quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

02 / 03 A Escolha das Provações


02/03
  A Escolha das
 Provações
por Almerindo Martins de Castro


inReformador’ (FEB) Abril-Maio- Junho 1970

            S. Sérvulo, que se celebra a 28 de Dezembro, “era um mendigo, e desde a sua infância tinha sido atacado de paralisia, de modo que nunca podia firmar-se em pé, chegar a mão à boca, nem voltar-se de um lado para o outro.

            Sua mãe e um irmão seu o levaram para o pórtico da igreja de S. Clemente, em Roma, onde vivia das esmolas que ajuntava.

            Quanto podia poupar do seu sustento o distribuía pelos mais pobres. As penalidades e o abatimento de seu estado e condição foram meios de que fez excelente uso para a santificação da sua alma e exercício constante da humildade, paciência, mansidão, resignação e penitência.

            Costumava pedir aos devotos que o iam visitar, que lhe lessem a Escritura Sagrada, e com tal atenção a escutava, que chegou a aprendê-Ia de cor e a entendê-Ia segundo a sua capacidade.

            No meio dos incômodos e das dores contínuas, não cessava nunca de dar graças a Deus de o ter reduzido àquele estado e passava os dias e as noites a entoar salmos, hinos e cânticos em sua honra.

            Depois de vários anos consumidos nestas fadigas, apoderando-se a sua enfermidade das partes mais essenciais à vida, conheceu que se aproximava o seu fim.

            Nos seus últimos momentos, pediu encarecidamente que aqueles infelizes que antes haviam sido participantes da sua caridade se ajuntassem com ele, para levantarem a voz em hinos de louvor e de amor; e, com efeito, estando na companhia destes, exclamou: “Escutai, não ouvis a suave melodia e os louvores que ressoam nos céus?”

            Pouco depois de haver pronunciado estas palavras, expirou, sendo levada a sua alma pelos anjos em as eras de 590. O corpo de São Sérvulo foi enterrado na igreja de S. Clemente e honrado com milagres, segundo o “Martirológio Romano”.

            Comentando estas palavras, no próprio livro oficial da Igreja, do qual as transcrevi, diz o autor: “Eis aqui o bom uso que se deve fazer das doenças e especialmente daquelas que duram longo tempo e deixam livre o entendimento, segundo o exemplo deste Santo Paralítico. isto é, primeiramente, considerá-Ias como uma graça que o Senhor nos faz para santificarmos a nossa alma... porque, por meio das tribulações e enfermidades suportadas com paciência, purifica Deus a alma dos seus defeitos e pecados e a enriquece de merecimentos e de virtudes.”

            À inteligência de quem lê este comentário surge a pergunta: “que pecados podia ter o paralítico de nascença, se ele foi crente, caritativo, resignado e santo?”

            Se aquele que nasceu sofrendo desde a primeira hora da vida terrena sofreu para purificar-se de pecados, esses pecados são da existência atual - em que não foram cometidos - ou de outras encarnações? A Igreja não nos diz que sim, mas abençoada seja a criatura que enxergar a verdade escondida nos subterfúgios católicos, sufocada pelas conveniências de uma instituição que se diz infalível; verdade negada pelos que mais dela necessitam, porém, ainda assim, surgindo, espocando através da letra astuta, mostrando--se aos olhos de todos que tenham olhos para ver e ouvidos para ouvir. Porque, só a lei da reencarnação explica esses padecimentos físicos e morais atingindo criaturas que, aparentemente ao menos, não merecem as desventuras que as colhem.

            Que teria feito, por exemplo, que se saiba, esse martirizado Alfred Dreyfus, o capitão francês acusado injustamente de traidor da sua pátria e que, apesar de inocente, sofreu as maiores humilhações, as mais terríveis dores morais que um homem de sentimentos delicados pode amargar?

            Que horrível falso testemunho teria ele erguido contra um seu irmão, para que duramente viesse expiar a sua falta, aqui, em outra encarnação?

            O Espiritismo não pode comprovar com documentos insofismáveis esses casos que se desenrolam às nossas vistas; mas, feliz da criatura que, meditando sobre eles, tem olhos de ver e ouvidos de ouvir, feliz o Espírito que aprende nesses fatos a lição que nos ensina a evitar a prática do mal e nos poupa a sofrimentos bem terríveis.

