segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

01/02 Doutrinação - Variações sobre um Tema Complexo



01/02 Doutrinação:
Variações sobre um
Tema Complexo

por Hermínio C Miranda

Reformador (FEB) Abril 1970

             
            Em  “Memórias de um Suicida”, um dos grandes livros da literatura mediúnica, narra o autor espiritual, no capítulo VI (A Comunhão com o Alto), a dramática procura de médiuns que, pela sua dedicação integral e espontânea, socorressem alguns dos trágicos transgressores das leis sagradas da vida.

            Chegara a um “impasse” o processo de recuperação. A despeito do desvelo e competência dos técnicos e mentores da organização espiritual especializada no tratamento dos suicidas, um grupo deles se mantinha irredutivelmente fixo nas suas angústias. Os casos estavam distribuídos, segundo sua natureza, a três ambientes distintos: o hospital propriamente dito, o isolamento e o manicômio.

            Uns tantos desses, porém, “permaneciam atordoados, semi inconscientes, imersos em lamentável estado de inércia mental, incapacitados para quaisquer aquisições facultativas de progresso”.

            Tornara-se, pois, urgente despertá-los para a realidade que se recusavam, mais inconsciente do que conscientemente, a enfrentar. Trata-se aqui de um conhecido mecanismo de fuga defensiva. Inseguro e temeroso diante da dor que ele sabe aguda, profunda e inexorável, o espírito culpado se aliena, na esperança de pelo menos adiar o momento duro e fatal do despertamento.

            Em casos como esses é necessário, quase sempre, recorrer à terapêutica da mediunidade. O Espírito precisa retomar a sua marcha e o recurso empregado com maior eficácia é o do choque, a que o autor de “Memórias de um Suicida” chama de “revivescência de vibrações animalizadas”. Habituados a tais vibrações mais grosseiras, mostravam-se eles inatingíveis aos processos mais sutis de que dispõem os técnicos do Espaço. Para que fossem tocados na intimidade do ser, era preciso alcançá-los “através da ação e da palavra humanas”. Como estavam, não entendiam a palavra dos mentores e nem mesmo os distinguiam visualmente, por mais que estes reduzissem o seu teor vibratório, num esforço considerável de auto materialização.

            Em suma, decidiu-se encaminhar os mais necessitados a um grupo mediúnico na Terra.

            Desdobra-se, então, um trabalho longo, penoso e difícil. Onde localizar um grupo desses, seguro de seus métodos, doutrinariamente esclarecido, sério, fraternal e integrado no espírito do Evangelho?

            Movimentam-se os órgãos próprios da vasta e bem estruturada instituição - a Legião dos Servos de Maria. É nomeada uma comissão que se responsabilizará pela tarefa de levar à face da Terra aqueles seres tão batidos pela desgraça. Entram em ação todos os dispositivos de segurança e de informação. Na Seção de Relações Externas são consultadas as indicações sobre grupos espíritas que possam oferecer as condições desejadas para o delicado trabalho. Verifica-se a existência de grupos em Portugal, na Espanha e no Brasil. Decide-se por este último e, em seguida, são examinadas as “fichas espirituais dos médiuns” que compõem os grupos sob exame. É no Brasil que se localiza “magnífica falange de médiuns bem dotados” para a delicada tarefa.

            Nessa mesma noite, partem os dirigentes para o plano terrestre, com o encargo preliminar de selecionar os médiuns e, por conseguinte, os grupos mediúnicos aos quais levariam os doentes espirituais a tratamento. A colaboração a ser solicitada envolvia também entendimentos com os guias e mentores e certamente teria que ser inteiramente voluntária, pois seria inadmissível forçar a difícil tarefa.    

            A entrevista com os médiuns foi planejada para a noite, enquanto estavam parcialmente libertos pelo sono fisiológico e mais protegidos, magneticamente, pelos seus respectivos guias. Quatro cidades seriam visitadas de cada vez, em busca de socorro e colaboração mediúnica. Selecionados os instrumentos, haveria urna reunião coletiva na Espiritualidade para distribuição das tarefas.

            Os médiuns foram avisados de que teriam que contribuir “com grandes parcelas de suas próprias energias para alívio dos desgraçados que lhes bateriam à porta”. Por certo, sentiriam o reflexo desse estafante trabalho, a ser realizado com não pequenos sacrifícios. Seriam assaltados por angústias, mal-estar, perda de apetite, insônia e até redução de peso físico, mas estariam sob a proteção adicional da instituição que ora lhes buscava o auxílio indispensável. Estavam sendo entrevistados apenas aqueles médiuns mais dotados e cujas faculdades se apoiavam na luminosa moral cristã e a quem o autor espiritual chama de “iniciados modernos”. Doze povoações foram visitadas no interior do Brasil e vinte médiuns consultados, um a um. Pois, a despeito da cuidadosa seleção prévia - entrevista apenas com os médiuns que ofereciam as condições mínimas exigidas - apenas quatro senhoras concordaram sem restrições, entregando-se literalmente, de corpo e alma, à tarefa. Dos médiuns masculinos, somente dois se dispuseram a colaborar, “sem rasgos de legítima abnegação, é certo, mas fiéis aos compromissos de que se investiram, assemelhando-se ao funcionário assíduo à repartição por ser esse o dever do subordinado”. Ou seja: por obrigação e não por amor. Os restantes dezesseis médiuns foram desobrigados, por se mostrarem desencorajados diante da magnitude e responsabilidade do sacrifício.

