sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

17b. 'À Luz da Razão' por Fran Muniz



17b
“À Luz da Razão”

por   Fran Muniz

Pap. Venus – Henrique Velho & C. – Rua Larga, 13 - Rio
1924


O INFERNO E OS DEMÔNIOS

            Esse inferno, cujo fogo também faz milagres, em represália aos santos católicos, permanece em completa escuridão e as “suas chamas nada alumiam mas produzem uma luz que permite ver os objetos...

            Se alguém entender isso, palavra que somos capazes de acreditar no Catolicismo! parece até a anedota daquele militar que tendo perdido o braço direito conquistando, por isso, uma promoção, puxou da espada e cortou o esquerdo para novamente ser promovido.

            Com semelhante teoria a igreja obriga os seus fieis a desconfiarem desse inferno, porque assim como esse fogo sem “alumiar produz claridade”, também pode não ser quente o que não admira, visto ser ele milagroso; e como o milagre é a chave de todos os problemas absurdos, conclui-se que a igreja acaba “trabalhando para o bispo”.

            Saltemos, porém, a outras passagens tanto ou mais desopilantes, sem mesmo nos preocuparmos com o “mar de fogo” que é um “cárcere estreito” em “trevas claras” e “escuridões iluminadas”.

            Para que servirá uma cama no inferno, a quem se debate mergulhado no fogo? Será para descansar das fadigas do dia? Poder-se-á dormir envolto em labaredas?

            Para que se precisará comer cobras e lagartos e beber fel de dragões? Será para não morrer de fome e de sede? Será com o fim de fortalecer o corpo para suportar as chamas eternas? A bicharada e o fel dos dragões serão também de fogo? No caso afirmativo, não há necessidade deles, visto ter lá fogo por toda a parte para ser comido. Se não o são, o tal inferno é mesmo milagroso!

            Ora, uma criatura a debater-se nas labaredas eternas; a estorcer-se na dor e na agonia de um suplício sem tréguas: a gemer em contorções cruciantes, nas vascas de uma morte horrível que nunca tem fim; terá acaso ocasião e vontade de alimentar-se e dormir?

            Sejamos sinceros! Só a ambição de uma doutrina gananciosa poderá afirmar tais baboseiras e lança-las como escárnio ou debique à boa fé alheia.

            Contudo façamos ainda um apelo à consciência, construindo a seguinte parábola:

            Dois irmãos recebem do pai todos os confortos e carícias; mas, apesar dos bons conselhos e exemplos paternais, se desavêm por qualquer futilidade. Impelido pela raiva, o mais forte avança sobre o mais fraco, maltrata-o com pancadas e inutiliza lhe os
brinquedos.

            Diante de tal iniquidade, o pai apresenta-se e diz: Filho maldito, foste mau para teu irmão! Fizeste-o sofrer e por isso eu te amaldiçoo! Desde já retira-te desta casa, porque és indigno dela! Não te quero ver mais! Serás levado ao deserto para que sejas devorado pelas feras! És um desgraçado e a minha vingança é irrevogável.

            Aqui temos a cópia da injustiça e da maldade divinas, figuradas no inferno católico.

            Tomemos agora os mesmos personagens e o mesmo incidente.

            Aqui, porém, o pai se dirige ao filho vencedor e diz:          

            Meu filho, foste mau para teu irmão. Obrigaste-o a verter lágrimas de dor e de desgostos pela perda dos seus brinquedos. Não sabes, meu filho, que amo a ti, como a teu irmão? Que tudo quanto faço por ti também o faço por ele? Foste injusto!

            Agora, como reprovação ao teu ato, de agora em diante, não terás mais os meus beijos, porque estou zangado contigo!

            Levarei só o teu irmão aos divertimentos, enquanto que tu, meu filho, permanecerás sem os meus carinhos, até que te arrependas.

            Para isso, é necessário que voltes a amar teu irmão, abraçando-o e beijando-o, como fazia teu pai contigo - Mas, para que fique provado o teu arrependimento sincero, é preciso ainda inutilizares também os teus próprios brinquedos, para que passes pelos mesmos desgostos, sintas as mesmas faltas e vertas as mesmas lágrimas que acarretaste a teu irmão.

            Só assim, meu filho, voltarás aos meus braços, terás novamente os meus afagos, pois eu tanto quero a ti como a ele, porque tu e ele são meus filhos.

