2b O dogma
espírita
por Luciano dos Anjos
in Reformador (FEB) Jan-Fev 1964
O
Espiritismo alia a Razão pura à Revelação, objetivando a proposição dos seus
postulados. E como também reconhece alguns limites à especulação, faz assentar
o seu exame das Verdades nos fatos que ela. encerra, quer direta, quer
indiretamente. É aqui que o Espiritismo se engrandece e torna suas convicções
mais sensatas, mais sábias, mais lógicas e menos confutáveis. Deus existe,
dogmatiza a Igreja, porque assim consta da Revelação, porque assim expressa a
Tradição e porque assim o magistério "infalível" da Igreja o
proclamou. Deus existe - afirma o Espiritismo - porque assim consta da
Revelação, porque. assim compreende a nossa Razão e porque assim os fatos o
comprovam. “O Espiritismo - sentencia
Kardec - não estabelece como princípio
absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta
logicamente da observação" ("A Gênese", pág. 42 da 13ª
edição da FEB). "Que autoridade tem
a revelação espírita - diz ainda o Mestre - uma vez que emana de seres de limitadas luzes e não infalíveis? A objeção seria ponderosa, se essa revelação
consistisse apenas no ensino dos Espíritos, se deles exclusivamente a
devêssemos receber e houvéssemos de aceitá-la de olhos fechados. Perde, porém, todo valor, desde que o homem
concorre para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério; desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no
caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos"
("A Gênese", págs. 44/45, da edição citada).
Quanto
à Tradição, é óbvio que o Espiritismo também lhe empresta algum respeito, se
considerada no sentido restrito do conjunto das verdades reveladas que os
apóstolos pregaram sem as deixar escritas. Repele-a, entretanto, no sentido
odioso que lhe empresta a Igreja, quando afirma: "Ao magistério infalível
da Igreja cabe discernir, em última instância, quais tradições são de origem
divina, e quais de origem humana" ("Os Dogmas da Fé", de João Pedro Junglas, pág. 51 da 3ª edição de
"Vozes"). Ou: "O critério pelo qual se reconhece a bíblia
verdadeira, é a tradição apostólica que a Igreja sanciona pelo magistério
infalível" (idem, ibidem, pág. 51). Como vemos, há um "magistério
infalível" (?!) que julga em última instância o valor da Tradição. Porque
a sanção é só e exclusivamente da Igreja? Além do mais, à guisa de apor essa
sanção, o clero passou, de repente, não apenas a sancionar os dogmas do
Evangelho, mas a fazer também Revelação, autoridade para a qual, nem com muito
boa vontade, conseguimos lobrigar na mensagem do Cristo. É certo que Jesus
falou na descida do Espírito Santo, mas apenas para dizer que ele desceu sobre
o colégio apostólico a fim de dar força e sabedoria aos pregadores da Boa-Nova e
não para que fizesse qualquer Revelação. E, de fato, a própria Igreja não se
considera com essa autoridade, pois "não compôs nenhum livro sagrado,
porque não é inspirada, mas sim interpreta os livros sagrados porque é
assistida pelo Espírito Santo", como afirma Caussette. Não é mentira que
São Bernardo escreveu uma vez que a Igreja, como Esposa do Cristo, tem o
Espírito Santo e pode infundir um sentido novo no escrito. Contudo,
reconheçamos que, de direito, a Igreja jamais se arrogou esta autoridade e a
opinião de São Bernardo permanece uma voz isolada. Seu procedimento,
entretanto, é paradoxalmente outro, pois mais não tem feito, na prática, do que
agir conforme diz que não deve agir. Se reconhece que não tem a autoridade
para fazer revelação, como pois nos vem inspirar dogmas como o da Santíssima
Trindade, da Infalibilidade Papal, da Ascensão de Nossa Senhora, do Purgatório,
do Pecado Original, etc.? Não foi sem razão que Lutero acusou a Igreja de
arrogar-se o poder absolutista sobre a Escritura: "Vangloriam-se de que o
Papa e a sua Igreja estão acima da Sagrada Escritura. O Papa teria o poder de
mudá-la, suprimi-la, proibi-la, interpretá-la a seu bel-prazer."