            Os mentores espirituais trabalhariam, pois, com número reduzido e com mais escassas possibilidades de atendimento, mas era preciso fazer algo por aqueles réprobos. Dessa forma, sem serem de todo negativos, os resultados dos contatos eram algo decepcionantes. E isso, notem bem, no Brasil, que “fora assinalado como ambiente preferível, onde se localizavam médiuns ricamente dotados, honestos, sinceros, absolutamente desinteressados!”

            Começa então o ajustamento dos seis aparelhos mediúnicos, através da ação fluídica e magnética, a fim de torná-los perfeitamente aptos para o trabalho especializado, ante o qual se haviam comprometido. Alongaríamos demais este comentário se fôssemos aqui reproduzir o meticuloso procedimento clínico-espiritual a que foram submetidos os médiuns. O objetivo era ajustá-los perfeitamente para que funcionassem satisfatoriamente no momento culminante do processo: a sessão mediúnica, cujo preparo é também descrito com minúcias surpreendentes. Os Espíritos em tratamento foram então reunidos e receberam longa preleção acerca da importância da reunião e do que se esperava de cada um.

            “A azáfama do plano espiritual - diz o autor - era intensa. Quanto à parte que tocava ao homem executar parecia diminuta, conforme foi fácil observar.”

            Todos estão a postos, afinal. Uma parcela considerável de responsabilidade cabe, daí em diante, àquele que tem a seu cargo, os trabalhos do grupo mediúnico. Dele se exigem, como condição essencial, “elevadas disposições para o Bem”. A narrativa torna-se fascinante neste ponto. Os mentores espirituais da casa, harmoniosamente articulados com os técnicos espirituais visitantes, responsáveis pelos doentes, se incumbem de tarefas que nos são quase inconcebíveis. Cabe-lhes “recolher as vibrações dos pensamentos e das palavras do presidente, desenvolvidos, durante o magno certame; associá-los aos elementos quintessenciados de que dispõem, de envolta com as ondas magnéticas dos circunstantes encarnados; elaborá-los e transfundi-los em cenas, dando-lhes vida e ação, concretizando-os, materializando-os até que os infelizes assistentes desencarnados sejam capazes de tudo compreender com facilidade.”

            E à medida que se sucedem os doentes desencarnados, os técnicos espirituais presentes cercam o dirigente encarnado dos trabalhos de toda atenção e cuidado, a fim de que, por descuido, invigilância ou perturbação, não ponha a perder tão elaborado processo de planejamento.

            Num grupo que frequentamos, um dos médiuns viu, em retrospecto, tarde da noite, depois de recolhido ao leito, todo o trabalho de preparação da sessão. Duas figuras espirituais veneráveis circularam pelos móveis já posicionados e manipularam dispositivos especiais que eles ligavam às cadeiras dos médiuns e demais assistentes. Mais tarde, foi revista a cena da nossa chegada ao recinto do trabalho, que ficara isolado, mergulhado na penumbra durante cerca de uma hora antes do início da sessão. Ao tomarmos as posições em torno da mesa, todos foram ligados àqueles dispositivos, sendo que a pessoa incumbida do trabalho de dialogar com os Espíritos recebeu tais conexões na cabeça, partindo os fios fluídicos na direção do alto.

            Convém assinalar logo, porém, que a pessoa que dirige a palavra aos seres desencarnados não se coloca em posição destacada e superior, como sumo-sacerdote de um novo culto. No grupo mediúnico equilibrado todos são importantes e ninguém é importante. Paulo de Tarso já sabia disso, há mais de mil e novecentos anos[1]. Para que o grupo funcione bem, todas as peças devem estar ajustadas como as de um relógio, no qual a falha de um parafuso aparentemente sem importância perturba ou impede o funcionamento do mecanismo todo. O chamado “doutrinador” poderia, talvez, ser comparado aos ponteiros que indicam, pela sua palavra, o andamento do trabalho, no desenrolar do diálogo; mas, que seria dele sem a corda que impulsiona a máquina, sem as engrenagens que transmitem o movimento ou o mostrador que lhe diz onde se encontra na face do relógio? Não podemos esquecer, por outro lado, que o doutrinador é também um médium que precisa colocar-se em sintonia com seus amigos espirituais mais esclarecidos, a fim de que possa desempenhar-se a contento de suas tarefas. Nada o credencia como um elemento à parte no grupo, com poderes especiais, portador de virtudes excepcionais.

            Numa conversa reproduzida por André Luiz, em “Missionários da Luz”[2], diz o instrutor Alexandre, falando sobre os doutrinadores:          

            - “Ajudando entidades em desequilíbrio, ajudarão a si mesmos; doutrinando, acabarão igualmente doutrinados.”

            Esse pensamento poderá servir de ponto de partida e apoio para algumas meditações em torno do problema, ainda pouco explorado, do papel do doutrinador.






[1] I Cor., cap. 12:13 e 14.

[2] Pág.280 da 8ª edição da FEB.

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