02/03
A Escolha
das
Provações
por Almerindo Martins de Castro
in ‘Reformador’ (FEB) Abril-Maio- Junho 1970
S. Sérvulo, que se celebra a 28 de
Dezembro, “era um mendigo, e desde a sua infância tinha sido atacado de
paralisia, de modo que nunca podia firmar-se em pé, chegar a mão à boca, nem
voltar-se de um lado para o outro.
Sua mãe e um irmão seu o levaram
para o pórtico da igreja de S. Clemente, em Roma, onde vivia das esmolas que
ajuntava.
Quanto podia poupar do seu sustento
o distribuía pelos mais pobres. As penalidades e o abatimento de seu estado e
condição foram meios de que fez excelente uso para a santificação da sua alma e
exercício constante da humildade, paciência, mansidão, resignação e penitência.
Costumava pedir aos devotos que o iam
visitar, que lhe lessem a Escritura Sagrada, e com tal atenção a escutava, que
chegou a aprendê-Ia de cor e a entendê-Ia segundo a sua capacidade.
No meio dos incômodos e das dores
contínuas, não cessava nunca de dar graças a Deus de o ter reduzido àquele
estado e passava os dias e as noites a entoar salmos, hinos e cânticos em sua
honra.
Depois de vários anos consumidos
nestas fadigas, apoderando-se a sua enfermidade das partes mais essenciais à
vida, conheceu que se aproximava o seu fim.
Nos seus últimos momentos, pediu
encarecidamente que aqueles infelizes que antes haviam sido participantes da
sua caridade se ajuntassem com ele, para levantarem a voz em hinos de louvor e
de amor; e, com efeito, estando na companhia destes, exclamou: “Escutai, não
ouvis a suave melodia e os louvores que ressoam nos
céus?”
Pouco depois de haver pronunciado
estas palavras, expirou, sendo levada a sua alma pelos anjos em as eras de 590.
O corpo de São Sérvulo foi enterrado na igreja de S. Clemente e honrado com
milagres, segundo o “Martirológio Romano”.
Comentando estas palavras, no
próprio livro oficial da Igreja, do qual as transcrevi, diz o autor: “Eis aqui
o bom uso que se deve fazer das doenças e especialmente daquelas que duram
longo tempo e deixam livre o entendimento, segundo o exemplo deste Santo
Paralítico. isto é, primeiramente, considerá-Ias como uma graça que o Senhor
nos faz para santificarmos a nossa alma... porque, por meio das tribulações e
enfermidades suportadas com paciência, purifica Deus a alma dos seus defeitos e
pecados e a enriquece de merecimentos e de virtudes.”
À inteligência de quem lê este
comentário surge a pergunta: “que pecados podia ter o paralítico de nascença,
se ele foi crente, caritativo, resignado e santo?”
Se aquele que nasceu sofrendo desde
a primeira hora da vida terrena sofreu para purificar-se de pecados, esses
pecados são da existência atual - em que não foram cometidos - ou de outras
encarnações? A Igreja
não nos diz que sim, mas abençoada seja a criatura que enxergar a verdade
escondida nos subterfúgios católicos, sufocada pelas conveniências de uma
instituição que se diz infalível; verdade negada pelos que mais dela
necessitam, porém, ainda assim, surgindo, espocando através da letra astuta,
mostrando--se aos
olhos de todos que tenham olhos para ver e ouvidos para ouvir. Porque, só a lei
da reencarnação explica esses padecimentos físicos e morais atingindo criaturas
que, aparentemente ao menos, não merecem as desventuras que as colhem.
Que teria feito, por exemplo, que se
saiba, esse martirizado Alfred Dreyfus, o capitão francês acusado injustamente
de traidor da sua pátria e que, apesar de inocente, sofreu as maiores
humilhações, as mais terríveis dores morais que um homem de sentimentos
delicados pode amargar?
Que horrível falso testemunho teria
ele erguido contra um seu irmão, para que duramente viesse expiar a sua falta,
aqui, em outra encarnação?
O Espiritismo não pode comprovar com
documentos insofismáveis esses casos que se desenrolam às nossas vistas; mas,
feliz da criatura que, meditando sobre eles, tem olhos de ver e ouvidos de
ouvir, feliz o Espírito que aprende nesses fatos a lição que nos ensina a
evitar a prática do mal e nos poupa a sofrimentos bem terríveis.
