sexta-feira, 5 de agosto de 2011

'A Divina Epopeia'


“A Divina Epopéia de João Evangelista”
por  F. L. Bittencout Sampaio
(4ª Ed. FEB 1988)

ADVERTÊNCIA

     O desejo de inocular no espírito e coração de meus filhinhos as santas palavras do Divino Mestre e mostrar-lhes que não se vive tão somente do pão material levou-me nos dias santificados ao estudo dos Evangelhos, escrevendo ora o próprio texto em linguagem ao alcance de todos, ora traduzindo em verso o que mais me parecia adaptar-se à índole e ao ritmo do nosso endecasílabo.

     Desse grupo de estudo, no recolhimento e meditação do gabinete, surgiu a idéia de trasladar para versos heróicos o quarto Evangelho, que foi sempre o da minha particular predileção.

     E, na verdade, nenhum livro conheço mais divinamente inspirado, tanto sob o ponto de vista da estética – claro, límpido, enérgico e imaginoso – como pelo perfume oriental que se desprende de cada uma de suas frases e conceitos, retratando ao vivo a majestosa figura daquele que soube gravar no coração dos séculos as verdades que semeara no Gólgota com o sangue derramado do alto da sua cruz.

     O quarto Evangelho, por ser o último, não deixa contudo de ser o primeiro.

     É o último, porque apareceu muitos anos depois dos três primeiros, escritos por S. Mateus, S. Marcos e S. Lucas; é ainda o último, porque nele se narram fatos e circunstâncias que escaparam nos antecedentes. Mas, é ao mesmo tempo o primeiro, porque o apóstolo Evangelista, o discípulo amado, apresenta em toda a sua evidência a origem e a natureza espirituais de Jesus, enquanto que os outros se ocupam mais da moral ensinada no Templo e nas Sinagogas da Palestina, do que da pessoa do loiro Rabi, o jovem profeta de Nazaré.

     A autenticidade do Evangelho segundo S. João, que alguns racionalistas pretendem contestar, encontra a sua prova na confrontação dos fatos narrados pelos três primeiros Evangelistas e na tradição permanente da Igreja, firmada no manuscrito em grego, que até ao século sétimo se achava em Éfeso, onde, debaixo do império de Trajano, faleceu o Evangelista, contando mais de cem anos de uma existência imensamente proveitosa para a humanidade.

     Sabe-se ainda que o apóstolo João, filho de Zebedeu e de Salomé e irmão de Santiago-Maior, ditou o seu Evangelho a instâncias dos bispos da Ásia, não só para refutar a propaganda herética de Ebion e Cerinto, que buscavam negar a divindade de Jesus, apresentando-o com simples mortal, filho primogênito de Maria, esposa de José; como também para suprir algumas outras coisas que os três primeiros Evangelistas deixaram de consignar em seus livros, escritos em épocas e lugares diferentes, sem comunicação alguma entre si.

     O Evangelho segundo S. João é, para assim dizer, o complemento dos  três sinóticos acima apontados; isoladamente, porém é uma verdadeira epopéia, que, pela sua inspiração e linguagem, moldadas às necessidades de todos os tempos, eleva o nosso espírito ao Ente Supremo, mostrando-nos pela doçura e pureza de sua moral o caminho almejado do reino de Deus.

     O estudo calmo e refletido desta parte do grande poema messiânico abre à inteligência do pensador filósofo um horizonte tão cheio de luz, que não se pode deixar de confessar que o jovem Mestre Galileno fôra o verdadeiro Messias, o Cristo Senhor Nosso, anunciado e esperado na terra, segundo as profecias hebraicas reveladas no Antigo Testamento.

     A tela imensa que se desenrola aos olhos do leitor como que abrange o infinito! 
Desaparece totalmente nela o profeta de Nazaré, o filho primogênito de Maria Virgem, e surge em todo o seu resplendor o Verbo eloquente e divino, atirando ondas sonoras de luz sobre as cabeças curvadas das multidões, que o cercavam e ouviam, assombradas de tanta eloqüência e maravilha.

     Não se fez mal em chamar ao Evangelho segundo S. João “A Divina Epopéia”.

     Os críticos literatos talvez tenham razão de censurar-me por isto e os padres da Igreja enxerguem uma profanação onde não há senão amor às letras sagradas. Em todo caso, incorrerei na censura; mas, fica-me a satisfação intima das horas que passei lendo, relendo, anotando e comentando o maior livro que até hoje se tem publicado sobre o Homem-deus do nosso planeta.

