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“À Luz
da Razão”
por Fran Muniz
Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 -
Rio
1924
O INFERNO E OS DEMÔNIOS
Esse
inferno, cujo fogo também faz milagres, em represália aos santos católicos,
permanece em completa escuridão e as “suas chamas nada alumiam mas produzem uma
luz que permite ver os objetos...
Se
alguém entender isso, palavra que somos capazes de acreditar no Catolicismo! parece até a anedota daquele militar que tendo
perdido o braço direito conquistando, por isso, uma promoção, puxou da espada e
cortou o esquerdo para novamente ser promovido.
Com
semelhante teoria a igreja obriga os seus fieis a desconfiarem desse inferno,
porque assim como esse fogo sem “alumiar produz claridade”, também pode não ser
quente o que não admira, visto ser ele milagroso; e como o milagre é a chave de
todos os problemas absurdos, conclui-se que a igreja acaba
“trabalhando para o bispo”.
Saltemos,
porém, a outras passagens tanto ou mais desopilantes, sem mesmo nos
preocuparmos com o “mar de fogo” que é um “cárcere estreito” em “trevas claras”
e “escuridões iluminadas”.
Para
que servirá uma cama no inferno, a quem se debate mergulhado no fogo? Será para
descansar das fadigas do dia? Poder-se-á dormir envolto em labaredas?
Para
que se precisará comer cobras e lagartos e beber fel de dragões? Será para não
morrer de fome e de sede? Será com o fim de fortalecer o corpo para suportar as
chamas eternas? A bicharada e o fel dos dragões serão também de fogo? No caso
afirmativo, não há necessidade deles, visto ter lá fogo por toda a parte para
ser comido. Se não o são, o tal inferno é mesmo milagroso!
Ora,
uma criatura a debater-se nas labaredas eternas; a estorcer-se na dor e na
agonia de um suplício sem tréguas: a gemer em contorções cruciantes, nas vascas
de uma morte horrível que nunca tem fim; terá acaso ocasião e vontade de
alimentar-se e dormir?
Sejamos
sinceros! Só a ambição de uma doutrina gananciosa poderá afirmar tais baboseiras
e lança-las como escárnio ou debique à boa fé alheia.
Contudo
façamos ainda um apelo à consciência, construindo a seguinte parábola:
Dois
irmãos recebem do pai todos os confortos e carícias; mas, apesar dos bons
conselhos e exemplos paternais, se desavêm por qualquer futilidade. Impelido
pela raiva, o mais forte avança sobre o mais fraco, maltrata-o com pancadas e inutiliza
lhe os
brinquedos.
Diante
de tal iniquidade, o pai apresenta-se e diz: Filho maldito, foste mau para teu
irmão! Fizeste-o sofrer e por isso eu te amaldiçoo! Desde já retira-te desta
casa, porque és indigno dela! Não te quero ver mais! Serás levado ao deserto
para que sejas devorado pelas feras! És um desgraçado e a minha vingança é
irrevogável.
Aqui
temos a cópia da injustiça e da maldade divinas, figuradas no inferno católico.
Tomemos
agora os mesmos personagens e o mesmo incidente.
Aqui,
porém, o pai se dirige ao filho vencedor e diz:
Meu
filho, foste mau para teu irmão. Obrigaste-o a verter lágrimas de dor e de
desgostos pela perda dos seus brinquedos. Não sabes, meu filho, que amo a ti,
como a teu irmão? Que tudo quanto faço por ti também o faço por ele? Foste
injusto!
Agora,
como reprovação ao teu ato, de agora em diante, não terás mais os meus beijos,
porque estou zangado contigo!
Levarei
só o teu irmão aos divertimentos, enquanto que tu, meu filho, permanecerás sem
os meus carinhos, até que te arrependas.
Para
isso, é necessário que voltes a amar teu irmão, abraçando-o e beijando-o, como
fazia teu pai contigo - Mas, para que fique provado o teu arrependimento
sincero, é preciso ainda inutilizares também os teus próprios brinquedos, para
que passes pelos mesmos desgostos, sintas as mesmas faltas e
vertas as mesmas lágrimas que acarretaste a teu irmão.
Só
assim, meu filho, voltarás aos meus braços, terás novamente os meus afagos,
pois eu tanto quero a ti como a ele, porque tu e ele são meus filhos.
Eis
a justiça e a bondade de Deus figurada na doutrina sublime e bendita da
reencarnação.
