sábado, 2 de junho de 2012

31a - "Doutrina e Prática do Espiritismo"



31a    ***


            Essa questão da escolha das provas, em cuja apreciação temos necessidade de insistir, não só por ser, com a excessiva extensão que acentuamos, geralmente admitida entre os espíritas, que sobre ela talvez não tenham convenientemente meditado, como por fazer parte dos ensinos ministrados pelos autores da Revelação a Allan Kardec, pode ser ainda encarada por um outro prisma interpretativo, que melhor talvez se aproxime da verdade a tal respeito

            Tomando como ponto de partida o princípio de liberdade moral, que não pode, em rigorosa lógica, ser contestada pelo, homem, e admitindo assim que ele é livre de praticar o bem ou o mal, segue-se que, escolhendo livremente os atos, escolhe ipso facto as suas consequências. Nesse caso a escolha das provas deve ser entendida em um sentido remoto e não imediato, isto é, pela natureza dos atos praticados no curso da existência vai o individuo implicitamente elegendo as condições em que renascerá  na subsequente encarnação. Se os atos forem bons, favoráveis serão essas condições: se maus - como ninguém é fatalmente constrangido a praticar o mal - pela própria maldade dos seus atos, livremente praticados, estará o espirito escolhendo as provas por que há de passar em seu posterior regresso à carne. Como se deve, contudo entender essa liberdade moral que acabamos de o dizer - não pode ser razoavelmente contestada ao homem?

            E não pode ser contestada, porque sem ela desapareceria toda noção de responsabilidade: o bem e o mal, o justo e o Injusto se confundiriam na mesma niveladora indiferença. Não haveria mérito nem demérito, a virtude e o vicio, privados de contraste, seriam equivalentes, e o homem, reduzido a autômato, seja dos cegos e desordenados impulsos de sua natureza inferior, seja de estranhas forças subjugadoras, seria despojado de sua dignidade natural, à mingua de uma sanção fiscalizadora de seus atos.

            Ora, queiram-no ou não os negadores sistemáticos, essa incontrastável sanção existe e chama-se Justiça. Para repetirmos o que já ficou anteriormente assinalado, é ela que dá "a cada um segundo suas obras," o que quer dizer que as aprecia e define em relação ao grau de responsabilidade que em seus autores reconhece. Como, porém, a noção de responsabilidade é inseparável da de liberdade, não sendo, em boa justiça, imputável o delito senão ao individuo que o pratica livremente, segue-se ainda que, sendo o homem (ou o espirito) responsável, é necessariamente livre. Até que ponto?

            Essa doutrina, de si mesma excelente, moralizadora e salutar, do livre arbítrio não pode evidentemente ser propugnada com os mesmos caracteres e com alcance idêntico ao que lhe foi atribuído pela filosofia que se pode chamar clássica, em face dos argumentos, baseados em mais detidas observações psicológicas, que lhe têm sido propostas pela teoria, modernamente preferida, do determinismo. Verdadeira em tese, destinada por isso a prevalecer contra as sutilezas de seus impugnadores, necessita contudo adaptar-se a um novo conceito, resultante das referidas observações e, de um modo geral, do próprio adiantamento das ideias, incessantemente enriquecidas pela multiplicada contribuição de todas as ciências .

            Já não seria possível, com efeito, definir o livre arbítrio como a faculdade que possui o homem de fazer ou deixar de fazer alguma coisa por impulso unicamente da vontade, sem nenhum motivo que determine essa vontade, considerada assim independente, quando ao contrário importa ponderar, de um lado, as razões intimas em que se fundam as deliberações e, portanto, os atos da vontade, e do outro as influências externas que podem intervir, modificando-a.

            Reunidos em um mesmo grupo esses fatores, pode dizer-se que o individuo procede sempre sob o impulso, raramente isolado, quase sempre simultâneo, 1°) de seu estado moral, resultante do grau de evolução que ocupa como espírito e no qual indubitavelmente colaboraram a educação, os conhecimentos adquiridos e as ideias religiosas por ele professadas; 2°) das leis do organismo, com as suas necessidades e apetites, mais ou menos desenvoltos ou contidos, segundo a nenhuma ou a eficaz disciplina a que os tem submetido; 3º)  dos exemplos e sugestões do meio em que vive e dos hábitos nele contraídos; 4°) finalmente - a este gênero de influência, que o Espiritismo patenteia e de que adiante nos ocuparemos mais detidamente, convindo reconhecer um valor preponderante - das correntes de pensamentos emitidos pelos seres invisíveis de múltiplas categorias que habitam o plano espiritual, em reação constante sobre o nosso mundo.

            No meio dessa complexidade de influências, dir-se-á que a pouquíssima coisa se reduz no homem o livre arbítrio. Esse atributo é de fato bem mais limitado do que o pretenderia a nossa obscurecida fatuidade, sem cessar, entretanto, de existir, tanto mais restrito - apressemo-nos em acrescentar - quão mais ignorante e moralmente atrasado é o indivíduo, cada vez mais amplo, eficiente e salutar em suas manifestações, à medida que, elevando-se na escala da perfectibilidade, vai o espírito pondo os seus pensamentos, atos e vontade em concordância com as leis divinas, de que o amor é a máxima expressão.

            Quer isso dizer que o livre arbítrio é, no que respeita à sua extensão, condicionado ao grau de adiantamento e, por conseguinte, à capacidade de discernimento do indivíduo, donde resulta que a responsabilidade deste é igualmente proporcionada a essa 'condição. "Muito se pedirá - disse-o Jesus - a quem muito recebeu."

            Estabelecidas estas premissas, o novo conceito a que - dissemos - tem que se ajustar o livre arbítrio, ou a definição mais adequada que se lhe pode dar é a de faculdade, que possui o homem, de escolher entre opostas ou, pelo menos, varias solicitações aquela que entende preferível não por gratuito capricho, senão por superioridade de motivos.

            Haverá sempre assim uma razão determinante para a escolha, contrariamente ao entender dos clássicos defensores do livre arbítrio que, como Bossuet, detendo-se na superfície da questão, acreditavam todavia formular um argumento concludente, afirmando por exemplo que, quando o homem move o braço para a direita ou a esquerda, o faz porque simples e livremente o quer. Na aparência, sim, e não mais que na aparência: porque ninguém fará esse ou qualquer outro gesto sem um motivo, necessidade ou razão que o aconselhe.


            Demonstremos.   


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