Espiritismo
ou Agonia
Que as almas do outro mundo, que
antes foram deste onde vivemos, recomeçam nova existência ao deixarem o corpo
mortal, eis uma crença que se prende às mais remotas religiões. Dificilmente se
anulou este conceito, posteriormente. A teoria da metempsicose, mais ou menos
disfarçada, nós a encontramos, igualmente, em todas as crenças. A imortalidade
do espírito sempre pareceu ao homem, geralmente, uma coisa natural. Os
cépticos, os ateus, os chamados materialistas, de qualquer espécie, mais que
negar, se desentendem desse problema, acovardados pela ideia de que haja que
ascender pela empinada encosta da metafísica. É uma questão de preguiça mental.
O que há detrás da morte é, para os
simples naturalistas, um pensamento que absorve Excessivas energias, numa vida
já demasiado curta, e que, como não apresenta soluções rápidas, não paga a pena
preocupar-se com algo que há de, indefectivelmente, acontecer. Mas as épocas
reclamam, por sua vez, intermitentemente, que a atualidade do problema não
se perca. E estamos num período em que volta, de novo, o auge desta intensa
questão.
A vida apresenta-se com uma série de
dificuldades que, sem querermos preocupar-nos com o destino final, nos
preocupamos com o destino presente. E a pergunta já não está em saber o que
será de nós, ao terminar este escabroso caminho, mas se esse caminho merece ser
percorrido, nas atuais circunstâncias e, claro está, isto nos leva a pensar que
talvez valha a pena viver a outra vida, visto como esta se torna tão dolorosa.
Devo confessar ao amável leitor que,
por ora, não sou espírita. Minha crença cristã me tem parecido suficiente. Mas
não deixo de reconhecer que o Espiritismo se estendeu bastante, a ponto de ser
contemplado, hoje em dia, como um tema muito digno de consideração e de
ponderação. Sou quase um perfeito leigo na matéria, pois apenas pude deter-me
na leitura de publicações ou livros a ela referentes. Tenho amigos que militam
no Espiritismo e pessoas de talento e de cultura e até reconhecidos como indiferentes,
antes de sua nova atitude. E apenas também posso dizer que assisti a sessões
espíritas. Convidado uma vez a assistir à manifestação de um
"médium", estive, sem outras consequências, horas e horas sentado a
uma mesa, na penumbra de uma habitação e em companhia de outros convidados,
ouvindo pacientemente quanto lhe ocorreu dizer, falando do divino e do humano a
um inteligente e culto senhor, que julguei se encontrasse submetido, mais que a
uma encarnação a uma neurose oratória. Aquele espiritismo não me convenceu de
nenhum modo, a despeito de seu caráter intelectual. Em troca, encontrei um
espiritismo mais amável, mais sugestivo e mais convincente, em singelas
reuniões de gente de boa vontade, sinceros e até
humildes crentes de uma religião que, partindo dos próprios princípios
evangélicos, num mundo de mal-estar psíquico, de desfalecimento moral, se
esforça por levar consolo e esperança, não apenas aos pobres de espírito, mas
também aos pobres de tudo: que são muitos em nosso universo. Analisar tudo o
que se produz na prática do Espiritismo, seus efeitos evidentes, repelindo o
que também evidentemente se explora e adultera, este já é ponto que não
abordarei nesta ocasião, pois tal não é meu propósito.
Há, ou não há, nos nossos dias, uma
inquietação inédita pelo Além? Esta é, em meu entender, uma questão interessantíssima.
