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O Último Auto-de-Fé
O Último Auto-de-Fé
por Zêus Wantuil
in ‘Reformador’ (FEB) Outubro 1976
9 de outubro de 1861!: A esplanada da Cidadela de Barcelona, de triste memória, verdadeira cópia da Bastilha de Paris, erguida no mais florescente bairro da cidade, o de La Ribera, já pela manhã o povo afluía para assistir ao auto-de-fé das publicações espíritas incriminadas pela Igreja. Essa odiosa, Cidadela espanhola, de forma pentagonal, com cinco baluartes e rodeada de fossos sobre os quais se lançavam pontes levadiças, fora, mandada construir pelo rei Filipe V, em, 1716, no terreno ocupado por 1262 casas, cuja demolição ele ordenara, após a sua entrada triunfal na cidade semidestruída.
Na imensa fortaleza, que pelos tempos a fora sufocara nas prisões de sua famosa Torre de Santa Clara, ou suprimira pelo cutelo e pela forca, os gritos de liberdade de milhares de barcelonenses, ia ser coroada a obra nefasta ta de Filipe V.
O efeito que tal acontecimento produzia nos assistentes era de estupefação em uns, de riso em outros e de indignação entre o maior número. As palavras de aversão àquele ato arbitrário, partidas de mais de uma boca, misturavam-se as zombarias e os ditos chistosos e mordazes dos que apenas queriam divertir-se.
De acordo com a descrição que Allan Kardec recebeu de Barcelona, a inquisitorial cerimônia se efetuou com toda a solenidade do ritual do Santo Ofício, às 1Oh30m, justamente no local onde eram executados os criminosos condenados à pena de morte.
Trezentos volumes espíritas substituíam os "hereges" que a Igreja já agora não podia queimar vivos, "hereges" que, no passado, "perfumavam a atmosfera com os aromas dos ossos torrados". Empilhavam-se, silenciosas e impassíveis, as seguintes publicações francesas: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O que ó o Espiritismo, todas de Allan Kardec: coleções da Revue Spirite, dirigida e editada por Allan Kardec, e da Revue Spiritualiste, redigida por Piérard; Fragmento de sonata, ditado pelo Espírito de Mozart ao médium Sr. Brion Dorgeval; Carta de um católico sobre o Espiritismo, pelo Dr. Grand, antigo vice-cônsul de França; História de Joana d' Arc, ditada por ela mesma à Srta. Ermance Dufaux, de 14 anos de idade; e, por fim, A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta, do Barão de Guldenstubbé.
Presidiu àquele espetáculo de fanatismo um padre revestido dos trajes sacerdotais próprios para o ato, tendo numa das mãos uma cruz, e na outra uma tocha.
Acompanhavam-no um notário, encarregado. de redigir a ata do auto-de-fé; o ajudante do notário; um funcionário superior da administração aduaneira; três serventes (mozos) da Alfândega, incumbidos de atiçar o fogo; e um agente da Alfândega representando o proprietário das publicações que o bispo condenara ao batismo do fogo.
A grande multidão, que atravancava os passeios e enchia a vasta esplanada onde se levantara a pira ardente, assistia, espantada, àquele ridículo processo que o século não mais comportava, e, quando o fogo acabara de consumir os trezentos volumes, e o padre, com seus auxiliares, se ia retirando, essa mesma multidão cobriu-os com assuadas e imprecações, aos gritos de “- Abaixo a Inquisição!"
Um certo Capitão Lagier, comandante do grande vapor EI Monarca, teve a oportunidade de presenciar aquele auto-de-fé, e conta ele que, ao ver muitas pessoas se acercarem da fogueira extinta e recolherem parte das cinzas e algumas rolhas não inteiramente destruídas, com o objetivo de conservá-Ias como testemunho da violência clerical, não pôde conter-se e exclamou em alta voz:' "Eu vos trarei, na próxima viagem de Marselha, todos os livros que quiserdes." E dessa forma, através dos navios que frequentemente aportavam em Marselha, muitos exemplares das obras de Kardec entraram na Espanha, vendidos ou distribuídos gratuitamente pelos comandantes e subordinados.
Kardec disse ter recebido um punhado daquelas cinzas históricas, nas quais ainda se via um fragmento de O Livro dos espírltos, havendo sido ainda presenteado com uma aquarela, feita In loco por um distinto artista, representando a cena do auto-de-fé. As cimas e os restos de folhas queimadas, ele as conservou numa uma de cristal, que foi destruída pelos nazistas na Segunda Grande Guerra.
Com a gravidade, a clareza e a concisão que lhe eram peculiares, o insigne Codificador do Espiritismo escreveu, na Revue Spirite, de 1861, admirável artigo o propósito desse auto-de-fé, mui sensatamente ponderando:
“Se examinarmos este processo sob o ponto de vista de suas consequências, desde logo vemos que todos são unânimes em dizer que nada podia ter sido mais útil para o Espiritismo. A perseguição foi sempre vantajosa à ideia que se quis proscrever; por esse meio exalta-se a importância da ideia, chama-se a atenção para ela, e faz-se que seja conhecida daqueles que ignoravam. Graças a esse zelo imprudente, todos na Espanha ouvirão falar do Espiritismo e quererão saber o que ele é, e isto é o que desejamos.
"Podem queimar livros, mas não se queimam ideias; as chamas das fogueiras as superexcitam, em vez de extingui-las. Ademais, as ideias estão no ar, e não há Pirineus bastante elevados para detê-las; e quando e grande e generosa uma ideia, encontra milhares de corações dispostos a almejá-la. Façam o que quiserem, o Espiritismo já possui numerosas e profundas raízes na Espanha; as cinzas dessa fogueira as multiplicarão. Não é só na Espanha, porém, que se obterá esse resultado: os efeitos da repercussão do fato o mundo inteiro os sentirá.”
Concluindo, o mestre lionês proclamou:
“Espíritas de todos os países não olvideis esta data de 9 de outubro de 1861. ela ficará memorável nos fastos do Espiritismo, e que seja para vós um dia de festa, não de luto, porque constitui o penhor de vosso próximo triunfo”.
continua
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