A Oração
do
Fariseu
"Vigiai e orai" A oração,
consoante o critério evangélico, não visa alterar a Lei e, muito menos,
desviar o curso natural dos desígnios de Deus que essa Lei resume e condensa em
sua estrutura.
O governo do Universo não se exerce
através do arbítrio. O Reino Divino é regido por estatutos
imutáveis regulando todos os fenômenos da Natureza, tanto no seu plano físico
como em sua esfera moral. A eficácia da prece, portanto, está no ânimo que desperta,
no refrigério que proporciona, na esperança que faz nascer e frutificar nas
almas desalentadas, batidas pelos vendavais das provas e das expiações. A prece
importa num processo de avivar as energias anímicas próprias, aumentando sua
potência graças à comunhão estabelecida com o manancial inexaurível de vida e
poder infinitos. A prece, age, pois, dentro dos princípios de solidariedade fraternal,
ligando as almas entre si e religando-as, todas, conscientemente, a Deus. Orar,
finalmente, é lançar mão de recursos legítimos que estão ao nosso alcance, dos
quais nos é lícito socorrer.
Definidas e firmadas as características
da oração em seu verdadeiro sentido,
passemos a considerar a prece do fariseu, segundo o seguinte registro evangélico:
"Subiram dois homens ao templo para orar: um, fariseu, outro, publicano.
O fariseu, posto pé, ora, dentro de si, desta maneira: Ó Deus, graças te dou
porque não sou como os demais homens, que são roubadores, injustos e adúlteros;
nem ainda como este publicano, jejuo duas vezes por semana e dou o dizimo de
tudo quanto ganho.
O publicano, porém, estando a alguma
distância, não ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia contritamente
no peito, dizendo: Deus, tem
misericórdia de mim, pecador! Digo-vos, concluiu Jesus, que este desceu justificado
para sua casa e não aquele; porque todo que se exalta, será
humilhado; e o que se humilha, será exaltado".
Analisemos o pensamento do fariseu. Antes, porém, de fazê-lo, digamos o que eram
na sociedade judaica as duas personagens que figuram no em apreço. O fariseu
encarnava o credo dominante, partilhado pela elite social, pelas autoridades
civis e eclesiásticas. O publicano pertencia à classe dos agentes do fisco,
cobrado imposto de César, indivíduos, em geral, inescrupulosos, escorchadores
do povo e, por isso, antipatizados, tidos mesmo em conta de ladravazes. O
publicano orou, pois, como pecador confesso, suplicando misericórdia. O
fariseu, porém, dizia intimamente em sua oração: "Graças te dou ó meu
Deus, porque não sou como os homens, que são roubadores, injustos e adúlteros".
Comentemos esta frase de sua reza. Ele dava graças a Deus porque se supunha
assinalado com uma graça especial. Imaginava-se alvo de certo privilégio que o
distinguia dentre o
comum dos homens, e, assim também, os confrades do presunçoso credo entretecido
de cerimônias litúrgicas, dízimos e jejuns.
Semelhante conceito particularista
da Divindade aberra de todos os princípios de justiça, denotando ignorância
acerca do caráter que distingue a Suprema Inteligência que dirige os destinos
do Universo. O Deus anunciado por Jesus Cristo é o Pai Nosso - que não faz
acepção de pessoas, sujeitando todos ao império da mesma Lei, concedendo os
mesmos direitos mediante o cumprimento de idênticos deveres. É o Deus vivo,
inconfundível, que palpita no coração do crente sincero que o adora em espírito
e em verdade. Portanto, discordando do farisaísmo, oremos assim:
Ó grande Deus, eu te rendo graças
pela tua justiça perfeita, isenta de falhas e senões. Eu te
venero como meu Pai celestial, conforme ensino do teu Verbo humanado. Por isso,
reputo meus
irmãos, não somente os homens, como também todos os seres de tua eterna
criação. Sinto-me, Senhor, irmão dos bons e dos maus, dos justos e dos iníquos.
Reconheço-me irmão dos ladrões, dos homicidas, dos salteadores, dos adúlteros
de ambos os sexos, dos perjuros e das decaídas. Considerando que a delinquência
é, em parte, fruto do meio, confesso-me, indiretamente, conivente nos delitos
daqueles irmãos, de vez que faço parte integrante desta sociedade onde me acho,
por não merecer outra, menos impura e mais espiritualizada. Declaro-me também
irmão dos seres inferiores, dos animais, tal como o fez teu bendito servo
Francisco de Assis, cuja vida terrena foi um exemplo vivo de humildade, e, ao
mesmo tempo, um veemente protesto contra as pompas, contra o luxo, riquezas e
vaidades deste mundo. Parodiando-o, eu digo com ele: Meu irmão lobo; minha
irmãzinha formiga, meu irmãozinho verme que se roja no pó. Ainda com o
"Poverelo", estendo minha irmandade aos mesmos elementos, assim me
pronunciando: Meu irmão fogo, minha irmã água; minha irmã terra, minha
irmã pedra de onde procede o próprio nome que me foi dado nesta existência. Elevando
os olhos para as alturas siderais, proclamo arrebatado: Meu irmão Sol! meus
irmãos planetas que povoais a imensidade; minha irmã Lua que enches de poesia a
alma dos desterrados neste orbe expiatório; estrelas de todas as grandezas -
minhas belas irmãs - que no vosso cintilar rendeis perene glória ao Supremo
Arquiteto, como vos admiro! Sim, ó grande Deus, sinto-me ligado e integrado em
todos os expoentes de tua obra deslumbrante. Do barro, formaste o meu corpo,
instrumento de que me sirvo para realizar, aqui, uma etapa da minha evolução.
Portanto, sob tal aspecto, "sou pó e em pó me tornarei". De ti
próprio, Senhor, deixaste escapar, na explosão do teu amor, uma centelha viva,
eterna e imortal, da tua mesma natureza, que é o meu Espírito, o meu
"ser", sede de todas as faculdades que caracterizam a minha entidade
real e verdadeira. Fizeste-me pequeno, mas dotaste-me de
poderes para eu me tornar grande. Criaste-me insciente, possibilitando-me os
meios de me tornar
sábio. Constituíste-me fraco, pondo ao meu alcance os processos de vir a ser
forte e varonil.
Através de relativo livre-arbítrio, fizeste-me cair na servidão da carne, para
que eu mesmo
conquistasse a minha liberdade. Sujeitaste-me às iniquidades deste século para
que eu aprendesse a conhecer e honrar a Justiça, a Razão e o Direito!
Em suma, Senhor, tu me organizaste
de maneira que, pelo meu trabalho e experiência, eu alcançasse todos os bens, a
fim de que pudesse aquilatar, por mim mesmo, do valor desses bens, como da
nobreza dos teus propósitos e da excelência do teu amor, a serviço das tuas
criaturas!
Bendito sejas, ó Pai celeste, Ó
fonte inexaurível de Vida, na onipotência da tua ação, no infinito
da tua inteligência, na imensidade imensurável da tua misericórdia e na
fulguração majestosa da tua indefectível justiça!
por Vinícius
in (Reformador (FEB) Jan 1948
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