a/b A Moral do
Espiritismo
A moral tem para
o Espiritismo uma importância tal que, sendo ele uma doutrina filosófica, se
torna quase uma filosofia moral. De fato, foi para o Espiritismo uma grande ideia,
uma ideia fundamental, a de trazer para o mundo uma doutrina que concorresse para
provocar uma transformação mais profunda e mais rápida do caráter humano, que
viesse, enfim, provocar na humanidade uma reforma moral mais intensa, mais
segura.
A moral espírita
tem seu fundamento na moral crística. Deixo de empregar ropositalmente a expressão
cristã, para evitar a confusão que ela pode trazer. A expressão cristianismo
enxertada na dogmática das religiões, que têm por base a vida do Cristo, e
divulgada geralmente pelos escritores que se ocupam desse assunto, admitida
como sinônimo de religião, não pode ser confundida com a que deve ser empregada
no sentido do movimento primitivo, que girou em torno da personalidade do
Cristo, antes de qualquer organização religiosa, movimento esse que foi, com o acessório das curas
e outros fatos extraordinários, todo moral.
Não é que isso
importe em repúdio ao Cristianismo como religião. O papel que ele representou
no mundo até o advento do Espiritismo, não obstante todos os seus erros, todos
os seus desvios, não deixa de ter tido uma grande utilidade. Ele manteve,
através da história, em relevo a personalidade do Cristo, embora erradamente,
embora mal interpretada. O movimento somente ou puramente moral, que se fizesse
em torno dela, acabada a missão oral de seus discípulos diretos, com as
instruções que lhes deu Jesus, não teria talvez a mesma repercussão que teve o
movimento religioso, que se fez muito depois de sua morte, mormente porque
os escritos evangélicos que ficaram não dão, nem a medida exata da
grandeza da missão do Cristo, nem a medida de seu ensino.
É a esse
movimento moral provocado pelo Cristo, que o Espiritismo fica adstrito na
formação de sua doutrina moral. Apresentando-a com a mesma finalidade com que
se apresenta a moral crística na época de seu aparecimento, o Espiritismo vem
agora confirmá-la, colocá-la em termos mais exatos, vem explicá-la, completá-la,
enfim. "Vossa Bíblia, disse o
eminente Espírito de Imperator, a Stainton Moses, vos dá uma ideia muito imperfeita da influência que o Cristo exercia em
volta dele; ela não insiste bastante sobre o efeito moral que produziam suas
palavras e atos. Ela se apoia demasiadamente sobre as falsas interpretações
provindas das classes instruídas e consideradas, que, então como sempre, foram
as inimigas de toda a verdade nova." - "A falta daqueles que vos deixaram a única narrativa que possuis da vida
de Jesus, é que eles muito se apoiaram sobre a perseguição levada contra ele
pela ignorância letrada, e não bastante sobre a dignidade moral de sua existência
no meio em que ele vivia. Esses escritores não se aproximaram daqueles que
tinham recebido diretamente o ensino de Jesus: eles tomaram de décimas
mãos as anedotas que abundavam. Isso importa notar."
(1)
William Stainton Moses: Enseignements Spiritualistes, trad. franc. ed.
comemorativa, págs. 286 e 287.
A moral crística
não é inteiramente nova. Ela está no fundo de certos sistemas filosóficos e
religiosos anteriores ao Cristo. Ela é a consequência de uma lei natural, de
uma lei divina. No profetismo israelita estão seus primeiros delineamentos,
tendo ela sua essência na lei mosaica, no Decálogo, que exprime no Antigo Testamento
uma parte de verdade, e que foi ditado a Moisés pelos seus guias espirituais, conforme afirmou Imperator.