     Se epopéia quer dizer poema épico, nenhum nome se adapta melhor à obra que o Evangelista produziu nos últimos anos de sua gloriosa existência.

     Inspirado sempre pelo Espírito da Verdade, como todo apóstolo de Jesus, ele ditou a seus discípulos em Éfeso a boa nova ensinada pelo Divino Mestre; cantou as glórias do Altíssimo e mostrou-nos aquele que foi escolhido pelo Pai para servir em holocausto aos filhos degenerados deste planeta, que, esquecidos da sua origem primitiva, da pureza de seu ser, viviam nas trevas do erro e da ignorância, donde só poderiam levantar-se pela graça do exemplo que trouxe ao mundo o Cordeiro imaculado de Deus.

     A redenção da humanidade não é matéria para uma verdadeira epopéia? O seu assunto histórico – os inúmeros episódios da vida toda misteriosa de Jesus, suas palavras sempre ungidas de amor e de perdão, seus atos, chamados milagres, seu julgamento, seus martírios, sua morte na cruz, sua ressurreição, e, finalmente, sua ascensão às regiões sidéreas – não bastam para inspirar um poema e este não será uma epopéia divina?

     Onde encontrar mais nobre, mais digno e mais santo empenho para a poesia, filha dileta de Deus, irmã-gêmea do espírito que não morre? Nas misérias do mundo? Não. Riam-se embora os positivistas do século, porque para eles não pode haver o que se chama poesia: tudo para eles é matéria; o pensamento mesmo não passa de um jogo de órgãos mais ou menos desenvolvidos, conforme a maior ou menor quantidade de massa fosfórica que se encontra no cérebro!

     Mas aqueles que sabem, porque o sentem, que nem tudo o que existe em nós é sujeito à lei da morte, respondam, depois que tiverem lido este livro, se já encontraram mais alma, mais sentimento, mais elevação nas epopeia que até hoje se têm escrito e que passam como monumentos dignos da admiração dos séculos: respondam se jamais poeta algum soube remontar nos vôos ardentes de sua imaginação aos páramos do infinito, como o Vidente do Apocalipse em procura dessa luz inaccessível, onde Deus se esconde aos olhos dos homens.

     O Evangelista não se preocupa com o mostrar qual o fim que teve em vista, cantando um assunto tão cheio de revelações para a humanidade:  o livro recomenda-se por si mesmo e dispensa o autor de justificar as suas intenções. Não invoca, porque a sua musa é ele próprio; seu gênio – o espírito da verdade. Abre o poema com o Verbo e é bastante; o lugar da ação – a terra e o céu. Deus e o homem, o erro e a verdade, a matéria e o espírito, a vida e a morte são os temas que encontram, se contrastam desde o começo até ao fim da epopeia.

     Sempre elevada e concisa, como convinha ao assunto, sua linguagem não se assemelha à de nenhum dos três Evangelistas sinóticos. A doçura da língua grega, em que foi escrito o poema, recebeu da hebraica a precisão dos termos e tornou os versos tão perfeitos e tão harmoniosos, que é impossível imaginar-se outra forma para o pensamento, outra vestidura para a ideia.

     A par da concisão e elevação da frase, notam-se, porém, certas repetições de palavras que parecem lançadas de propósito, para quebrar o ardor e a valentia do ritmo, dando-lhe um tom móbil e sentimental, como a natureza dessas regiões do Oriente, abrasadora e suave ao mesmo tempo.

     Fosse devido a carecer de adjetivos a língua hebraica, o que não acontece às línguas modernas – embora o Evangelista exprimisse em grego o seu pensamento – fosse devido ao caráter do inspirado apóstolo, o mais inocente dos discípulos de Jesus, o certo é que a simplicidade do discurso e a narrativa do poema tomam proporções colossais, ao passo que os seus qualificativos são de uma sobriedade verdadeiramente espantosa. Dir-se-ia que a ideia, partindo do firmamento, vazara sua luz no cérebro do poeta, donde viera, sem mescla de humana forma, concretar-se em caracteres de diamante nas páginas de oiro do seu livro imortal.

     Ainda mesmo quando não se queira admitir que o Evangelho segundo S. João seja uma verdadeira epopeia, basta nos lembremos de que até hoje poeta algum jamais pode imitar aquela poesia tão cheia de verdade e tão repassada de amor celestial, como o objetivo de seus cantos, o Divino Herói da redenção do gênero humano. A lei do progresso é infinitamente vária, mutável, natural e divina; mas, a lei do amor ensinada por Jesus e reproduzida nos versos do Evangelista, podem passar os séculos, ficará sempre a mesma, sempre invariável e imutável, como a virtude dos anjos, por toda a eternidade.

