sábado, 7 de julho de 2012

Espiritismo ou Agonia


Espiritismo 
ou Agonia       
           
             
            Que as almas do outro mundo, que antes foram deste onde vivemos, recomeçam nova existência ao deixarem o corpo mortal, eis uma crença que se prende às mais remotas religiões. Dificilmente se anulou este conceito, posteriormente. A teoria da metempsicose, mais ou menos disfarçada, nós a encontramos, igualmente, em todas as crenças. A imortalidade do espírito sempre pareceu ao homem, geralmente, uma coisa natural. Os cépticos, os ateus, os chamados materialistas, de qualquer espécie, mais que negar, se desentendem desse problema, acovardados pela ideia de que haja que ascender pela empinada encosta da metafísica. É uma questão de preguiça mental.    

            O que há detrás da morte é, para os simples naturalistas, um pensamento que absorve Excessivas energias, numa vida já demasiado curta, e que, como não apresenta soluções rápidas, não paga a pena preocupar-se com algo que há de, indefectivelmente, acontecer. Mas as épocas reclamam, por sua vez, intermitentemente, que a atualidade do problema não se perca. E estamos num período em que volta, de novo, o auge desta intensa questão.

            A vida apresenta-se com uma série de dificuldades que, sem querermos preocupar-nos com o destino final, nos preocupamos com o destino presente. E a pergunta já não está em saber o que será de nós, ao terminar este escabroso caminho, mas se esse caminho merece ser percorrido, nas atuais circunstâncias e, claro está, isto nos leva a pensar que talvez valha a pena viver a outra vida, visto como esta se torna tão dolorosa.

            Devo confessar ao amável leitor que, por ora, não sou espírita. Minha crença cristã me tem parecido suficiente. Mas não deixo de reconhecer que o Espiritismo se estendeu bastante, a ponto de ser contemplado, hoje em dia, como um tema muito digno de consideração e de ponderação. Sou quase um perfeito leigo na matéria, pois apenas pude deter-me na leitura de publicações ou livros a ela referentes. Tenho amigos que militam no Espiritismo e pessoas de talento e de cultura e até reconhecidos como indiferentes, antes de sua nova atitude. E apenas também posso dizer que assisti a sessões espíritas. Convidado uma vez a assistir à manifestação de um "médium", estive, sem outras consequências, horas e horas sentado a uma mesa, na penumbra de uma habitação e em companhia de outros convidados, ouvindo pacientemente quanto lhe ocorreu dizer, falando do divino e do humano a um inteligente e culto senhor, que julguei se encontrasse submetido, mais que a uma encarnação a uma neurose oratória. Aquele espiritismo não me convenceu de nenhum modo, a despeito de seu caráter intelectual. Em troca, encontrei um espiritismo mais amável, mais sugestivo e mais convincente, em singelas reuniões de gente de boa vontade, sinceros e até humildes crentes de uma religião que, partindo dos próprios princípios evangélicos, num mundo de mal-estar psíquico, de desfalecimento moral, se esforça por levar consolo e esperança, não apenas aos pobres de espírito, mas também aos pobres de tudo: que são muitos em nosso universo. Analisar tudo o que se produz na prática do Espiritismo, seus efeitos evidentes, repelindo o que também evidentemente se explora e adultera, este já é ponto que não abordarei nesta ocasião, pois tal não é meu propósito.

