terça-feira, 13 de novembro de 2012

O Mendigo de Hedjaz




O Mendigo
de Hedjaz


            Dispunha-me a dobrar uma esquina quando ouvi a voz lenta e soturna de um mendigo que implorava uma esmola. Parei para atendê-lo. Naquele instante, lembrei-me do velho Ibraim, que conheci; roto e sujo, em Constantinopla, há cerca de dois decênios.

*

            Ele arrastava com alguma dificuldade seus andrajos, sobraçando um livro pequeno que trouxera de Bagdá. Suas atitudes eram misteriosas; percebia-se que Ibraim não tinha maldade, mas era um tanto desconfiado. Aproximei-me, procurando mostrar-lhe minha simpatia. Foi quando um sorriso tímido e bom surgiu por entre aquele emaranhada de fios grisalhos de sua barba espessa. Nesse dia, almocei com ele um pedaço de pão velho, um naco de queijo e um pouco de leite de cabra que lhe haviam dado pouco antes. Sob aquela carcaça envelhecida, ocultava-se-um espírito forte. Disto me certifiquei quando lhe conheci a história. Depois, Ibraim, sorrindo sem amargura, sentenciou: "

            - É destino do homem lutar para vencer. A derrota deve ser encarada como advertência, porque ela somente frustra os desejos do lutador quando este não atingiu a plenitude de sua preparação para a luta. O revés deve constituir estímulo para as refregas futuras. O derrotado não é o que perde a luta e busca recomeçá-la, mas o que se entrega ao desespero. Só não é vencido quem não luta e só se dá valor à vitória depois que se conheceu o sabor amargo da derrota. É destino do homem lutar para vencer. Não importa que se veja batido. Deve persistir, jamais desistir. O insucesso serve para pôr à prova suas reservas morais. O que desanima ante os contratempos não merece a luta, não se faz digno da vitória. Se o prêmio do esforço honesto é o triunfo, há necessidade de uma preparação melhor que mostre o caminho do êxito. A concepção da vitória varia de acordo com o nível espiritual de cada indivíduo. Muitas vezes, porém, o derrotado é, na realidade, o vitorioso... Todavia, há derrotas que dignificam; há vitórias que desmoralizam... Só há triunfo legítimo quando tem por fim ideais nobilitantes.

            Ibraim voltou a sorrir e ponderou com encantadora doçura:

            - Fui um homem rico e poderoso. Tive a meus pés homens e mulheres. Aparentemente, possuía tudo; na realidade, meu amigo, tudo me faltava, porque eu não tinha o maior bem que Alá deixou na Terra: a tranquilidade. Nasci coberto de ouro e pedras preciosas, e andava nu. "- Um dia, bateu--me à porta um cenobita. Cantou-me o suave cântico de um Evangelho que eu não conhecia. Contou-me que passara pelo mundo um pregador cheio de meiguice, maior que Maomé, porque até contra o mal empregava o Amor... Quis saber-lhe o nome. O cenobita, compreendendo as ânsias do meu espírito, m'o revelou: Jesus-Cristo! Terrível luta se travou em meu intimo. Fui vitorioso depois de muitas derrotas impostas pelos sentimentos inferiores que viviam em meu coração. Renunciei a tudo que me parecia indigno de um crente. Meus haveres foram empregados em benefício da pobreza, minhas terras foram distribuídas entre os que mais necessitavam. Conheci lutas e dores, tornei-me um mendigo que não pede esmolas, mas trabalho. E sempre que posso, lanço a semente de tão bela doutrina no espírito dos que me ouvem. Fui um derrotado enquanto coloquei os bens materiais acima dos bens do Espírito. Hoje, sou um liberto. Nesta aparência de miséria em que me vê, sou um vitorioso. E devo tudo quanto tenho à bondade de Alá, que me pôs no caminho do grande profeta de Nazaré.

*

            Longa pausa do velho mendigo, cuja extraordinária personalidade se agigantava diante de mim. Eu, que pensara em ajudar Ibraim, sentia que ele é que me estava ajudando... Era como que um apóstolo bíblico ressurgido para minha edificação. Ele devassou o meu pensamento e recomeçou a falar:

            - Não olhes com desprezo ou indiferença para o mendigo que te estende a mão descarnada e suja, deprecando a graça de uma espórtula. Não te esqueças de que somos todos mendigos, mas de graus diferentes, de planos diversos. Há os mendigos de moral, os mendigos de saber, os mendigos de paciência, os mendigos de tolerância, os mendigos de honestidade, os mendigos de amor e, em número infinito, os mendigos de tranquilidade. Todos somos mendigos, porque todos necessitados, todos pedintes, todos cegos voluntários. E o menos infeliz é justamente o que apenas exora uma moeda vadia ou os restos dos restos das mesas fartas...

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            - Agora, adeus! Sigo com a minha "lanterna" a rota trevosa. Não me lamentes, porque não sou um louco. Não me deplores, porque sei o rumo que sigo...             

            - Onde está, porém, a tua lanterna, Ibraim? - perguntei.

            Retirando o pequeno livro que sobraçava, ele tornou sem demora:

            - Aqui! Este é o Evangelho do grande profeta de Nazaré, a "lanterna" que o cenobita me deu para iluminar o meu caminho. No entanto, o clarão que está em seu interior somente pode ser visto através da exemplificação na vida prática. Estou muito longe de seguir as pegadas do Mestre, mas não desistirei do meu intento e hei de algum dia me fazer digno das lições sublimes que o Evangelho contém!           

            E Ibraim do Hedjaz, sua terra natal, partiu, deixando-me prisioneiro de reflexões profundas.

            Quinze anos são passados. Sempre que defronto um mendigo, a fisionomia majestática daquele velho servidor do Cristo me surge perfeita, iluminada, impressionante. E suas palavras me cantam nos ouvidos:

            - Não olhes com desprezo ou indiferença para o mendigo que te estende a mão descarnada e suja, deprecando a graça de uma espórtula. Não te esqueças de que todos somos mendigos, mas de graus diferentes, de planos diversos. E o menos infeliz é justamente o que apenas exora uma moeda vadia ou os restos dos restos das mesas fartas...

José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB)  Setembro 1948


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