Essa lição é de todas as épocas e
surge entre todos os povos.
*
Entre os heróis cearenses, que muito
trabalharam para constituir a Confederação do Equador, houve, em 1824, um
pardo, alfaiate, Félix Arerê, que, preso no combate de Santa Rosa, veio em
algemas para Fortaleza, onde foi processado e devia sofrer a pena de morte.
Quem conhece a História daqueles
tempos, bem se recorda da execração em que incorriam todos aqueles ousados
rebeldes à autoridade d'el-rei e as injúrias e sofrimentos a que ficavam
expostos nas mãos das autoridades encarregadas de “vingar” a afronta de tais
rebeldias.
Não eram malvados os executores da
lei, mas criaturas presas aos preconceitos da época, preconceitos tão terríveis
que permitiram fosse salgada a cabeça de Ratcliff e remetida de presente à
rainha Carlota, em Portugal. Pessoas amigas
intervieram em favor do alfaiate, porém,
conseguiram apenas a oferta de ser a
condenação comutada em açoites, o que era naquele tempo castigo infamante para
os homens de cor.
Repelindo tal benevolência, o intrépido cearense atraiu todos os rigores,
antipatias e malquerenças das autoridades e conheceu as torturas escolhidas
para esmagar os rebeldes, e sofreu a pena de morte.
No cumprimento de ingrato dever
funcional, uma comissão militar, nomeada pelo governo do Império, dirigiu todas
as punições e cruezas praticadas contra os infelizes sonhadores da Confederação
do Equador.
Quem chefiava essa comissão militar?
O tenente-coronel de engenheiros,
Conrado Jacob de Niemeyer.
Não é curioso que, decorrido um
século, precisamente, um Conrado de Niemeyer tenha sofrido trágico gênero de
morte, percorrendo, para alcançá-Ia, a distância entre uma alta janela do
edifício da Central de Polícia e as pedras do calçamento da rua?
O Conrado Niemeyer de 1925 não será
a reencarnação do tenente-coronel que em 1824, cumprindo a lei dos homens,
mandou matar irmãos? O Conrado de Niemeyer de 1824 não terá voltado para, em
1925, cumprir as leis espirituais do Espaço - Dente por dente, olho por olho? -
Quem com ferro fere, com ferro será
ferido?
Não seria o resgate, a provação
escolhida pelo seu Espírito?
Feliz o que pode conhecer a verdade
e que tem olhos de ver e ouvidos de ouvir! ...
*
Santo Aleixo era filho do Eufemiano,
rico e poderoso senador de Roma, do tempo do imperador Valentiniano I, época em
que se deu a cisão entre a igreja ariana ou grega e a católica ou latina. Não há,
infelizmente, que se saiba, nos arquivos das comunicações espíritas, a
revelação de quem fora este Espírito; refletindo-se, porém, sobre a provação
escolhida e atentando-se no poder do Guia que o amparou, temos de reconhecer
que fora grande culpado, ou que veio dar um eloquente e admirável exemplo a
quantos desejem e precisem saber como pode um homem executar as lições da
palavra e da vida do Cristo; reconhecer que poderoso era o seu Espírito-Guia,
para dar-lhe forças e coragem sobre-humanas, capazes de o fazer suportar e
cumprir até o fim as amarguras físicas e morais que foram a sua vida terrena
nessa reencarnação.
Não há doutrina de seita alguma que
explique - racionalmente - como e porque um jovem rico, sem desgosto algum, sem
causa que o determine, abandona todos os confortos da existência e prefere a
vida miserável de mendigo.
Se alguma houver, fora do
Espiritismo, que apareça, pois vale a pena aprendê-Ia. Vindo ao mundo quando
seus pais haviam perdido a esperança de um filho, Santo Aleixo foi o enlevo e a
alegria daquele lar piedoso, onde eram socorridos e alimentados diariamente
mais de 400 pobres.
Crescendo, o seu talento se revelou
logo, permitindo-lhe assimilar, com admirável rapidez e engenho, todos os
conhecimentos que afamados mestres lhe transmitiam. Mas, a despeito disso, suas
acentuada ojeriza aos gozos mundanos, ruídos e festas era tão profundo, que
seus pais pensaram em casá-lo, escolhendo para esse projeto uma donzela nobre,
bela e rica.
