31a ***
Essa questão da escolha das provas,
em cuja apreciação temos necessidade de insistir, não só por ser, com a
excessiva extensão que acentuamos, geralmente admitida entre os espíritas, que
sobre ela talvez não tenham convenientemente meditado, como por fazer parte dos
ensinos ministrados pelos autores da Revelação a Allan Kardec, pode ser ainda
encarada por um outro prisma interpretativo, que melhor talvez se aproxime da
verdade a tal respeito
Tomando como ponto de partida o
princípio de liberdade moral, que não pode, em rigorosa lógica, ser contestada pelo,
homem, e admitindo assim que ele é livre de praticar o bem ou o mal, segue-se
que, escolhendo livremente os atos, escolhe ipso
facto as suas consequências. Nesse caso a escolha das provas deve ser
entendida em um sentido remoto e não imediato, isto é, pela natureza dos atos
praticados no curso da existência vai o individuo implicitamente elegendo as
condições em que renascerá na subsequente
encarnação. Se os atos forem bons, favoráveis serão essas condições: se maus -
como ninguém é fatalmente constrangido a praticar o mal - pela própria maldade
dos seus atos, livremente praticados, estará o espirito
escolhendo as provas por que há de passar em seu posterior regresso à carne.
Como se deve, contudo entender
essa liberdade moral que acabamos de o dizer - não pode ser razoavelmente
contestada ao homem?
E não pode ser contestada, porque
sem ela desapareceria toda noção de responsabilidade: o bem e o mal, o justo e
o Injusto se confundiriam na mesma niveladora indiferença. Não haveria mérito
nem demérito, a virtude e o vicio, privados de contraste, seriam equivalentes,
e o homem, reduzido a autômato, seja dos cegos e desordenados impulsos de sua
natureza inferior, seja de estranhas forças subjugadoras, seria despojado de
sua dignidade natural, à mingua de uma sanção fiscalizadora de seus atos.
Ora, queiram-no ou não os negadores
sistemáticos, essa incontrastável sanção existe e chama-se Justiça. Para repetirmos
o que já ficou anteriormente assinalado, é ela que dá "a cada um segundo
suas obras," o que quer dizer que as aprecia e define em relação ao grau
de responsabilidade que em seus autores reconhece. Como, porém, a noção de
responsabilidade é inseparável da de liberdade, não sendo, em boa justiça, imputável
o delito senão ao individuo que o pratica livremente, segue-se ainda que, sendo
o homem (ou o espirito) responsável, é necessariamente livre. Até que ponto?
Essa doutrina, de si mesma excelente,
moralizadora e salutar, do livre arbítrio não pode evidentemente ser propugnada
com os mesmos caracteres e com alcance idêntico ao que lhe foi atribuído pela filosofia
que se pode chamar clássica, em face dos argumentos, baseados em mais detidas
observações psicológicas, que lhe têm sido propostas pela teoria, modernamente
preferida, do determinismo. Verdadeira em tese, destinada por isso a prevalecer
contra as sutilezas de seus impugnadores, necessita contudo adaptar-se a um
novo conceito, resultante das referidas observações e, de um modo geral, do
próprio adiantamento
das ideias, incessantemente enriquecidas pela multiplicada contribuição de todas
as ciências .
Já não seria possível, com efeito,
definir o livre arbítrio como a faculdade que possui o homem de fazer ou deixar
de fazer alguma coisa por impulso unicamente da vontade, sem nenhum motivo que
determine essa vontade, considerada assim independente, quando ao contrário importa
ponderar, de um lado, as razões intimas em que se fundam as deliberações e,
portanto, os atos da vontade, e do outro as influências externas que podem
intervir, modificando-a.
Reunidos em um mesmo grupo esses fatores,
pode dizer-se que o individuo procede sempre sob o impulso, raramente isolado,
quase sempre simultâneo, 1°) de seu estado moral, resultante do grau de
evolução que ocupa como espírito e no qual indubitavelmente colaboraram a educação,
os conhecimentos adquiridos e as ideias religiosas por ele professadas; 2°) das
leis do organismo, com as suas necessidades e apetites, mais ou menos
desenvoltos ou contidos, segundo a nenhuma ou a eficaz disciplina a que os tem submetido;
3º) dos exemplos e sugestões do meio em
que vive e dos hábitos nele contraídos; 4°) finalmente - a este gênero
de influência, que o Espiritismo patenteia e de que adiante nos ocuparemos mais
detidamente, convindo reconhecer um valor preponderante - das correntes de
pensamentos emitidos pelos seres invisíveis de múltiplas categorias que habitam
o plano espiritual, em reação constante sobre o nosso mundo.
No meio dessa complexidade de influências,
dir-se-á que a pouquíssima coisa se reduz no homem o livre arbítrio. Esse atributo
é de fato bem mais limitado do que o pretenderia a nossa obscurecida fatuidade,
sem cessar, entretanto, de existir, tanto mais restrito - apressemo-nos em acrescentar
- quão mais ignorante e moralmente atrasado é o indivíduo, cada vez mais amplo,
eficiente e salutar em suas manifestações, à medida que, elevando-se na escala
da perfectibilidade, vai o espírito pondo os seus pensamentos, atos e vontade
em concordância com as leis divinas, de que o amor é a máxima expressão.
Quer isso dizer que o livre arbítrio
é, no que respeita à sua extensão, condicionado ao grau de adiantamento e, por
conseguinte, à capacidade de discernimento do indivíduo, donde resulta que a responsabilidade
deste é igualmente proporcionada a essa 'condição. "Muito se pedirá - disse-o
Jesus - a quem muito recebeu."
Estabelecidas estas premissas, o
novo conceito a que - dissemos - tem que se ajustar o livre arbítrio, ou a definição
mais adequada que se lhe pode dar é a de faculdade, que possui o homem, de
escolher entre opostas ou, pelo menos, varias solicitações aquela que entende
preferível não por gratuito capricho, senão por superioridade de motivos.
Haverá sempre assim uma razão determinante
para a escolha, contrariamente ao entender dos clássicos defensores do livre
arbítrio que, como Bossuet, detendo-se na superfície da questão, acreditavam
todavia formular um argumento concludente, afirmando por exemplo que, quando o
homem move o braço para a direita ou a esquerda, o faz porque simples e
livremente o quer. Na aparência, sim, e não mais que na aparência: porque ninguém
fará esse ou qualquer outro gesto sem um motivo, necessidade ou razão que o
aconselhe.
Demonstremos.
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