            Eis a justiça e a bondade de Deus figurada na doutrina sublime e bendita da reencarnação.

            Desnecessário, pois, será perguntar ao leitor qual dos dois procedimentos é o mais justo e racional. Estamos a ouvi-lo optar pelo ato do pai da segunda   comparação.           

            Ora, se um pai humano, procede com seu filho com tanta bondade, tanta brandura, como poderá o Pai infinito, o Pai do amor, proceder diversamente, mandando seus próprios filhos para o inferno, onde terão de permanecer eternamente?

            Semelhante monstruosidade só é concebida para atemorizar os pusilânimes e assustar as crianças medrosas, enquanto que, para outros, é motivo de compaixão e para a maioria, uma provocação à hilaridade.

            Dizem, porém, os insensatos, que Deus manda para o inferno aqueles que, até á hora da morte não se arrependem do mal praticado. Ora, isto seria clamorosa injustiça com os que morrem inesperadamente, sem o devido tempo de se arrependerem.

            Se o espírito sobrevive ao corpo é racional que possa fazer, depois da morte, o que deixou de fazer antes. Porque, então, faria Deus essa questão fechada, de só querer perdoar antes, quando o espírito, podendo salvar-se pelo arrependimento, que poderia vir mais tarde, ficava tolhido dessa graça, para lhe ser dado o sofrimento eterno?

            Demais, um Deus que tivesse um limite para ser bom, não podia ser “infinitamente bom”.

            Triste condição faz da grandeza do Criador, o orgulho ignorante de uma parte de seus filhos!

            É bem certo que Jesus, algumas vezes, empregou a palavra “inferno” para dar uma ideia dos sofrimentos; mas foi impossibilitado de demonstrar o estado das coisas do universo, que seriam incompreendidas, numa época de crenças inveteradas e atraso intelectual. A igreja que partilha ainda desse intelecto da prisca idade, traduziu aquele inferno ao “pé da letra”, atulhou-o de “demônios”, e o circunscreveu em um determinado lugar que, até hoje, ainda ninguém soube dizer onde é.

            E enquanto os sensatos desopilam o fígado com a ideia desse “escalda-mundo”, familiarize-mo-nos com esses ”demônios”' cabrioleiros (cambalhota, salto, pulo), pois, que eles não são incorrigíveis como se propala.

            A estulta perspicácia dos doutos papalinos, descobriu, em diversas discussões de Concílios, que a virtude e o vício, não poderiam emanar de uma mesma fonte e, havendo já obtido o manancial das virtudes representadas nos anjos, tendo por chefe o próprio Deus, entendeu que os vícios só poderiam ser obra exclusiva dos “demônios”, para cuja chefia  “criou” um Satanás, também poderoso e agindo com independência.

            Esta outra parvoice (tolice) tem sido bastante rebatida e, hoje, já é muito pouco aceitável: todavia nunca será demasiado insistir no assunto.

            Assim, não hesitaremos em refutar essa insípida teoria diabólica que a igreja procura, ainda hoje, manter, em oposição ao adiantamento intelectual do século.

            Mesmo aqueles, cuja cultura espiritual não está preparada para compreender o real valor da bondade e justiça de Deus, basta um pouco de reflexão para repelir a possibilidade desse Belzebú católico.

            A própria igreja, aliás, tem a sua dúvida se Satanás existe ou não, de toda a eternidade, como deus, pois nunca explicou a genealogia dessa entidade infernal.

            Na verdade, se Satanás é incriado, forçosamente, é igual a Deus e, nesse caso. Deus “não é único”, visto haver um deus do mal; se é posterior, é fatalmente, uma criatura de Deus, logo, Deus “perde a bondade e a justiça” criando um ser exclusivamente destinado ao mal e incapaz de arrepender-se; se, ainda, Satanás criou-se a si mesmo, é evidente que tem poder igual a Deus e, por consequência, Deus “não é Onipotente”, além de “não ser único, nem bom, nem justo”.

            Este raciocínio obriga a responsabilizar, mais uma vez, a igreja, pelo crime de negar e ensinar a negação dos atributos de Deus; e, quando ela é levada ao tribunal do Bom Senso, para dar explicações desse novo atentado clamoroso, serve-se de uma defesa que qualquer criança inteligente seria incapaz de apresentar.