Um estudo veio em minha ajuda, breve e sóbrio, de Rodolfo Felice, fundador e
presidente-diretor da Sociedade Nacional Espiritista da Venezuela. Sob o titulo
"A encruzilhada da História", emitiu conceitos e ideias muito
assisadas. Onde está e que se fez da Civilização? pergunta Rodolfo Felice, em
face do momento que a Humanidade atravessa. Não há um só país, nem coletividade
alguma, nem nenhuma pessoa que, de uma ou outra maneira, não tenha sido tocado
de perto por este estremecimento de angústia, o qual,
ante
a incapacidade de ter remédio por parte das pessoas dirigentes, mais parece uma
pressão de forças desconhecidas que uma realidade externa bem tangível a que fosse
possível dar remédio. Esta é uma parte da exposição de Rodolfo Felice. Devo
anotar que este destacado espiritista se deu a conhecer na imprensa da Europa,
dos Estados Unidos e da América Latina, ao ser divulgada a comunicação que,
segundo ele, recebeu do outro mundo, do Espírito do conhecido escritor
colombiano J. M. Vargas Vila, falecido em 1933 e que, pouco depois de sua
morte, anunciou àquele "médium" a catástrofe mundial que se avizinhava,
ou seja, a segunda guerra mundial. Não nego que outras pessoas vivas já prediziam,
sem a clarividência de além-túmulo, o referido conflito. A possibilidade da
reencarnação, que fundamenta o Espiritismo, se não é, apesar de todos os
esforços, assunto inconcusso, para mim é, indubitavelmente, uma base
suficientemente firme para explicar amplamente todos os desníveis sociais que
observamos entre os nossos semelhantes e que a Religião Católica pretende
explicar, sem explicação absoluta, como um desígnio superior de Cristo e para
consolo dos pobres, que entrarão no céu mais facilmente que os ricos. A vida
pretérita que, estando
vivos, desconhecemos, por não termos lembrança dela, parece mais convincente
que a "probabilidade" de uma vida futura, como prêmio às nossas
desventuras atuais. A sucessão sem fim, de reencarnações, se nos depara mais
doce e consoladora que essa definitiva imortalidade do Catolicismo, de acordo
com a qual sofreremos penas eternas, ou felicidade infinita, e que nos separa,
irremissivelmente, para toda a eternidade, deste mundo a que tanto
nos apegamos, com desgraças ou com venturas.
Negar que ao Espiritismo está aberto
imenso caminho a percorrer, não já para impor-se como filosofia religiosa
indestrutível, mas para assentar princípios firmes seria obtuso. Rodolfo Felice
garante, sem prová-lo, que o Espiritismo já proporcionou a prova definitiva da
sobrevivência do ser humano, embora tal prova já tenha sido obtida por várias
vias. Estas vias, entretanto, creio que carecem de uma continuidade patente,
sendo, antes, trechos de caminho, pedaços de senda, que se interrompem e
quebram aos quais somente a vontade do
crente une e enlaça. Sinais e pressentimentos, visões e intuições, efeitos
sensíveis, toda essa gama fascinante do brilho do Espiritismo, não mantém,
todavia, talvez em virtude da própria limitação humana uma espécie de
Via-Láctea, a marcar, inequivocamente, o rumo, na noite das nossas dúvidas e
dos nossos temores.
"O Espiritismo - prossegue
dizendo o ilustre venezuelano - vem na hora presente e tremenda, para dotar a
criatura pensante dos conceitos e elementos de juízo que lhe permitam iluminar
sua inteligência e sua razão com luz definitiva, pelo menos no que tange ao
grande problema: o porquê da vida." Aqui o crente nos embarga o passo com
sua própria fé, mas na realidade continuamos sem estar certos de que essa luz
nos alumie.
O que em verdade captamos nessa
forte atualidade do Espiritismo é o rastro deixado pelo pensador Miguel de
Unamuno, que, se não era propriamente espiritista, lutou por arrancar do
espírito todo o mistério possível. Atravessamos uma hora emocionante de agonia.
Daquela agonia de Unamuno, extraída da etimologia grega, ou seja, luta. Luta
angustiosa. Luta por encontrar um alívio para esta febre de desesperação que se
apoderou do mundo depois de duas espantosas guerras, com seus quadros de
pesadelo, com suas visões dantescas, vividas por milhões de criaturas, com os
mais descomunais crimes já cometidos pela Humanidade contra a própria
Humanidade. Luta por saber que é que pretende o nosso destino, nesta voragem de
elementos desencadeados; que fim de felicidade espera ter este
Universo,
neste amálgama de ódios e de hostilidades, nesta competição de forças cegas. E
a esta agonia, que é combate, acode o Espiritismo, procedente da fonte mais
pura de humanidade e justiça, que é o Testamento deixado por Cristo, a
estimular-nos para que continuemos a beber nessa fonte, único manancial sereno,
não atacado pela convulsão das
paixões ou das ideologias.
Qualquer forma prática dessa
doutrina evangélica, em que nos seja lícito adivinhar uma provável
imortalidade, será sempre a sede desta nossa agonia, suscetível, de alguma
maneira, de ser saciada, para que a Terra não se transforme num planeta de
suicidas.
Luís Amador Sanchez
(Ex-dtplomata
espanhol e professor da Universidade de São Paulo)
(Ext. d'A Tribuna,
de Santos, de 12-2-1950).
‘Reformador’ (FEB) Abril
1950
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