Foi, entretanto, o Cristo que a desenvolveu superiormente, que lhe deu forma
característica, que a personificou, enfim. Tendo ela sua fonte principal nos escritos
evangélicos, mormente no que tem o nome de Mateus e especialmente no chamado
Sermão da Montanha, sofrivelmente relatado, diz um Espírito, é neles que o
Espiritismo pode ir beber. Ainda que duvidosos pelas suas deformações, pelas
suas contradições, ainda que deficientes, é neles, todavia, que o Espiritismo
pode ir buscar os elementos básicos para o estudo e formação de sua doutrina
moral, admitindo-os não como documentos sagrados, inerrantes, intangíveis, como
o quer a ortodoxia cristã, (Concílio do Vaticano: Constituição dei filius, cáp. II) mas como
documentos narrativos, históricos, sujeitos ao exame e à crítica. Nesse caso, o
Espiritismo terá que acompanhar o movimento de crítica histórica, que se vai
operando em torno desses escritos há mais de meio século, onde se discutiram certas
questões, certos problemas que ele forçosamente deve atender, e que só ele, com
seus métodos de estudo e investigação, pode resolver, dando-lhe resultados definitivos.
Também não se
pode dizer que a moral do Espiritismo seja religiosa. O próprio da moral
religiosa é estar confundida num sistema de dogmas e cultos, é ser ela o
apêndice de uma religião, é estar ela identificada com os preceitos de uma
religião positiva, de tal forma que se torna, às vezes, quase impossível
separá-la. Já se vê que não é essa a condição da moral espírita. Ainda que o
Espiritismo, embora com restrições, tenha extremo interesse no estudo das
outras matérias contidas nos escritos evangélicos, a respeito da vida de Jesus,
o que ele procura ver nesses escritos não é o espírito confessional que eles
têm, mas o espírito moralista, com a sua metafísica, isto é, com a crença em Deus
e com a crença na alma e na vida futura. De maneira que o Espiritismo, nem por
admitir a existência de Deus, tem uma moral propriamente religiosa, pois que ele a aceita de maneira mais larga e como uma crença
racional, a aceita com uma fé raciocinada, compreensiva, não com uma fé cega,
como a admitem as religiões. O mesmo se pode dizer, com relação ao ensino da
existência da alma e da vida futura, que ele amplia e lhe dá um caráter mais ou
menos experimental. "O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do
Cristo, diz Allan Kardec, é o conhecimento dos princípios que ligam os mortos e
os vivos, que completam as noções vagas que ele tinha dado da alma, de seu passado,
de seu futuro, e que dão por sanção à sua doutrina as leis da natureza. (2)
(2) Allan Kardec: La Genèse selon le Spiritisme, cap. I, nº 56.
Assim, se se
quiser classificar a moral espírita, ela só pode ser classificada como uma
moral filosófica, embora se relacione até certo ponto com a religião natural,
porque o espírito do ensino do Espiritismo é filosófico, porque ela decorre de
sua doutrina que é filosófica.
Sabe-se que a
moral do Cristo foi coordenada e estudada por Allan Kardec no Evangelho Segundo o Espiritismo."
(3)
Allan Kardec: L'Evangile selon le Spiritisme, 1864.
Com a chave que
lhe deu o Espiritismo, e com o auxílio que lhe trouxeram as instruções ditadas
pelos Espíritos em diferentes países e por diferentes médiuns, Allan Kardec lhe
analisou os preceitos tanto quanto era possível, utilizando-se da edição da
Vulgata, traduzida em francês por Le Maistre de Sacy, exibindo antes um código
de deveres morais, que uma teoria da moral. Mesmo o Cristo não veio fazer moral especulativa. Também não veio
fazer da moral que pregava um conjunto de regras apenas para o seu meio. Seu
fim foi mais elevado. Ele alegava que os preceitos que revelava, o ensino que
dava, eram uma condição de salvação para a humanidade.
Não é mais
necessário falar aqui detalhadamente desses preceitos morais, depois de Allan
Kardec. O que se procura estabelecer são princípios da moral do Espiritismo e
mostrar a base que lhe deu a moral do Cristo.
por Chrysanto
de Brito
in ‘Allan
Kardec e o Espiritismo’
Ed. ECO – ano
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