae ecclesiasticae" (doutrinas eclesiásticas). para distinguir das "doutrinas divinas" da Revelação. Contudo, a questão se revela facciosa por completo, quando verificamos que, apesar dessa doutrina, a Igreja apresenta como dogma exatamente o que se não acha nas Escrituras, contrariando portanto os seus próprios preceitos que, por isso mesmo, não passam de temas de fancaria. É o caso flagrante da infalibilidade papal. No mais, a Igreja cuida de defender sua posição de todos os modos, pois mesmo em relação às "verdades católicas" não esqueceu de garanti-Las com a característica da infalibilidade. "Os concílios gozaram sempre o prestígio de uma autoridade infalível" - afirma Bernardo Bartmann à pág. 65 da sua "Teologia Dogmática". Em última análise temos, destarte, a troca dos nomes apenas; os bois são sempre os mesmos ...

            Segundo o Espiritismo, todos são aptos à interpretação evangélica, desde que os resultados alcançados suportem a critica da Razão, não repilam o bom-senso universal nem contrariem a verdade experimental dos fatos. E - frisemos bastante - a crítica da Razão (Isto é, pela Razão) deve necessariamente engrandecer e exalçar Deus e nunca rebaixá-Lo!

            Há ainda um outro ângulo a ser considerado na questão: o texto original da Revelação. O Concílio de Trento estabeleceu "que esta velha e divulgada versão ("vetus et vulgata editio"), provada pelo uso de tantos séculos na Igreja, nas leituras públicas, disputas, pregações, seja considerada como autêntica ("pro authentica habeatur"), e ninguém ouse ou presuma rejeitá-la a qualquer pretexto" (Enchiridion Symbolorum et Definitionum", página 785). A respeito, comenta Bartmann no seu trabalho teológico: ,"O elemento essencial da decisão conciliar deve-se procurar no sentido da palavra "autêntica". Em si, não significa conformidade com o texto original da Bíblia, mas reconhecimento da parte da Igreja" (pág. 47, edição citada). Como vemos, a Igreja, além do mais, fechou definitivamente a questão em torno até mesmo do texto bíblico, em relação ao qual não admite nada que se lhe prove contrariamente ao que, da sua parte, já reconheceu como autêntico. Isto já é, queiram ou não queiram, colocar-se realmente acima da própria Revelação! 


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