domingo, 14 de outubro de 2012

Mãos Enferrujadas



Mãos
Enferrujadas



            Quando Joaquim Sucupira abandonou o corpo, depois dos sessenta anos, deixou nos conhecidos a impressão de que subiria incontinente ao Céu. Vivera arredado do mundo, no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca.

            Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela; e o lenço, admiravelmente dobrado, caía, irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o apurado culto às maneiras distintas. Buscava, no barbeiro cuidadoso, cada manhã, renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.

            Dizia-se cristão e, realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga. Assegurava, porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes. Detestava os padres católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os espiritistas à conta de loucos. Aceitava Jesus a, seu modo, não segundo o próprio Jesus.

            As facilidades econômicas transitórias adiavam lhe as lições benfeitoras do concurso fraterno, no campo da vida.

            Estudava, estudava, estudava...

            E cada vez mais se convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo. Afastamento individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro. Em vista disso, a desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se, passaria por viagem sem escalas com destino à Corte Celeste.

            Dava aos familiares dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por eles: distribuía esmolas vultosas, para que os problemas de caridade não lhe visitassem o lar, afastava-se do mundo para não pecar. Não seria Joaquim - perguntavam amigos íntimos - o tipo do religioso perfeito? Distante de todas as complicações da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes, impossível não conquistasse o paraíso.

            A realidade, contudo, que o defrontava agora, não correspondia à expectativa geral.

            Sucupira desencarnado ingressara numa esfera de ação, dentro da qual parecia não ser percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação brilhante, nos campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de todas as pessoas em serviço digno. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado à velha cozinheira analfabeta.

            Em se aproximando, todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido. Conseguia andar, ver, ouvir, pensar; no entanto, desventurado Joaquim! as mãos e os braços mantinham-se inertes. Semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a cair de braços, porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.

            Muito tempo suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de tempos a tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.

            O benfeitor que detinha ali funções de juiz, reunida a assembleia de espíritos penitentes, declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam aos círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar os casos mais angustiosos e urgentes.

            Devotados companheiros do bem selecionaram a meia dúzia de sofredores que poderiam ser ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Sucupira, a exibir os braços petrificados.

            Chorou, rogou, lamuriou-se. Quando pareceu disposto ao relatório geral e circunstanciado da existência finda, obtemperou o julgador.

            - Não, meu amigo, não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que interessa.

            Examinou-o detidamente e observou, passados alguns instantes:

            - Sua maravilhosa acuidade mental demonstra que estudou muitíssimo.

            Fez pequeno intervalo e entrou a arguir:

            - Joaquim, você era casado?

            - Sim.

            - Zelava a residência?

            - Minha mulher cuidava de tudo.

            - Foi pai?

            - Sim.

            Cuidava dos filhos em pequeninos?

            - Tínhamos suficiente número de criadas e amas.

            - E quando jovens?

            - Eram naturalmente entregues aos professores.

            - Exerceu alguma profissão útil?

            - Não tinha necessidade de trabalhar para ganhar o pão.

            - Nunca sofreu dor de cabeça pelos amigos?

            - Sempre fugi, receoso, das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.

            O julgador interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:

            - Você adotou alguma religião?

            - Sim, eu era cristão - esclareceu Sucupira.

            - Ajudava aos católicos?

            - Não. Detestava os sacerdotes.

            - Cooperava com as igrejas reformadas?

            - De modo algum. São excessivamente intolerantes.

            - Acompanhava os espiritistas?

            - Não. Temia-lhes a presença.

            - Amparou doentes, em nome do Cristo?

            - A Terra tem numerosos enfermeiros.

            - Auxiliou criancinhas abandonadas?

            - Há creches por toda parte.

            - Escreveu alguma página consoladora?

            - Para quê? o mundo está cheio de livros e escritores. 

            - Estimava o martelo ou o pincel?

            - Absolutamente.

            - Socorreu animais desprotegidos?

            - Não.

            - Agradava-lhe cavar a terra?

            - Nunca.

            - Plantou árvores benfeitoras?

            - Também não.

            - Dedicou-se ao serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?

            Sucupira fez um gesto de desdém e Informou:

            - Jamais pensei nisto.

            O instrutor indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta. Ao fim do interrogatório, opinou sem delongas:

            - Seu caso explica-se. Você tem as mãos enferrujadas.

            Ante a careta do interlocutor amargurado, esclareceu:

            É o talento não usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso terrestre.

            Joaquim, confundido, desejava mais amplas elucidações.

            O juiz, porém, sem tempo de ouvi-Io, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.

            Rogério, carioca desencarnado, tipo 1945, recebeu-o de semblante amável e feliz e, após escutar-lhe compridas lamentações, convidou, pacientemente: 

            - Vamos, Sucupira. Você entrará na fila em breves dias.

            - Fila? - interrogou o infeliz, boquiaberto.

            - Sim - acrescentou o alegre ajudante - na fila da reencarnação.

            E, puxando o paralítico pelos ombros, concluía sorrindo:

            - O que você precisa, Joaquim, é de movimento .

Irmão X por Chico Xavier
Reformador (FEB) Dezembro 1947


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