domingo, 26 de fevereiro de 2012

01/03 "Apolinário, Cerinto e o corpo de Jesus"



01/03  Apolinário, Cerinto
e o corpo de Jesus

           
Zêus Wantuil

Apêndice  em “Elos Doutrinários” (FEB)  3ª Ed 1978


            Em nosso trabalho – “Docetismo”, mostramos que as ideias de Apolinário, bispo de Laodiceia, no século IV, nada tinham que ver com a teoria do corpo fluídico de Jesus. O Apolinarismo surgiu como uma explicação para o problema que já vinha sendo tratado desde o século segundo, e sobre o qual se levantavam as mais disparatadas e controvertidas ideias. A questão resumia-se em compreender como o Logos (o Verbo) poderia ligar-se a uma natureza humana. E a solução apresentada por Apolinário foi uma tentativa para salvar a unidade da pessoa do Cristo, a expensas de sua natureza humana.

            Apolinário, cuja desencarnação se deu ali pelas proximidades de 390, foi, como já fizemos notar, admirado e respeitado pelos seus contemporâneos devido a sua grande sabedoria. Segundo um seu contemporâneo chamado Sócrates, o Escolástico, era ele “sábio em ciência”, e, no dizer do historiador Sozomeno, era “versado em todas as ciências e doutrinas, um homem de erudição e cultura profusas”.

            Acreditando firmemente ser impossível a união da natureza Divina completa com a natureza completa de um homem, não passando isto, acreditava ele, de mera justaposição, e não unidade, apoiou-se na concepção neoplatônica da natureza humana (corpo, alma e espírito ou mente), corroborada pelo apóstolo Paulo, e fez as seguintes considerações: O espírito ou mente humana, sendo imperfeito, falível, não poderia estar no Cristo. Dessa forma, é ele eliminado da humanidade do Cristo, e, no seu lugar, permanece a essência divina, o Logos, para que o ser do Cristo não se macule com o pecado inerente à natureza humana.

            Em suma, o Cristo assumiu o corpo humano e a alma humana ou princípio da vida animal, mas não o espírito humano. O Logos é que tomou o lugar deste último, tornando-se assim, no Cristo, o centro da vida racional e espiritual, a sede da autoconsciência e autodeterminação. O Cristo é, então, um ser humano (pelo corpo e pela alma sensitiva) guiado e controlado pelo Logos, que é, portanto, a única parte divina do mesmo Cristo.

            Usando deste artifício, Apolinário julgou ter posto o Cristo a salvo, assegurando-lhe a unidade substancial, garantindo-lhe a imutabilidade de sua moral e, destarte, tornando evidente, por si mesmo, o grande valor da Redenção.

            Por causa dessas ideias, Apolinário foi considerado como heresiarca, e dele se afastaram antigos amigos, que, então, passaram a combatê-lo com veemência.

            O Sínodo de Antioquia (378) anatematizava aqueles que “dizem que o Verbo de Deus habitou em carne humana no lugar de uma alma inteligente e racional”. (Mansi, i i i, 486.)

            O primeiro Cânon do Concílio de Constantinopla (381) também condena os apolinaristas, e o Concílio de Roma, de 381, repetia: “Pronunciamos anátema contra aqueles que dizem que o Verbo de Deus esteve na carne humana, em vez ou no lugar da alma humana racional e intelectiva.”

            O Quinisextum Sínodo, de 691, no primeiro cânon, não esqueceu  de, novamente, condenar “Apolinário, chefe da malícia, que impiamente declarou que o Senhor não assumiu um corpo dotado de alma e mente”. (Mansi, Collectio, 1759-1798, XI, 936.)

            Vários outros Concílios referiram-se à doutrina apolinarista, e só citamos os acima, não porque damos importância a excomunhões e anátemas, e sim para provar que Apolinário cria realmente no corpo físico, carnal do Cristo, e tanto é assim, que ele também se apoiava em I-Timóteo, 3 :16: “E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: aquele que foi manifestado em carne ...” e em João, 1:4: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós ... “, com isto querendo frisar, em defesa de suas ideias, que o Verbo (Logos) foi feito não homem, mas carne.

            À vista de tudo o que, com simplicidade, expusemos, apenas com o intuito de esclarecer, sem mostras de erudição, que confessamos não possuir, devemos concluir que falece razão àqueles que continuam a ligar o Apolinarismo ao corpo fluídico de Jesus.