Santo Aleixo ficou desolado; mas,
filho carinhoso e obediente, que era, não escandalizou os pais com oposições e
recusas. Submeteu-se e, na própria noite dos esponsais, quando tudo eram pompa,
alegrias, festas, dirigiu-se à câmara nupcial e ali ofertou à esposa riquíssima
jóia, rogando que as recebesse em sinal de muito afeto.
Em seguida, retirando-se,
disfarçou-se, saiu do palácio e, metendo-se a bordo de um navio que partia para
Laodiceia, antiga cidade da Ásia Menor, costa da Síria, seguiu para ali, de
onde, temendo ser reconhecido, rumou para Edessa, a algumas milhas de
distância.
Aí, despojando-se de tudo quanto
possuía ainda e distribuindo com os pobres, entregou-se à providência de Deus.
Para residir, escolheu o átrio
descoberto de uma igreja; para alimentação, as poucas esmolas que lhe davam.
Escassas eram elas porque, mal visto, olhado com desprezo, pelo esfarrapado da
roupa, pelo ar humilde e simples, o insultavam com injúrias deprimentes,
tomando-o por homem vagabundo, peregrino ocioso.
Mas, Aleixo exultava e, mais, nas
suas preces agradecia a provação, que lhe arruinava o corpo e o desfigurava a
tal ponto que familiares, emissários enviados a procurá-lo em todo o mundo
passaram por ele, deram-lhe esmola e não o reconheceram.
Assim viveu 17 anos. No fim desse
tempo, a sua resignação e fé haviam sido notadas e começara a formar-se novo
conceito em torno da sua pessoa, principalmente porque o sacristão da igreja
afirmava ter ouvido diversas vezes uma voz do céu dizer desconhecido um grande servo de Deus
e cujas orações eram muito atendidas na presença rio Senhor.
Tão logo Aleixo notou e soube de
tal, temeroso das consequências resultantes de veneração e homenagens à sua
pessoa, meteu-se a bordo de um navio que estava de viagem para Laodiceia (onde
desembarcara), pedindo a Deus que o conduzisse ao lugar em que devesse terminar
a sua provação.
Deus o ouviu, porque furiosa
tempestade açoitou o barco e, em vez de ir a Laodiceia, foram bater às praias
da Itália, próximas de Roma.
Aleixo meditou no desígnio do Alto
e, inspirado pelo seu Espírito-Guia, dirigiu-se à casa paterna.
Encolhido a um canto da entrada,
aguardou. Quando o pai regressava do Senado ao palácio, saiu-lhe ao encontro,
dizendo: “Compadecei-vos, senhor, deste pobre de Cristo, dando-lhe para
recolher-se um cantinho no vosso palácio; e o céu não deixará de
recompensar-vos este grandioso benefício”.
Eufemiano, o senador, ouvindo aquela
voz humilde e serena, contemplando tanta miséria, sentiu as lágrimas lhe
correrem dos olhos. Chamando um criado, recomendou que abrigasse o pobre e lhe
desse carinhoso conforto.
Quem sabe se pelo Espírito do
desolado senador não passara naquele instante a lembrança do filho querido!? ...
Perder um filho - único - é rasgar o
coração e, dentro do coração aberto pela dor de perder um filho assim, cabem
todos os sofrimentos de uma vida inteira! Ó mães e pais, que muito amastes os
filhos que se foram, a misericórdia de Deus seja convosco, derramando sobre a
ferida da vossa amargura o bálsamo do Espiritismo, que ensina a ver, com os
olhos da alma, o Espírito desencarnado - vivendo no Espaço e ouvindo as nossas
preces!
O criado do senador, contrariadíssimo
com a obrigação nova que lhe trazia o desconhecido, conduziu-o para os baixos
da escada principal do palácio, atirando ao hóspede importuno injúrias e mais
injúrias. Transmitiu aos outros fâmulos a sua raiva, passando Aleixo a ser
considerado escravo fugido, ou indivíduo da mais ínfima ralé social.
Quanto mais docil, humilde,
paciente, inalterável se mostrava Santo Aleixo, mais o desprezavam e cobriam de
ofensas, porque atribuíam tais atitudes à estupidez, baixeza de caráter,
insensibilidade moral.