            Essa lição é de todas as épocas e surge entre todos os povos.

*

            Entre os heróis cearenses, que muito trabalharam para constituir a Confederação do Equador, houve, em 1824, um pardo, alfaiate, Félix Arerê, que, preso no combate de Santa Rosa, veio em algemas para Fortaleza, onde foi processado e devia sofrer a pena de morte.

            Quem conhece a História daqueles tempos, bem se recorda da execração em que incorriam todos aqueles ousados rebeldes à autoridade d'el-rei e as injúrias e sofrimentos a que ficavam expostos nas mãos das autoridades encarregadas de “vingar” a afronta de tais rebeldias.

            Não eram malvados os executores da lei, mas criaturas presas aos preconceitos da época, preconceitos tão terríveis que permitiram fosse salgada a cabeça de Ratcliff e remetida de presente à rainha Carlota, em Portugal. Pessoas amigas intervieram em favor do alfaiate, porém,
conseguiram apenas a oferta de ser a condenação comutada em açoites, o que era naquele tempo castigo infamante para os homens de cor.

            Repelindo tal benevolência, o intrépido cearense atraiu todos os rigores, antipatias e malquerenças das autoridades e conheceu as torturas escolhidas para esmagar os rebeldes, e sofreu a pena de morte.

            No cumprimento de ingrato dever funcional, uma comissão militar, nomeada pelo governo do Império, dirigiu todas as punições e cruezas praticadas contra os infelizes sonhadores da Confederação do Equador.

            Quem chefiava essa comissão militar?

            O tenente-coronel de engenheiros, Conrado Jacob de Niemeyer.

            Não é curioso que, decorrido um século, precisamente, um Conrado de Niemeyer tenha sofrido trágico gênero de morte, percorrendo, para alcançá-Ia, a distância entre uma alta janela do edifício da Central de Polícia e as pedras do calçamento da rua?

            O Conrado Niemeyer de 1925 não será a reencarnação do tenente-coronel que em 1824, cumprindo a lei dos homens, mandou matar irmãos? O Conrado de Niemeyer de 1824 não terá voltado para, em 1925, cumprir as leis espirituais do Espaço - Dente por dente, olho por olho? - Quem com ferro fere, com ferro será ferido?

            Não seria o resgate, a provação escolhida pelo seu Espírito?

            Feliz o que pode conhecer a verdade e que tem olhos de ver e ouvidos de ouvir! ...

*
            Santo Aleixo era filho do Eufemiano, rico e poderoso senador de Roma, do tempo do imperador Valentiniano I, época em que se deu a cisão entre a igreja ariana ou grega e a católica ou latina. Não há, infelizmente, que se saiba, nos arquivos das comunicações espíritas, a revelação de quem fora este Espírito; refletindo-se, porém, sobre a provação escolhida e atentando-se no poder do Guia que o amparou, temos de reconhecer que fora grande culpado, ou que veio dar um eloquente e admirável exemplo a quantos desejem e precisem saber como pode um homem executar as lições da palavra e da vida do Cristo; reconhecer que poderoso era o seu Espírito-Guia, para dar-lhe forças e coragem sobre-humanas, capazes de o fazer suportar e cumprir até o fim as amarguras físicas e morais que foram a sua vida terrena nessa reencarnação.

            Não há doutrina de seita alguma que explique - racionalmente - como e porque um jovem rico, sem desgosto algum, sem causa que o determine, abandona todos os confortos da existência e prefere a vida miserável de mendigo.

            Se alguma houver, fora do Espiritismo, que apareça, pois vale a pena aprendê-Ia. Vindo ao mundo quando seus pais haviam perdido a esperança de um filho, Santo Aleixo foi o enlevo e a alegria daquele lar piedoso, onde eram socorridos e alimentados diariamente mais de 400 pobres.

            Crescendo, o seu talento se revelou logo, permitindo-lhe assimilar, com admirável rapidez e engenho, todos os conhecimentos que afamados mestres lhe transmitiam. Mas, a despeito disso, suas acentuada ojeriza aos gozos mundanos, ruídos e festas era tão profundo, que seus pais pensaram em casá-lo, escolhendo para esse projeto uma donzela nobre, bela e rica.

