O Mendigo
de Hedjaz
Dispunha-me a dobrar uma esquina
quando ouvi a voz lenta e soturna de um mendigo que implorava uma esmola. Parei
para atendê-lo. Naquele instante, lembrei-me do velho Ibraim, que conheci; roto
e sujo, em Constantinopla, há cerca de dois decênios.
*
Ele arrastava com alguma dificuldade
seus andrajos, sobraçando um livro pequeno que trouxera de Bagdá. Suas atitudes
eram misteriosas; percebia-se que Ibraim não tinha maldade, mas era um tanto
desconfiado. Aproximei-me, procurando mostrar-lhe minha simpatia. Foi quando um
sorriso tímido e bom surgiu por entre aquele emaranhada de fios grisalhos de
sua barba espessa. Nesse dia, almocei com ele um pedaço de pão velho, um naco de
queijo e um pouco de leite de cabra que lhe haviam dado pouco antes. Sob aquela
carcaça envelhecida, ocultava-se-um espírito forte. Disto me certifiquei quando
lhe conheci a história. Depois, Ibraim, sorrindo sem amargura, sentenciou:
"
- É destino do homem lutar para
vencer. A derrota deve ser encarada como advertência, porque ela somente
frustra os desejos do lutador quando este não atingiu a plenitude de sua
preparação para a luta. O revés deve constituir estímulo para as refregas
futuras. O derrotado não é o que perde a luta e busca recomeçá-la, mas o que se
entrega ao desespero. Só não é vencido quem não luta e só se dá valor à vitória
depois que se conheceu o sabor amargo da derrota. É destino do homem lutar para
vencer. Não importa que se veja batido. Deve persistir, jamais desistir. O
insucesso serve para pôr à prova suas reservas morais. O que desanima ante os
contratempos não merece a luta, não se faz digno da vitória. Se o prêmio do esforço
honesto é o triunfo, há necessidade de uma preparação melhor que mostre o
caminho do êxito. A concepção da vitória varia de acordo com o nível espiritual
de cada indivíduo. Muitas vezes, porém, o derrotado é, na realidade, o
vitorioso... Todavia, há derrotas que dignificam; há vitórias que
desmoralizam... Só há triunfo legítimo quando tem por fim ideais nobilitantes.
Ibraim voltou a sorrir e ponderou
com encantadora doçura:
- Fui um homem rico e poderoso. Tive
a meus pés homens e mulheres. Aparentemente, possuía tudo; na realidade, meu
amigo, tudo me faltava, porque eu não tinha o maior bem que Alá deixou na
Terra: a tranquilidade. Nasci coberto de ouro e pedras preciosas, e andava nu.
"- Um dia, bateu--me à porta um cenobita. Cantou-me o suave cântico de um
Evangelho que eu não conhecia. Contou-me que passara pelo mundo um pregador
cheio de meiguice, maior que Maomé, porque até contra o mal empregava o Amor...
Quis saber-lhe o nome. O
cenobita, compreendendo as ânsias do meu espírito, m'o revelou: Jesus-Cristo!
Terrível luta se travou em meu intimo. Fui vitorioso depois de muitas derrotas
impostas pelos sentimentos inferiores que viviam em meu coração. Renunciei a
tudo que me parecia indigno de um crente. Meus haveres foram empregados em
benefício da pobreza, minhas terras foram distribuídas entre os que mais
necessitavam. Conheci lutas e dores, tornei-me um mendigo que não pede esmolas,
mas trabalho. E sempre que posso, lanço a semente de tão bela doutrina no
espírito dos que me ouvem. Fui um derrotado enquanto coloquei os bens materiais
acima dos bens do Espírito. Hoje, sou um liberto. Nesta aparência de miséria em
que me vê, sou um vitorioso. E devo tudo quanto tenho à bondade de Alá, que me
pôs no caminho do grande profeta de Nazaré.
*
Longa pausa do velho mendigo, cuja
extraordinária personalidade se agigantava diante de mim. Eu, que pensara em
ajudar Ibraim, sentia que ele é que me estava ajudando... Era como que um
apóstolo bíblico ressurgido para minha edificação. Ele devassou o meu
pensamento e recomeçou a falar:
- Não olhes com desprezo ou
indiferença para o mendigo que te estende a mão descarnada e suja, deprecando a
graça de uma espórtula. Não te esqueças de que somos todos mendigos, mas de
graus diferentes, de planos diversos. Há os mendigos de moral, os mendigos de
saber, os mendigos de paciência, os mendigos de tolerância, os mendigos de honestidade,
os mendigos de amor e, em número infinito, os mendigos de tranquilidade. Todos
somos mendigos, porque todos necessitados, todos pedintes, todos cegos
voluntários. E o menos infeliz é justamente o que apenas exora uma moeda vadia
ou os restos dos restos das mesas fartas...
.............................
.
- Agora, adeus! Sigo com a minha
"lanterna" a rota trevosa. Não me lamentes, porque não sou um louco.
Não me deplores, porque sei o rumo que sigo...
- Onde está, porém, a tua lanterna,
Ibraim? - perguntei.
Retirando o pequeno livro que
sobraçava, ele tornou sem demora:
- Aqui! Este é o Evangelho do grande
profeta de Nazaré, a "lanterna" que o cenobita me deu para iluminar o
meu caminho. No entanto, o clarão que está em seu interior somente pode ser
visto através da exemplificação na vida prática. Estou muito longe de seguir as
pegadas do Mestre, mas não desistirei do meu intento e hei de algum dia me
fazer digno das lições sublimes que o Evangelho contém!
E Ibraim do Hedjaz, sua terra natal,
partiu, deixando-me prisioneiro de reflexões profundas.
Quinze anos são passados. Sempre que
defronto um mendigo, a fisionomia majestática daquele velho servidor do Cristo
me surge perfeita, iluminada, impressionante. E suas palavras me cantam nos
ouvidos:
- Não olhes com desprezo ou
indiferença para o mendigo que te estende a mão descarnada e suja, deprecando a
graça de uma espórtula. Não te esqueças de que todos somos mendigos, mas de
graus diferentes, de planos diversos. E o menos infeliz é justamente o que
apenas exora uma moeda vadia ou os restos dos restos das mesas fartas...
José Brígido (Indalício
Mendes)
Reformador (FEB) Setembro 1948
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