            Há, ou não há, nos nossos dias, uma inquietação inédita pelo Além? Esta é, em meu entender, uma questão interessantíssima. Um estudo veio em minha ajuda, breve e sóbrio, de Rodolfo Felice, fundador e presidente-diretor da Sociedade Nacional Espiritista da Venezuela. Sob o titulo "A encruzilhada da História", emitiu conceitos e ideias muito assisadas. Onde está e que se fez da Civilização? pergunta Rodolfo Felice, em face do momento que a Humanidade atravessa. Não há um só país, nem coletividade alguma, nem nenhuma pessoa que, de uma ou outra maneira, não tenha sido tocado de perto por este estremecimento de angústia, o qual,
ante a incapacidade de ter remédio por parte das pessoas dirigentes, mais parece uma pressão de forças desconhecidas que uma realidade externa bem tangível a que fosse possível dar remédio. Esta é uma parte da exposição de Rodolfo Felice. Devo anotar que este destacado espiritista se deu a conhecer na imprensa da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina, ao ser divulgada a comunicação que, segundo ele, recebeu do outro mundo, do Espírito do conhecido escritor colombiano J. M. Vargas Vila, falecido em 1933 e que, pouco depois de sua morte, anunciou àquele "médium" a catástrofe mundial que se avizinhava, ou seja, a segunda guerra mundial. Não nego que outras pessoas vivas já prediziam, sem a clarividência de além-túmulo, o referido conflito. A possibilidade da reencarnação, que fundamenta o Espiritismo, se não é, apesar de todos os esforços, assunto inconcusso, para mim é, indubitavelmente, uma base suficientemente firme para explicar amplamente todos os desníveis sociais que observamos entre os nossos semelhantes e que a Religião Católica pretende explicar, sem explicação absoluta, como um desígnio superior de Cristo e para consolo dos pobres, que entrarão no céu mais facilmente que os ricos. A vida pretérita que, estando vivos, desconhecemos, por não termos lembrança dela, parece mais convincente que a "probabilidade" de uma vida futura, como prêmio às nossas desventuras atuais. A sucessão sem fim, de reencarnações, se nos depara mais doce e consoladora que essa definitiva imortalidade do Catolicismo, de acordo com a qual sofreremos penas eternas, ou felicidade infinita, e que nos separa, irremissivelmente, para toda a eternidade, deste mundo a que tanto nos apegamos, com desgraças ou com venturas.

            Negar que ao Espiritismo está aberto imenso caminho a percorrer, não já para impor-se como filosofia religiosa indestrutível, mas para assentar princípios firmes seria obtuso. Rodolfo Felice garante, sem prová-lo, que o Espiritismo já proporcionou a prova definitiva da sobrevivência do ser humano, embora tal prova já tenha sido obtida por várias vias. Estas vias, entretanto, creio que carecem de uma continuidade patente, sendo, antes, trechos de caminho, pedaços de senda, que se interrompem e quebram aos quais somente a vontade do crente une e enlaça. Sinais e pressentimentos, visões e intuições, efeitos sensíveis, toda essa gama fascinante do brilho do Espiritismo, não mantém, todavia, talvez em virtude da própria limitação humana uma espécie de Via-Láctea, a marcar, inequivocamente, o rumo, na noite das nossas dúvidas e dos nossos temores.

            "O Espiritismo - prossegue dizendo o ilustre venezuelano - vem na hora presente e tremenda, para dotar a criatura pensante dos conceitos e elementos de juízo que lhe permitam iluminar sua inteligência e sua razão com luz definitiva, pelo menos no que tange ao grande problema: o porquê da vida." Aqui o crente nos embarga o passo com sua própria fé, mas na realidade continuamos sem estar certos de que essa luz nos alumie.

            O que em verdade captamos nessa forte atualidade do Espiritismo é o rastro deixado pelo pensador Miguel de Unamuno, que, se não era propriamente espiritista, lutou por arrancar do espírito todo o mistério possível. Atravessamos uma hora emocionante de agonia. Daquela agonia de Unamuno, extraída da etimologia grega, ou seja, luta. Luta angustiosa. Luta por encontrar um alívio para esta febre de desesperação que se apoderou do mundo depois de duas espantosas guerras, com seus quadros de pesadelo, com suas visões dantescas, vividas por milhões de criaturas, com os mais descomunais crimes já cometidos pela Humanidade contra a própria Humanidade. Luta por saber que é que pretende o nosso destino, nesta voragem de elementos desencadeados; que fim de felicidade espera ter este
Universo, neste amálgama de ódios e de hostilidades, nesta competição de forças cegas. E a esta agonia, que é combate, acode o Espiritismo, procedente da fonte mais pura de humanidade e justiça, que é o Testamento deixado por Cristo, a estimular-nos para que continuemos a beber nessa fonte, único manancial sereno, não atacado pela convulsão das paixões ou das ideologias.

            Qualquer forma prática dessa doutrina evangélica, em que nos seja lícito adivinhar uma provável imortalidade, será sempre a sede desta nossa agonia, suscetível, de alguma maneira, de ser saciada, para que a Terra não se transforme num planeta de suicidas.



Luís Amador Sanchez
(Ex-dtplomata espanhol e professor da Universidade de São Paulo)

(Ext. d'A Tribuna, de Santos, de 12-2-1950).

‘Reformador’ (FEB) Abril 1950



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