            Para combater esta última teoria, não mais se faz necessário ressuscitar Apolinário e as condenações católicas que caíram sobre ele, primeiro porque o dito bispo de Laodiceia acreditava na “carne” de Jesus Cristo, e segundo porque a doutrina apolinarista está há muitos séculos extinta.

            Além do mais, precisamos apoiar nossas opiniões em estudos raciocinados e inteligentes, e não em excomunhões arbitrárias ou não. Se assim procedermos acerca de certa questão que queremos defender, é lógico que o devamos também fazer com relação a todas as demais, e neste caso não deveríamos aceitar, por exemplo, a reencarnação, pregada por Carpócrates, Orígenes e outros, a não divindade de Jesus, pregada por Ário,  porque essas ideias e seus partidários foram condenados pela Igreja como heréticos.

            Ário era sacerdote de uma das igrejas de Alexandria, e, em 318, mais ou menos, opôs-se à doutrina do seu bispo, que proclamava a igualdade das três pessoas divinas.

            A relação entre o Pai e o Filho foi um dos problemas que preocupavam seriamente os padres dos séculos IIe III. Pairavam no ar interrogações como estas: Jesus Cristo é realmente Deus? “É a divindade - como escreve Harnack - que apareceu na Terra e tornou a sua presença ativamente idêntica à divindade suprema que governa os céus e a Terra?”

            Com o propósito de satisfazer a estas exigências racionais da fé é que apareceu Ário com a sua doutrina. Pregava que o Filho (Jesus Cristo) é como que uma divindade secundária, inferior, subordinada, colocada entre a Primeira Causa e as criaturas, e não realmente o Deus eterno, onipotente, infinito.

            Deus, segundo Ário, foi sempre único, o princípio, o não gerado. Já o Filho, este foi gerado, e houve um tempo em que não existiu; portanto, conclui Ário, ele não pode ser co-eterno, consubstancial com o Pai, nem igual a este em dignidade.

            Era a negação expressa da “misteriosa” Trindade (três pessoas num só Deus), que começava a enraizar-se no Catolicismo nascente, e que, em fins do século II, ainda se achava meio indecisa.

            Pois bem, foi por isto que o Sínodo de Alexandria o excomungou e expulsou do sacerdócio; que o Concílio de Nicéia (325), convocado pelo imperador Constantino, que a ele presidiu sentado num trono de ouro, condenou Ário e outros bispos que adotavam a mesma doutrina, o mesmo fazendo o Concílio de Constantinopla (381) e outros concílios. Quem estudar, mesmo superficialmente, os concílios na história da Igreja, comprovará as arbitrariedades neles cometidas. “Os autores sacros - comenta Allan Kardec, em “Obras Póstumas” - nada mais conseguiram do que girar dentro do mesmo círculo, produzindo apreciações pessoais, deduzindo corolários acordemente com seus pontos de vista, comentando, sob novas formas e com maior ou menor desenvolvimento, as opiniões contrárias às suas. Pertencendo ao mesmo partido, tiveram todos de escrever no mesmo sentido, senão nos mesmos termos, sob pena de serem declarados heréticos, como
o foram Orígenes e tantos mais. Naturalmente, a Igreja só incluiu no número dos seus Pais os escritores ortodoxos, do seu ponto de vista; somente exalçou, santificou e colecionou aqueles que lhe tomaram a defesa, ao passo que repudiou os outros, e lhes destruiu quanto pode os escritos. Nada, pois, de concludente exprime o acordo dos Pais da Igreja, visto que formam uma unanimidade arranjada a dedo, mediante a eliminação dos elementos contrários. Se se fizesse um confronto de tudo o que foi escrito pró e contra, difícil se tornaria dizer para que lado se inclinaria a balança.” E, mais adiante, conclui Kardec: “Longe de intentarmos apontá-Ios (os Pais da Igreja) no que quer que fosse, apenas quisemos refutar o valor das consequências que se pretende tirar do acordo de suas opiniões.”

            Muitas outras teses doutrinárias, hoje aceitas pelos espíritas, foram também condenadas como heréticas pela Igreja, pois que contrárias ao pensamento dos Padres da Igreja. Para não irmos mais longe, basta dizer que, se fôssemos adotar o veredito da Igreja, para justificar nossas asserções, falsas ou verdadeiras, contra ideias que não professamos, numa argumentação tola e incoerente, não mais deveríamos ser espíritas, pois estes são considerados heréticos pela Igreja, e por esta condenados! 


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