O
Espiritismo está pronto a aceitar todas as verdades contidas no Evangelho e,
mesmo assim, depois de examinadas racionalmente. Perguntar-se-á, porém: mas, em
que termos a Razão de que tanto falamos deverá ser aplicada? Qual o critério
para esse exame? Que espécie de Razão deverá servir de fiel de balança: a dos
Espíritos ou a dos Concílios? Adolfo Bezerra de Menezes, o apóstolo do
Espiritismo no Brasil, ensina-nos na sua obra "A Doutrina Espírita como
Filosofia Teogônica" (reeditada com o título de "Uma Carta de Bezerra
de Menezes"): "Temos um critério infalível para o conhecimento da pura verdade. Temos
esse critério nas perfeições infinitas do Criador. Tudo que as exaltar é pura
verdade. Tudo que as rebaixar é pura mentira. E, por esse critério, podemos
verificar quais os princípios de nossa religião que são verdades, quais os que
são mentiras" (págs. 61/62 da 1ª edição da FEB).
O
grande equívoco da Igreja não está em apontar dogmas, mas em apontar
determinados dogmas que não constam da Revelação ou que são produtos de
interpretações distorcidas, distanciadas da grandeza de Deus e capazes de
rebaixá-Lo , É o caso do Inferno, com a crença em Satanás, um ser e uma imagem
que, apresentados tão poderosos quanto o próprio Deus, conseguem até desafiá-Lo,
diminuindo-O e desmerecendo-O portanto (aqui temos uma falsa interpretação
evangélica). Ou, então, no caso da vida única, que minimiza o Criador,
apresentando-O injusto com os que não quis gerar perfeitos física, intelectual
e moralmente (aqui temos uma afirmativa que não existe na Revelação).
A
própria Igreja chama "veritates catholicae" (verdades católicas)
àquelas que não estão contidas na Revelação e que, portanto, não podem ser
consideradas dogmas. As verdades católicas constituem apenas as "doctrinae
ecclesiasticae" (doutrinas eclesiásticas). para distinguir das
"doutrinas divinas" da Revelação. Contudo, a questão se revela facciosa
por completo, quando verificamos que, apesar dessa doutrina, a Igreja apresenta
como dogma exatamente o que se não acha nas Escrituras,
contrariando portanto os seus próprios preceitos que, por isso mesmo, não
passam de temas de fancaria. É o caso flagrante da infalibilidade papal. No
mais, a Igreja cuida de defender sua posição de todos os modos, pois mesmo em
relação às "verdades católicas" não esqueceu de garanti-Las com a
característica da infalibilidade. "Os concílios gozaram sempre o prestígio
de uma autoridade infalível" - afirma Bernardo Bartmann à pág. 65 da sua
"Teologia Dogmática". Em última análise temos, destarte, a troca dos
nomes apenas; os bois são sempre os mesmos ...
Segundo
o Espiritismo, todos são aptos à interpretação evangélica, desde que os
resultados alcançados suportem a critica da Razão, não repilam o bom-senso
universal nem contrariem a verdade experimental dos fatos. E - frisemos
bastante - a crítica da Razão (Isto é, pela Razão) deve necessariamente
engrandecer e exalçar Deus e nunca rebaixá-Lo!
Há
ainda um outro ângulo a ser considerado na questão: o texto original da
Revelação. O Concílio de Trento estabeleceu "que esta velha e divulgada versão
("vetus et vulgata editio"), provada pelo uso de tantos séculos na
Igreja, nas leituras públicas, disputas, pregações, seja considerada como
autêntica ("pro authentica habeatur"), e ninguém ouse ou presuma
rejeitá-la a qualquer pretexto" (Enchiridion
Symbolorum et Definitionum", página 785). A respeito, comenta Bartmann no seu
trabalho teológico: ,"O elemento essencial da decisão conciliar deve-se
procurar no sentido da palavra "autêntica". Em si, não significa
conformidade com o texto original da Bíblia, mas reconhecimento da parte da
Igreja" (pág. 47, edição citada). Como vemos, a Igreja, além do mais,
fechou definitivamente a questão em torno até mesmo do texto bíblico, em
relação ao qual não admite nada que se lhe prove contrariamente ao que, da sua
parte, já reconheceu como autêntico. Isto já é, queiram ou não queiram, colocar-se realmente acima da
própria Revelação!
Nenhum comentário:
Postar um comentário