            Nessa defesa a igreja procura provar, afirmando que parece certo, a lenda da revolta dos anjos contra as ordens do Criador, em virtude de alguns desses rebeldes não se conformarem com a vinda de Jesus, como homem, ao planeta Terra, o que consideraram um rebaixamento à natureza angélica. Daí a expulsão dos arcanjos delinquentes que, amaldiçoados por Deus, transformaram-se em demônios habitantes do inferno e chefiados por Lúcifer, cabeça da sublevação celeste.

            Como vemos, o diabo é muito novo... tem apenas dois mil anos! Que sorte dos que viveram antes de Cristo, com um inferno acéfalo e vazio e quando a “Empresa Catolicismo” não tinha ainda organizado o serviço de viação para lá!

            De modo que, com tal teoria, a igreja desmente a felicidade eterna do reino da Glória, visto os que lá estão, viverem sobressaltados e sujeitos a novas e consecutivas sedições, como acontece aqui neste nosso mundinho pobre e torturante.

            Além disso, a igreja confirma e reincide no crime de que é acusada, pois assevera que Deus não pode ou não soube criar os anjos perfeitos e enganou-se completamente, supondo te-los criados dóceis e exclusivamente bons, quando, no entanto, lhes deu a maior soma de ira, rancor e desobediência, a ponto de se revoltarem contra seu próprio Criador.

            Assim, segundo a igreja, Deus continua falível, ou seja, insciente e impresciente.

            Esta crença de inferno é, em suma, o mais atoleimado disparate de todos os dogmas do catolicismo, instituído para satisfação do orgulho, da ambição e, sobretudo, da ganância das glórias e das posições salientes que os seus organizadores ocupam entre os pobres e fracos da terra.              

            Deixemos crenças tão tolas dos tempos antiquados, porque a Nova Ciência que aí está ganhando terreno palmo a palmo. Veio nos trazer a luz para o desenvolvimento intelectual.
           
            Por ela, ficamos sabendo que não pode haver sorte estacionária dos espíritos, sem o que não poderia haver progresso. Sendo, pois, o progresso uma lei estabelecida pelo Criador, é lógico que existem no universo espíritos em todos os grãos da escala dessa lei; portanto, podemos compreender, perfeitamente, a intenção de Jesus, quando disse:

            “Há muitas moradas na casa de meu Pai.”

            Assim, o inferno, se tal expressão quisermos empregar, é, para os infelizes, o mesmo universo que o céu para os afortunados, porque, aí, os espíritos são encontrados nos sofrimentos e desgostos em diversos grãos, segundo a culpabilidade de cada um; essas penas, porém, não são eternas, pois isso desmereceria os atributos de Deus que, nesse caso, seria infinitamente vingativo, quando a razão nos diz ser Ele infinitamente bom e misericordioso.

            Contudo. se ainda e apesar do raciocínio, os católicos continuarem a admitir o inferno-espantalho e seus respectivos Satã e caterva, devemos lembrar-lhes que, visto os “demônios” terem o dom de tomar a aparência de tudo que lhes aprouver, podem, portanto, se transformar, também, em padres. Nesse caso, toda a precaução é pouca, pois é bem possível que os fiéis, supondo frequentar a casa de Deus, estejam, no entanto, iludidos com todos os diabos.

            Sosseguem, porém, que nem esta última hipótese, apesar, de lógica, pode prevalecer diante do texto incisivo do Evangelho:

            “O Pai não quer que nenhum dos seus filhos se perca.”

            Ora, sendo as palavras de Jesus a reprodução das que foram ensinadas pelo Pai, é claro que aquela frase significa uma vontade de Deus e os crentes humildes e sinceros entendem que a vontade de Deus é imutável e irrevogável.

            Mas, a igreja bateu o pé, cerrou os punhos e num acesso furioso, ainda uma vez, se opôs ao Absoluto e continua a pregar o inferno e a perdição dos filhos de Deus, afirmando, assim, que Deus não tem querer nem vontades.

            Respondam os católicos: Terá ela competência para contrariar Deus? Se concordarem... Deus que os perdoe!

            Felizmente, porém, dentro em pouco, quando o Evangelho estiver ao alcance de todos e a inteligência de todos ao alcance do Evangelho, as igrejas, então, em ruínas, serão apontadas como um lugar maldito de heresias e sacrilégios contra o Supremo Gestor
dos Universos.




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