quarta-feira, 20 de junho de 2012

33. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'



33   * * *


            Da ação do meio sobre o individuo pretendem fazer os negadores do livre arbítrio um argumento contundente, porque -, dizem eles - como pode ser livre ou a que, pelo menos, fica reduzida no homem - a liberdade moral, quando manifestadamente o vemos enredado na teia de múltiplas sugestões, a que, pelo espírito de imitação que lhe é peculiar, não pode resistir?

            Sobre ser estultícia, inútil seria negar essa influência, tanto mais evidente quando o que na esfera social ocorre a tal respeito não é mais que um desdobramento ou repercussão do fenômeno que na ordem física se observa, e que consiste na tendência para o nivelamento. Tomai um vaso com água a ferver e metei-o num outro maior com água fria; dentro em pouco a temperatura se terá uniformizado pela penetração recíproca. Dir-se-ia que a água quente buscara elevar ao seu estado térmico a água fria, ao passo que esta forcejara por fazer baixar a outra à sua graduação. Daí, como justo termo do equilíbrio, o nivelamento térmico.

            Fenômeno semelhante, e que atesta a unidade e coordenação lógica da lei que tudo rege no universo, é o que se: verifica no domínio espiritual e, conseguintemente, no das aglomerações humanas. Espíritos ou homens, conforme o plano em que operem, os que se acham em grau superior evolutivo buscam atrair a si, pela comunicação de suas virtudes e conhecimentos, os que demoram abaixo, ao passo que estes, tanto mais cheios de obstinação quão menos evolucionados, se esforçam não somente por fazer baixar ao seu nível os imediatamente superiores, como por impedir que se elevem os seus iguais.

            Essa dupla corrente de esforços se traduz ora direta e ostensivamente pela palavra e o pensamento, ora por forma tácita e indireta, mediante a silenciosa eloquência dos exemplos.

            Aqui na terra - e não nos ocupamos por agora das peculiaridades do viver no espaço - desde os ensinos que no lar e na escola recebe, em contato com a família  e  com os companheiros, aos fatos que observa na vida exterior e ao que aprende nos livros, nos jornais e nas simples conversas com amigos e conhecidos, no lugar em que trabalha, nas diversões, por toda parte em suma, sofre o homem essa múltipla, constante, variada sugestão do meio, a cuja influência fatal e insensivelmente se vai adaptando. Com abdicação completa da feição peculiar à sua personalidade e sem possibilidade alguma de livremente reagir? - Certamente não, pois que é ele próprio uma parcela consciente do mesmo todo a que pertence, mais que apto, instigado a colaborar, consoante os seus íntimos pendores e faculdades próprias, na composição desse ambiente, em que representa uma força ao mesmo tempo estática e dinâmica: estática em tudo quanto assimila e retém passivamente; dinâmica, por toda atividade que, em retribuição, transmite. Numa palavra, o meio age e, de resto, poderosamente sobre o individuo e este reage tanto mais eficazmente quão mais positivas energias em si mesmo fixou, capazes, pelo menos na aparência, de imprimir-lhe algumas vezes a orientação de sua própria vontade pessoal (1).

             (1) É o caso, por exemplo, dos grandes vultos políticos, missionários de consideráveis obras dessa natureza em sua pátria e cuja ação se faz sentir até na remodelação dos costumes, pela imitação que despertam os seus próprios atos de valor ou de virtude. Como, porém, tais movimentos são suscitados e dirigidos pelo mais alto,  é que dizemos ser aparente essa capacidade dominadora do indivíduo.

            Quer isso dizer que, se é impossível ao homem subtrair-se por completo à pressão do meio, que tão consideravelmente e a tantos respeitos o constrange, não é tirânica essa influência ao ponto de lhe tolher as operações do livre arbítrio, sempre embora subordinado em sua amplitude ao grau de capacidade moral atingido na sucessão das existências. É o que precisamente explica porque certos, posto que raros, indivíduos, colocados em meios viciosos, se conservam indenes da contaminação dos vícios ambientes, testemunhando uma resistência moral que, sobre ser o indício de considerável progresso adquirido, tem, no ponto de vista da providencialidade de todas as nossas situações terrestres, a significação de um apostolado, pelo exemplo que dão aos desregrados.