Desnecessário,
pois, será perguntar ao leitor qual dos dois procedimentos é o mais justo e
racional. Estamos a ouvi-lo optar pelo ato do pai da segunda comparação.
Ora,
se um pai humano, procede com seu filho com tanta bondade, tanta brandura, como
poderá o Pai infinito, o Pai do amor, proceder diversamente, mandando seus próprios
filhos para o inferno, onde terão de permanecer eternamente?
Semelhante
monstruosidade só é concebida para atemorizar os pusilânimes e assustar as crianças
medrosas, enquanto que, para outros, é motivo de compaixão e para a maioria,
uma provocação à hilaridade.
Dizem,
porém, os insensatos, que Deus manda para o inferno aqueles que, até á hora da
morte não se arrependem do mal praticado. Ora, isto seria clamorosa injustiça
com os que morrem inesperadamente, sem o devido tempo de se arrependerem.
Se
o espírito sobrevive ao corpo é racional que possa fazer, depois da morte, o
que deixou de fazer antes. Porque, então, faria Deus essa questão fechada, de
só querer perdoar antes, quando o espírito, podendo salvar-se pelo
arrependimento, que poderia vir mais tarde, ficava tolhido dessa graça, para
lhe ser dado o sofrimento eterno?
Demais,
um Deus que tivesse um limite para ser bom, não podia ser “infinitamente bom”.
Triste
condição faz da grandeza do Criador, o orgulho ignorante de uma parte de seus filhos!
É
bem certo que Jesus, algumas vezes, empregou a palavra “inferno” para dar uma
ideia dos sofrimentos; mas foi impossibilitado de demonstrar o estado das
coisas do universo, que seriam incompreendidas, numa época de crenças inveteradas
e atraso intelectual. A igreja que partilha ainda desse intelecto
da prisca idade, traduziu aquele inferno ao “pé da letra”, atulhou-o de “demônios”,
e o circunscreveu em um determinado lugar que, até hoje, ainda ninguém soube
dizer onde é.
E
enquanto os sensatos desopilam o fígado com a ideia desse “escalda-mundo”, familiarize-mo-nos
com esses ”demônios”' cabrioleiros (cambalhota,
salto, pulo), pois, que eles não são incorrigíveis como se
propala.
A
estulta perspicácia dos doutos papalinos, descobriu, em diversas discussões de
Concílios, que a virtude e o vício, não poderiam emanar de uma mesma fonte e,
havendo já obtido o manancial das virtudes representadas nos anjos, tendo por
chefe o próprio Deus, entendeu que os vícios só poderiam ser obra exclusiva dos
“demônios”, para cuja chefia “criou” um
Satanás, também poderoso e agindo com independência.
Esta
outra parvoice (tolice) tem sido
bastante rebatida e, hoje, já é muito pouco aceitável: todavia nunca será
demasiado insistir no assunto.
Assim,
não hesitaremos em refutar essa insípida teoria diabólica que a igreja procura,
ainda hoje, manter, em oposição ao adiantamento intelectual do século.
Mesmo
aqueles, cuja cultura espiritual não está preparada para compreender o real
valor da bondade e justiça de Deus, basta um pouco de reflexão para repelir a
possibilidade desse Belzebú católico.
A
própria igreja, aliás, tem a sua dúvida se Satanás existe ou não, de toda a
eternidade, como deus, pois nunca explicou a genealogia dessa entidade
infernal.
Na
verdade, se Satanás é incriado, forçosamente, é igual a Deus e, nesse caso.
Deus “não é único”, visto haver um deus do mal; se é posterior, é fatalmente,
uma criatura de Deus, logo, Deus “perde a bondade e a justiça” criando um ser
exclusivamente destinado ao mal e incapaz de arrepender-se; se, ainda, Satanás
criou-se a si mesmo, é evidente que tem poder igual a Deus e, por consequência, Deus “não
é Onipotente”, além de “não ser único, nem bom, nem justo”.
Este
raciocínio obriga a responsabilizar, mais uma vez, a igreja, pelo crime de
negar e ensinar a negação dos atributos de Deus; e, quando ela é levada ao
tribunal do Bom Senso, para dar explicações desse novo atentado clamoroso,
serve-se de uma defesa que qualquer criança inteligente seria incapaz de
apresentar.