Mas não consistia só nisso a tortura
de Santo Aleixo. Maior era a de ver chorar sua mãe, que jamais o esquecera; era
ver o semblante tristonho do pai, que suspirava pelo filho desaparecido; era
olhar os apagados fulgores da beleza da esposa abandonada, carpindo o esvaído
sonho da sua juventude ...
Não há, de certo, fora do
Espiritismo, fora da lei da reencarnação, das provações, fora da assistência de
um Guia do Espaço, explicação para tanta coragem, tanta fortaleza de ânimo,
para suportar tão rudes padeceres sem causa, espontaneamente. É' verdade que
Aleixo sentia fracas, às vezes, as energias; mas, orava, orava muito e do Alto
lhe vinham os socorros. Sentia-se feliz, porque o cárcere terrível de suas provações
tinha janelas para o Infinito, através das quais ele via a região encantada e
luminosa, donde o seu Protetor lhe enviava, a sorrir, as doiradas mariposas da
Esperança, a adejarem fulgentes na treva transitória da vida terrena.
Assim sofreu outros 17 anos.
Um dia, seu Anjo de Guarda o avisou da
próxima libertação. Aleixo escreveu então o suficiente, para que ficasse
provada a sua identidade, e, fechando em uma das mãos esse papel, começou a
derradeira prece. E, a orar, deixou a Terra. Ninguém lhe viu a morte, ninguém
dela soube.
Na manhã seguinte, o senador foi à
igreja de S. Pedro, onde pontificaria o papa Inocêncio I, com a assistência do
imperador Honório e de toda a corte. Ia o ato em meio, quando uma voz, que não
era humana, disse: Na casa do Senador
Eufemiano, morreu um grande servo de Deus!
Não se descreve o assombro que isto
causou, mormente quando explicava o senador, ao imperante, a existência do
piedoso hóspede em seu palácio.
Terminada a missa, diz a História, o
papa, o imperador, os nobres, seguidos da plebe, em extenso e majestoso
cortejo, foram ao palácio de Eufemiano e ali acharam o morto, com o papel na
mão, escrito que só depois de fervorosa oração, feita de joelhos, por todos, se
conseguiu retirar de entre os dedos do cadáver.
Não há expressões que possam dar
ideia da cena emocionante que se desenrolou em tal momento, quando a infeliz
mãe, voltando suas queixas para Deus, exclamou: “E foi possível que eu tivesse
este pobre diante dos meus olhos, tanto tempo, sem conhecer que era o meu
querido filho!”
Correu a notícia e veio gente;
milhares de pessoas, para ver, beijar o corpo do - santo - - e obter
milagres... Foi preciso que a polícia viesse montar guarda, até organizar-se a
procissão, que o papa e o imperador deviam encabeçar, para conduzir aquele
mísero resto de matéria à igreja de S. Bonifácio, onde lhe fizeram suntuoso
mausoléu.
Mas a História não nos diz que se
tivesse aproveitado o exemplo para tirar a lição espiritual; que aquela gente
aprendesse a amar e invocar o Espírito de Aleixo, a fim de que sobre a
inteligência dos seus derramasse a luz da Verdade e sobre os corações as
bênçãos do Senhor.
Quantos estrangeiros expatriados,
pelos quais passamos indiferentes, sem suspeitar que alguns bem podem ser uma
parecença de Aleixo, o filho do senador romano? Quantos chagados, paralíticos e
morféticos existem, cumprindo provação escolhida, purgando a culpa de haverem
maltratado, desprezado, assassinado - por maldade ou impaciência, pobres e
infelizes doentes confiados à sua má guarda e criminosos cuidados?
Se tivessem vivido em outros tempos,
quiçá a glória das Crônicas lhes fosse envolver o nome; hoje, coitados, têm por
pedestal de anônima sagração o leito da enfermaria pública, ou as pedras das
ruas! ...
Se chegarem à vala comum, depois da
hora regimental marcada nos regulamentos dos cemitérios, terão talvez por
derradeiro troféu o mau humor de um coveiro cansado e exausto pelas duras lidas
do dia, resmungando:
- Porque este diabo não veio mais
cedo?
Continua
Nenhum comentário:
Postar um comentário