A
esquerda e a direita
Que não se vá supor, pelo título,
tratar-se de uma questão política ou mesmo internacional. O de que se cogita
nestas linhas é apenas de uma questão evangélica.
Não é que ela
esteja isenta de percalços, mas se formos a fugir de todos os assuntos, mais ou menos perigosos, em breve nos transformaríamos num penedo.
Há cidadãos para
quem já não existem mais segredos nos campos da filosofia ou da religiosidade. Dir-se-ia
que o Criador, na sua munificência, colocou-lhes à frente um farol, mais potente que o de Alexandria, graças ao qual eles podem ver o que
nós não divisamos.
E isto só nos
causaria contentamento, se eles permitissem que pudéssemos ter também uma ideia qualquer, embora a nossa estrada fosse apenas iluminada
por uma luz de lamparina.
Tal, por exemplo,
não admite jocosidades em Espiritismo - Nada de gargalhadas, nem mesmo de
sorrisos, nem sequer a mais ligeira pitada de um ligeiro bom humor. O
Espiritismo tem que ser tétrico, talvez por se tratar de mortos. Não deve haver
coisa nenhuma por onde transpire alegria; se aboliu ele o luto nos corpos, não
o aboliu nas almas; suprima-se tudo que represente louçanias; desapareçam festinhas e festões; que as
nossas falas sejam plangentes como um sermão de lágrimas; que os nossos salões se transformem em
catacumbas; que os nossos ouvintes sejam hirtos como os fantasmas de Macferson. O
orador espírita, austero como Timão, deve ser sempre triste e gravebundo, pejado
de reflexões circunspectas, solene nos gestos e nas palavras, taciturno nas ideias,
embora o auditório boceje de tédio e lamente não haver mesmo um inferno para o
mandar.
Breve, para ser
espírita o cidadão deve apresentar-se como o Euzebiozinho, do Eça, que tinha o
privilégio, pelo seu aspecto fúnebre, de estragar completamente todas as
reuniões.
Isto é apenas um
exemplo.
Há os que têm as
suas interpretações; eles não admitem outras; não toleram que possa haver
qualquer hermenêutica que não seja a que imaginaram, a que perfilharam, a que
lançaram, certos de que deixaram um rastro de luz na obscuridade que envolve os
outros.
Um amigo nosso,
de cultura invulgar, dizia-nos que, em certa comunidade, não podia abrir a boca para dar uma opinião discordante das demais. Os
companheiros, mal comparando, caíam-lhe em cima como as aves, à chegada de uma
hóspede.
Para não se
transformar em frango, recém- vindo num galinheiro, meteu na gaveta os seus preciosos
trabalhos e não apareceu mais no campo espírita.
Donde se vê que
a, intolerância não é, propriamente, defeito de sistemas e religiões, senão um
produto da inferioridade humana.
Assim é que, com
as devidas reservas, vimos apresentar ou justificar o nosso modo de ver sobre
um passo dos Evangelhos.
Nossa opinião é
tão despida de importância, que mesmo errada como deve estar, não causará nenhuma celeuma. Provavelmente, morre por si, dada a
insuficiência da fonte de onde promana, tal como os córregos do Nordeste quando
lhes falta o alimento das chuvas. Supomos, apenas, que tem base em nossos
ensinos.
Assim, data venia, pensamos que o Criador não
manda ninguém, definitivamente, para a direita ou para a esquerda.
Esta afirmativa
deve-se afigurar herética, para muitos, visto que, no passo evangélico, se diz:
"Quando
vier o Filho do homem na sua glória e todos os anjos com ele, então se
assentará no trono de sua glória. Todas as nações serão reunidas diante dele, e
separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos; porá as
ovelhas à direita e os cabritos à esquerda." (Mateus, 25 :3,1-33) .
Separados
cabritos e ovelhas, o Rei dará aos da direita o reino que lhes estava
destinado. Aos da esquerda, coitados, está reservado o desespero.
Diante do texto, réprobos
e eleitos seriam separados no juízo final, ficando aqueles de um lado e estes
de outro, por todos os séculos dos séculos; e o Pai, aquele que queria, não a
morte do ímpio, mas a sua salvação, cavaria um fosso intransponível entre as
suas criaturas, extremando-as para todo o sempre, e o que é mais, deixando a
uns a glória eterna e lançando a outros na eterna desgraça.
Bem sabemos que
aqueles que assim pensam, estão com a letra dos versículos. Mas não lhe pode ser este o espírito, nem nele existiria lógica diante dos
demais ensinos evangélicos e, sobretudo, dos ensinos espíritas.
Não se compreende
esta separação na vida evolutiva. Trata-se, necessariamente, de um símbolo, em
que os seres só serão distintos enquanto revestirem o aspecto de cabritos e
ovelhas. Distinção, porém, temporária.
Se o Pai criasse
uns para cabritos e outros para ovelhas, colocando aqueles à esquerda e estes à direita, teria procedido sem equidade, ou pelo menos faria
distinção entre os seus filhos. Os da
esquerda estariam condenados, e o Pai não condena.
"Pois
o Pai a ninguém julga." (João,
V-22).
O Espírito
ascende continuamente. Suas faltas acarretam-lhe sofrimentos, tanto mais pesados
quanto mais graves forem; mas essas próprias faltas não significam uma parada
no processo evolutivo; seria, quando muito, um desvio, e daí a figura da
esquerda. Quem, porém, supuser que o Criador, ao fim dos séculos, e no juízo final,
separa as suas criaturas, pondo umas à direita e outras à esquerda, isto é, dando àquelas, em
número muito diminuto, a felicidade infinita, e a estas, ou seja a grande massa
dos seres, uma desventura perene, não compreende o Senhor nos seus atributos de
bondade e de justiça.
E muito menos
compreenderá a doutrina espírita, de progresso indefinido, de evolução constante, de amor absoluto, aquele que vir no texto o que suas
palavras dizem, sem deixar que sobre elas perpasse a brisa da razão, que as elucida,
que lhes dá vida.
E se ainda
desculpamos o equívoco em religiosos outros, inacostumados ao exame e pouco habituados
à lógica, não o compreenderíamos, pelo menos, entre os nossos confrades.
por Carlos Imbassahy (Pai)
in Reformador (FEB)
Junho 1945
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