Nessa
defesa a igreja procura provar, afirmando que parece certo, a lenda da revolta dos anjos contra as ordens do Criador,
em virtude de alguns desses rebeldes não se conformarem com a vinda de Jesus,
como homem, ao planeta Terra, o que consideraram um rebaixamento à natureza angélica.
Daí a expulsão dos arcanjos delinquentes que, amaldiçoados por Deus,
transformaram-se em demônios habitantes
do inferno e chefiados por Lúcifer, cabeça
da sublevação celeste.
Como
vemos, o diabo é muito novo... tem apenas dois mil anos! Que sorte dos que
viveram antes de Cristo, com um inferno acéfalo e vazio e quando a “Empresa
Catolicismo” não tinha ainda organizado o serviço de viação para lá!
De
modo que, com tal teoria, a igreja desmente a felicidade eterna do reino da Glória,
visto os que lá estão, viverem sobressaltados e sujeitos a novas e consecutivas
sedições, como acontece aqui neste nosso mundinho pobre e torturante.
Além
disso, a igreja confirma e reincide no crime de que é acusada, pois assevera
que Deus não pode ou não soube criar os anjos perfeitos e
enganou-se completamente, supondo te-los criados dóceis e exclusivamente bons,
quando, no entanto, lhes deu a maior soma de ira, rancor e desobediência, a
ponto de se revoltarem contra seu próprio Criador.
Assim,
segundo a igreja, Deus continua falível, ou seja, insciente e impresciente.
Esta
crença de inferno é, em suma, o mais atoleimado disparate de todos os dogmas do
catolicismo, instituído para satisfação do orgulho, da ambição e, sobretudo, da
ganância das glórias e das posições salientes que os seus organizadores ocupam
entre os pobres e fracos da terra.
Deixemos
crenças tão tolas dos tempos antiquados, porque a Nova Ciência que aí está
ganhando terreno palmo a palmo. Veio nos trazer a luz para o desenvolvimento
intelectual.
Por
ela, ficamos sabendo que não pode haver sorte estacionária dos espíritos, sem o
que não poderia haver progresso. Sendo, pois, o progresso uma lei estabelecida
pelo Criador, é lógico que existem no universo espíritos em todos os grãos da
escala dessa lei; portanto, podemos compreender, perfeitamente, a intenção de
Jesus, quando disse:
“Há
muitas moradas na casa de meu Pai.”
Assim,
o inferno, se tal expressão quisermos empregar, é, para os infelizes, o mesmo
universo que o céu para os afortunados, porque, aí, os espíritos são
encontrados nos sofrimentos e desgostos em diversos grãos, segundo a
culpabilidade de cada um; essas penas, porém, não são eternas, pois isso
desmereceria os atributos de Deus que, nesse caso, seria infinitamente
vingativo, quando a razão nos diz ser Ele infinitamente bom e misericordioso.
Contudo.
se ainda e apesar do raciocínio, os católicos continuarem a admitir o inferno-espantalho e seus respectivos
Satã e caterva, devemos lembrar-lhes que, visto os “demônios” terem o dom de
tomar a aparência de tudo que lhes aprouver, podem, portanto, se transformar, também, em padres.
Nesse caso, toda a precaução é pouca, pois é bem possível que os fiéis, supondo
frequentar a casa de Deus, estejam,
no entanto, iludidos com todos os diabos.
Sosseguem,
porém, que nem esta última hipótese, apesar, de lógica, pode prevalecer diante
do texto incisivo do Evangelho:
“O
Pai não quer que nenhum dos seus filhos se perca.”
Ora,
sendo as palavras de Jesus a reprodução das que foram ensinadas pelo Pai, é
claro que aquela frase significa uma vontade de Deus e os crentes humildes e
sinceros entendem que a vontade de Deus é imutável e irrevogável.
Mas,
a igreja bateu o pé, cerrou os punhos e num acesso furioso, ainda uma vez, se
opôs ao Absoluto e continua a pregar o inferno e a perdição dos filhos de Deus,
afirmando, assim, que Deus não tem querer nem vontades.
Respondam
os católicos: Terá ela competência para contrariar Deus? Se concordarem... Deus
que os perdoe!
Felizmente,
porém, dentro em pouco, quando o Evangelho estiver ao alcance de todos e a
inteligência de todos ao alcance do Evangelho, as igrejas, então, em ruínas,
serão apontadas como um lugar maldito de heresias e sacrilégios contra o
Supremo Gestor
dos Universos.
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