            Será contudo em si mesmo, suas interiores energias pessoais que haure unicamente o homem essa capacidade não vulgar de, resistindo ao mal, perseverar no bem?- Ele possui indubitavelmente a predisposição, fortalecida por um longo aprendizado anterior. Tão fraco é de si mesmo, todavia, o homem exposto - minúsculo átomo no seio da criação - as incomensuráveis forças que aí operam em todos os sentidos, que exagerado seria e, sobretudo para ele, temerário presumir que sozinho pudesse realizar as decisivas obras da vontade.

            E aqui tocamos no último fator a assinalar, dos que intervêm na complicadíssima trama das ações humanas: a influência dos espíritos, Intimamente solidário que é com o nosso mundo, esse das entidades invisíveis, constante é o fluxo e o refluxo de suas mútuas ações e reações. Como, porém, fará objeto de oportuno desenvolvimento, em capítulo adiante, esse fenômeno da intervenção dos espíritos nos sucessos humanos, por agora nos limitaremos a assinalar que, sem violação do livre arbítrio, antes com as suas operações intimamente conjugada, de tal modo é flagrante e generalizada essa intervenção que os atos do homem raramente se revestem da independência que em sua ignorância ele presume. Ou no bem ou no mal, inclinando-se à virtude ou preferindo os vícios, procede o homem quase sempre de concerto com seres invisíveis que, simpatizando com as suas tendências, as reforçam (1).

            (1) Dizemos propositalmente "reforçam"  e não "constrangem", porque, sendo o livre arbítrio um atributo na lei divina sancionado, não poderia sofrer formal violação . E esta se daria, se pudesse o homem ser constrangido (excluímos -- é claro - o caso da violência material, em que entretanto a vítima é paciente e não agente) a praticar um ato contrario à natureza de seus sentimentos.
                Ora, repetidas experiências de magnetismo têm provado que o sensitivo só obedece às sugestões do magnetizador enquanto estas concordarem com as suas inclinações morais, recusando-se terminantemente a obedecer no caso contrario.
                E não é por imperceptíveis  sugestões mentais que operam sobre os homens os seres do invisível? Só obedecem, pois, aqueles, se com as ideias sugeridas simpatizam.

            Não fossem eles, principalmente os bons, os agentes da obra universal de evolução, os instrumentos de que se serve a Suprema Inteligência para realizar no mundo os seus desígnios providenciais!

            Porque, se observarmos a marcha dos acontecimentos através dos séculos, os ciclos de Civilização percorridos pela humanidade, a sua ascensão gradual do estado de primitiva barbaria à formação de uma consciência cada vez mais esclarecida para a compreensão dos ideais supremos de Justiça e de Bondade, é evidente que, acima das flutuações, da aparente desordem, assinalada por saltos e recuos, que apresenta essa marcha evolutiva, pelos mesmos cataclismos sociais favorecida, o que inspirou a Affonso Esquirós esta sentença lapidar: "as revoluções não são obra da humanidade,  são épocas", é evidente - dizemos - que um plano inflexível se desenha, um pensamento soberano paira, encaminhando todas as coisas a um objetivo predeterminado.

            Essa intervenção da Providência nos destinos do mundo, mais que, em si mesma, a presciência divina, para a qual, coma a própria palavra o indica, todas as ações do homem pelo futuro afora são antecipadamente conhecidas, parece dificilmente conciliável com a noção do livre arbítrio humano. À primeira vista nada realmente parecerá mais razoável que objetar: ou bem os homens são livres, e neste caso podem neutralizar perpetuamente a ação de uma vontade oposta à sua, ou se essa vontade oculta os conduz a fins que eles são incapazes de prever ou a que não quereriam dirigir-se, é que de fato não são livres; objeção que se desfaz, em primeiro lugar, considerando-se o livre arbítrio uma faculdade, não absoluta, como seria preciso admitir naquela hipótese, mas relativa, limitada como todas as faculdades humanas, conforme já ficou assinalado, e em segundo lugar, tendo-se em consideração os subsídios que para a resolução desse problema nos oferece O Espiritismo, sobretudo graças à lei da pluralidade de existências, que deixa sempre aos
espíritos, com os sucessivos regressos a este mundo, uma certa latitude para a realização, mais próxima ou remota dos desígnios providenciais, consoante se resolvem, mais cedo ou mais tarde, a obedecer às sugestões em tal sentido.