            Santo Aleixo ficou desolado; mas, filho carinhoso e obediente, que era, não escandalizou os pais com oposições e recusas. Submeteu-se e, na própria noite dos esponsais, quando tudo eram pompa, alegrias, festas, dirigiu-se à câmara nupcial e ali ofertou à esposa riquíssima jóia, rogando que as recebesse em sinal de muito afeto.

            Em seguida, retirando-se, disfarçou-se, saiu do palácio e, metendo-se a bordo de um navio que partia para Laodiceia, antiga cidade da Ásia Menor, costa da Síria, seguiu para ali, de onde, temendo ser reconhecido, rumou para Edessa, a algumas milhas de distância.

            Aí, despojando-se de tudo quanto possuía ainda e distribuindo com os pobres, entregou-se à providência de Deus.

            Para residir, escolheu o átrio descoberto de uma igreja; para alimentação, as poucas esmolas que lhe davam. Escassas eram elas porque, mal visto, olhado com desprezo, pelo esfarrapado da roupa, pelo ar humilde e simples, o insultavam com injúrias deprimentes, tomando-o por homem vagabundo, peregrino ocioso.

            Mas, Aleixo exultava e, mais, nas suas preces agradecia a provação, que lhe arruinava o corpo e o desfigurava a tal ponto que familiares, emissários enviados a procurá-lo em todo o mundo passaram por ele, deram-lhe esmola e não o reconheceram.

            Assim viveu 17 anos. No fim desse tempo, a sua resignação e fé haviam sido notadas e começara a formar-se novo conceito em torno da sua pessoa, principalmente porque o sacristão da igreja afirmava ter ouvido diversas vezes uma voz do céu dizer desconhecido um grande servo de Deus e cujas orações eram muito atendidas na presença rio Senhor.

            Tão logo Aleixo notou e soube de tal, temeroso das consequências resultantes de veneração e homenagens à sua pessoa, meteu-se a bordo de um navio que estava de viagem para Laodiceia (onde desembarcara), pedindo a Deus que o conduzisse ao lugar em que devesse terminar a sua provação.

            Deus o ouviu, porque furiosa tempestade açoitou o barco e, em vez de ir a Laodiceia, foram bater às praias da Itália, próximas de Roma.

            Aleixo meditou no desígnio do Alto e, inspirado pelo seu Espírito-Guia, dirigiu-se à casa paterna.

            Encolhido a um canto da entrada, aguardou. Quando o pai regressava do Senado ao palácio, saiu-lhe ao encontro, dizendo: “Compadecei-vos, senhor, deste pobre de Cristo, dando-lhe para recolher-se um cantinho no vosso palácio; e o céu não deixará de recompensar-vos este grandioso benefício”.

            Eufemiano, o senador, ouvindo aquela voz humilde e serena, contemplando tanta miséria, sentiu as lágrimas lhe correrem dos olhos. Chamando um criado, recomendou que abrigasse o pobre e lhe desse carinhoso conforto.

            Quem sabe se pelo Espírito do desolado senador não passara naquele instante a lembrança do filho querido!? ...

            Perder um filho - único - é rasgar o coração e, dentro do coração aberto pela dor de perder um filho assim, cabem todos os sofrimentos de uma vida inteira! Ó mães e pais, que muito amastes os filhos que se foram, a misericórdia de Deus seja convosco, derramando sobre a ferida da vossa amargura o bálsamo do Espiritismo, que ensina a ver, com os olhos da alma, o Espírito desencarnado - vivendo no Espaço e ouvindo as nossas preces!

            O criado do senador, contrariadíssimo com a obrigação nova que lhe trazia o desconhecido, conduziu-o para os baixos da escada principal do palácio, atirando ao hóspede importuno injúrias e mais injúrias. Transmitiu aos outros fâmulos a sua raiva, passando Aleixo a ser considerado escravo fugido, ou indivíduo da mais ínfima ralé social.