     A poesia hebraica era incontestavelmente uma mistura de lirismo, de história, de filosofia e de heroísmo, predominando em tudo a idéia de um Ente Supremo, o Deus criador de todas as coisas. Não tinha regras de arte, mas só preceitos de moral; fugia das lendas para não cair na inverosimilhança e na mentira. Era a expressão da verdade, a mais elevada manifestação do espírito, traduzida em hinos sagrados de temor e respeito, de amor e de gratidão ao Senhor Deus de Israel, ao só e único Deus, para quem são todas as honras, todas as glórias imortais.

     O Evangelista apóstolo do amor foi o maior poeta da antiguidade depois de Job, de Salomão e David. Não divorciado completamente do hebraísmo religioso, a sua poesia tornou-se um embalsamamento do espírito, rescendendo os perfumes do nardo, do aloés e da mirra, debaixo do sol vermelho da Palestina, onde o rio Jordão, a deslizar tranquilo e majestoso, guarda em seu seio as máculas do pecado, enquanto as oliveiras do monte suspiram carmes de dor e de agonia, relembrando a injustiça e a ingratidão dos homens para com o doce Jesus, o Messias de Deus.

     A cena misteriosa da concepção e gravidez da Virgem, o idílio pastoril do nascimento do menino Deus, a fugida da sacra família para as terras do Egito, a infância de Jesus crescendo em graça e sabedoria diante do Senhor até aos doze anos, quando foi visto no Templo a disputar com os doutores da Lei, o imenso cortejo de prodígios que precedeu e acompanhou a vinda do Messias, nada de tudo isso inspirou ao discípulo amado uma palavra sequer de homenagem à tradição ainda viva e palpitante da época em que ele anunciava a boa nova aos povos do continente asiático.

     A luz que derramava Jesus em torno de seus discípulos era intensa demais, para que o apóstolo do amor pudesse refletir sobre todas aquelas circunstâncias, que desapareciam aos raios esplendorosos do Verbo de Deus. O Evangelista fala do que viu com seus olhos e apalpou com suas mãos, do que ouviu com seus ouvidos e guardou no seu coração; tinha a Jesus como o verdadeiro Messias e na crença desta verdade entoou a sua Divina Epopeia.

     Não abusarei da benevolência do leitor. A crítica sensata que aplique as regras da estética ao poema e encontrará nele o belo e o sublime, envoltos no manto da suprema verdade. Os padres da Igreja, quero dizer, os intolerantes da fé, que perscrutem as minhas intenções e me absolvam, dando assim um exemplo de amor e caridade, como verdadeiros discípulos de Jesus.

     Trasladando para os versos heróicos o Evangelho segundo S. João, não tive outro fim senão o de elevar a Deus o meu espírito, pedindo ao Vidente do Apocalipse as asas de sua águia de Patmos para remontar num vôo aos pés da Divindade.

     Chamando-lhe Divina Epopéia, chamei também de Cantos aos seus capítulos e juntei a cada um deles o argumento das matérias aí contidas para maior facilidade e compreensão do assunto – servindo-me na construção dos versos das mesmas palavras do seu inspirado autor.

     A Introdução, que vai à frente do poema, escrevi-a com o pensamento do próprio Evangelista, que foi o anjo evocado para semelhante propósito. Se fiz mal, Deus me perdoará, porque é ele o único juiz de nossas consciências.

     As notas que completam o presente volume não são originais do meu próprio espírito, são trasladações livres das verdades ensinadas pelos órgãos da evangelização cristã, os felizes predestinados do reino de Deus, que receberam a sagrada missão de preparar o caminho do Senhor, retirando os cardos e as urzes do leito da estrada que nos conduz à bem aventurança eterna.

     Humilde instrumento dos decretos da Divina Providencia, não fiz mais que reunir ao poema de João Evangelista estas verdades que aí vão, sem pretensão a comentários exegéticos. Não almejo glórias, nem aspiro a louvores que me coloquem no número dos escritores sagrados: na obscuridade nasci, na obscuridade tenho vivido e nela pretendo concluir esta medonha viagem a que chamam vida, mas a que eu chamarei encarceramento do espírito, ou sepulcro de carne, servindo-me da expressão de Jesus.

     Àqueles que me censurarem pela ousadia da publicação deste livro, simplesmente direi:

 - Reservem para si as glórias do mundo e deixem-me fazer a minha oração pelo modo e forma que mais me apraz, tributando de público o meu óbulo de gratidão ao único Senhor da verdadeira glória.
Bittencout Sampaio


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