            Por outros termos: há evidentemente um plano providencial de evolução traçado para o nosso planeta e a sua humanidade, como haverá na Mente Divina um limite de tempo, que varia entre um mínimo e um máximo d'Ela mesma, em sua presciência, conhecidos, para a realização desse plano, em que de um lado cooperam os homens de boa vontade e do outro as Inteligências que do invisível os inspiram. Contrariando, todavia, essa benéfica influência - e não nos alongaremos, por inoportuno agora, no desenvolvimento desse tema - outras atuam sobre os espíritos retardatários, encarnados entre os homens, buscando neutralizar a execução daquele plano. Daí as lutas, as perturbações, os triunfos e revezes, que acidentam a marcha do progresso humano. Quer, porém, servindo os seus ideais, quer deles se afastando, acumulando falências morais através das existências, ou a novas outras regressando, com o fruto das experiências amargamente adquiridas, para reparar anteriores erros e firmar-se nas virtudes, são sempre, na terra, livres os espíritos de ceder, segundo os seus pendores pessoais, às boas ou más influências  a que, do invisível, estão frequentemente expostos.

            Uma figura poderá fazer melhor apreender em seus lineamentos gerais essa marcha evolutiva, em que o livre arbítrio humano se concilia com os desígnios providenciais.

            Houve quem comparasse a humanidade, no ponto de vista dos destinos que lhe estão traçados, e que um dia há de atingir fatal e necessariamente, aos passageiros de um navio com rumo a determinado porto. Enquanto o navio singra os mares nessa inflexível direção, os passageiros nele se movem livremente e livremente praticam os atos que mais lhes agradam ou lhes convém: comem, dormem, passeiam, jogam, conversam e se divertem, cada um na conformidade de suas predileções particulares. 0 que não podem é impedir que o navio chegue ao porto. Assim os homens, movendo-se no círculo de sua liberdade relativa, não se podem subtrair ao termo providencial dessa viagem que vêm fazendo, rumo da eternidade -e do infinito, e que se traduz numa palavra - a perfeição.

            Por nossa parte, a humanidade, posta nesse rumo, preferentemente comparável - e oferecemos esta variante aos amadores de parábolas - a uma imensa caravana que por estrada íngreme se dirige a um planalto iluminado. Penosa e, tantas vezes, exaustiva é a ascensão, cujo termo reserva, todavia, aos perseverantes e fieis romeiros as mais gratas compensações, na pureza da atmosfera e na magnificência do panorama que se descortina lá do alto, onde o viver desliza na serenidade dos mais nobres e pacíficos labores.  

            A estrada, porém, que lá conduz é orlada de precipícios  cobertos de viçosas flores, mal encobrindo agressivos espinheiros, que lhes tornam defesas as vertentes. Ai do temerário que, atraído pela curiosidade, e a pretexto de colher as flores, queira sondar o fundo aos precipícios, envolto sempre em densas trevas! Lacerado de espinhos e a verter sangue, terá que voltar arrependido à estrada que em má hora abandonara.

            Pois bem, o planalto iluminado é a imagem da perfeição que, uma vez atingida pelo espírito, lhe permite contemplar os eternos esplendores, na paz de consciência, entregue aos labores felizes da espiritualidade, encerrado o ciclo angustioso das peregrinações terrestres.

            Os abismos que orlam a estrada íngreme da vida são as atrações do mal, envolto em sedutoras aparências, defendido, porém, pelos agudos sofrimentos, para impedir que nele se embrenhem perpetuamente as criaturas. Como, entretanto, estas são livres e, sobre livres, curiosas de lhe sondar, de perto as asperezas, por ele desertam com frequência a estrada reta que conduz ao alto. Umas logo recuam, outras se obstinam em penetrar mais longe, e assim mais ou menos se demoram nas tenebrosas regiões; todas, porém, cedo ou tarde, se resolvem a retomar a abandonada senda, até alcançar o planalto iluminado, de onde não cessavam de chamá-las as que ali as precederam e onde se hão de reunir todas um dia.

            Quando? - A Providencia o sabe. Mas para isso, para que todos os espíritos de que se compõe a nossa humanidade, em grande número extraviados  nas devesas do mal, isto é, da ignorância, façam rumo à perfeição que é seu destino e ponham a sua vontade, orientada para o Bem supremo, em concordância com a vontade d'Aquele que os criou, é indispensável que à sua disposição tenham o número de vidas suficiente à ascensão livre, gradual, perseverante, a que naquele rumo não cessa de os convidar a lei divina.

            Já é tempo, de documentarmos com testemunhos e fatos essa magnífica lei da pluralidade de existências dos espíritos na terra.





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