            Quanto mais docil, humilde, paciente, inalterável se mostrava Santo Aleixo, mais o desprezavam e cobriam de ofensas, porque atribuíam tais atitudes à estupidez, baixeza de caráter, insensibilidade moral.

            Mas não consistia só nisso a tortura de Santo Aleixo. Maior era a de ver chorar sua mãe, que jamais o esquecera; era ver o semblante tristonho do pai, que suspirava pelo filho desaparecido; era olhar os apagados fulgores da beleza da esposa abandonada, carpindo o esvaído sonho da sua juventude ...

            Não há, de certo, fora do Espiritismo, fora da lei da reencarnação, das provações, fora da assistência de um Guia do Espaço, explicação para tanta coragem, tanta fortaleza de ânimo, para suportar tão rudes padeceres sem causa, espontaneamente. É' verdade que Aleixo sentia fracas, às vezes, as energias; mas, orava, orava muito e do Alto lhe vinham os socorros. Sentia-se feliz, porque o cárcere terrível de suas provações tinha janelas para o Infinito, através das quais ele via a região encantada e luminosa, donde o seu Protetor lhe enviava, a sorrir, as doiradas mariposas da Esperança, a adejarem fulgentes na treva transitória da vida terrena.

            Assim sofreu outros 17 anos.

            Um dia, seu Anjo de Guarda o avisou da próxima libertação. Aleixo escreveu então o suficiente, para que ficasse provada a sua identidade, e, fechando em uma das mãos esse papel, começou a derradeira prece. E, a orar, deixou a Terra. Ninguém lhe viu a morte, ninguém dela soube. 

            Na manhã seguinte, o senador foi à igreja de S. Pedro, onde pontificaria o papa Inocêncio I, com a assistência do imperador Honório e de toda a corte. Ia o ato em meio, quando uma voz, que não era humana, disse: Na casa do Senador Eufemiano, morreu um grande servo de Deus!

            Não se descreve o assombro que isto causou, mormente quando explicava o senador, ao imperante, a existência do piedoso hóspede em seu palácio.

            Terminada a missa, diz a História, o papa, o imperador, os nobres, seguidos da plebe, em extenso e majestoso cortejo, foram ao palácio de Eufemiano e ali acharam o morto, com o papel na mão, escrito que só depois de fervorosa oração, feita de joelhos, por todos, se conseguiu retirar de entre os dedos do cadáver.

            Não há expressões que possam dar ideia da cena emocionante que se desenrolou em tal momento, quando a infeliz mãe, voltando suas queixas para Deus, exclamou: “E foi possível que eu tivesse este pobre diante dos meus olhos, tanto tempo, sem conhecer que era o meu querido filho!”

            Correu a notícia e veio gente; milhares de pessoas, para ver, beijar o corpo do - santo - - e obter milagres... Foi preciso que a polícia viesse montar guarda, até organizar-se a procissão, que o papa e o imperador deviam encabeçar, para conduzir aquele mísero resto de matéria à igreja de S. Bonifácio, onde lhe fizeram suntuoso mausoléu.

            Mas a História não nos diz que se tivesse aproveitado o exemplo para tirar a lição espiritual; que aquela gente aprendesse a amar e invocar o Espírito de Aleixo, a fim de que sobre a inteligência dos seus derramasse a luz da Verdade e sobre os corações as bênçãos do Senhor.

            Quantos estrangeiros expatriados, pelos quais passamos indiferentes, sem suspeitar que alguns bem podem ser uma parecença de Aleixo, o filho do senador romano? Quantos chagados, paralíticos e morféticos existem, cumprindo provação escolhida, purgando a culpa de haverem maltratado, desprezado, assassinado - por maldade ou impaciência, pobres e infelizes doentes confiados à sua má guarda e criminosos cuidados?

            Se tivessem vivido em outros tempos, quiçá a glória das Crônicas lhes fosse envolver o nome; hoje, coitados, têm por pedestal de anônima sagração o leito da enfermaria pública, ou as pedras das ruas! ...

            Se chegarem à vala comum, depois da hora regimental marcada nos regulamentos dos cemitérios, terão talvez por derradeiro troféu o mau humor de um coveiro cansado e exausto pelas duras lidas do dia, resmungando:

            - Porque este diabo não veio mais cedo?

Continua





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