domingo, 28 de agosto de 2011

08-09 / 09 Textos do Centenário



Mme Allan Kardec

                                                                                                   
por    A. Wantuil de Freitas
in Reformador (FEB) 1957

     Quem escreve estas linhas tem uma experiência conjugal de quase quarenta anos, e, por isso mesmo, não desconhece o alto valor, a importância deveras primordial, de uma esposa -companheira que partilhe compreensiva, o ideal do marido, ajudando-o de mil modos, confortando-o, estimulando-o nas horas difíceis e amargas por que sempre passam todos os sinceros idealistas e até mesmo os missionários que à Terra vêm com a finalidade de executar um plano já traçado nas Esferas Superiores.

     AMÉLIE BOUDET (Madame Allan Kardec), cujo retrato em policromia publicamos na capa desta revista, foi uma dessas mulheres-modelo. Inseparável do esposo viveu-lhe incessantemente a obra, esqueceu-se de si mesma para se consagrar aos elevados ideais que ele nutria, e que passaram a ser os seus. Não sabemos quantas vezes ela chorou às ocultas, em prece silenciosa, quando sua palavra de carinho e de reconforto não conseguia desanuviar a tristeza angustiosa que  às vezes envolvia o espírito de Allan Kardec.

     Primeiramente no trabalho educacional de um povo, e, depois, no de toda a Humanidade, através dos ensinos dados pelos Espíritos, ensinos esclarecedores de uma infinidade de problemas até então indecifráveis. – em todas as ocasiões Amélie Boudet foi sempre o braço direito do esposo, vencendo, juntos, galhardamente, os obstáculos e entraves naturais da vida entre os humanos.

     E quando o  imortal Kardec partiu, retornando à Pátria Espiritual, foi ela, essa mulher notável, quem consolidou a obra do Espiritismo, propagando-a por todos os meios, não permitindo fosse esquecida e esmorecesse, e para tamanho empreendimento não mediu sacrifícios, suportando, ainda, com serenidade e coragem, as invectivas injuriosas da parentela e do clero, tão intimamente ligada estava ao ideal do insigne Codificador da Terceira Revelação.

     É assim que prestando a este último a nossa homenagem, pelo transcurso do 1º Centenário d’O Livro dos Espíritos, cabe-nos igualmente homenagear Amélie Boudet, a alma gêmea de Kardec, e que durante trinta e sete anos foi um exemplo dignificante de verdadeira esposa e companheira.

*

     Madame Rivail (Allan Kardec) nasceu em Thiais, cidade do menor e mais populoso Departamento francês – o Sena, aos 2 do Frimário do ano IV, segundo o Calendário Republicano então vigente na França, e que corresponde a 23 de Novembro de 1795.

     Filha de Julien-Louis Boudet, proprietário e antigo tabelião, homem, portanto bem colocado na vida, e de Julie-Louise Seigneat de Lacombe, recebeu na pia batismal o nome de Amélie-Gabrielle Boudet.

     A menina Amélie, filha única, aliando desde cedo grande vivacidade a forte interesse pelos estudos, não foi um problema para os pais, que, a par de fina educação moral, lhe proporcionaram apurados dotes intelectuais.

     Após cursar o colégio primário, estabeleceu-se em Paris com a família, ingressando numa escola Normal, de onde saiu diplomada em professora de 1ª classe.

     Revela-nos o Dr. Canuto Abreu (1) que a senhorinha Amélie também foi professora de Letras e Belas Artes, trazendo de encarnações passadas a tendência inata, por assim dizer, para a poesia e o desenho. Culta e inteligente, chegou a dar à luz três obras, assim nomeadas: “Contos Primaveris”, 1825; “Noções de Desenho”, 1826; “O Essencial em Belas Artes”, 1828.

     Vivendo em Paris, no mundo das letras e do ensino, quis o Destino que um dia Srta. Amélie Boudet deparasse com o Prof. Hippolyte Léon Denizard Rivail.

____________

(1)          “O Livro dos Espíritos e sua tradição histórica e lendária”, in “Unificação”, Fevereiro de 1954.

     De estatura baixa, mas bem proporcionada, de olhos pardos e serenos, gentil e graciosa, vivaz nos gestos e na palavra, denunciando inteligência admirável. Amélie Boudet, aliando ainda a todos esses predicados um sorriso terno e bondoso, logo se fez notar pelo circunspecto Prof. Rivail, em quem reconheceu de imediato, um homem verdadeiramente superior, culto, polido e reto.

     “Os laços matrimoniais – declarou inspiradamente o poeta italiano Metastásio – se formam no Céu. “Rivail e Amélie eram duas almas afins que vieram com o propósito de na Terra se consorciarem e ampararem mutuamente. Entreolharam-se... Reacendeu entre os dois o amor, aquele verdadeiro amor que os unia de encarnações pretéritas... Afinal, em 6 de Fevereiro  de 1832,  firmava-se o contrato de casamento. Amélie Boudet tinha nove anos mais que o Prof. Rivail, mas tal era a sua jovialidade física e espiritual, que a olhos vistos aparentava a mesma idade do marido. Jamais essa diferença constituiu entrave à felicidade de ambos.

     Pouco tempo depois de concluir seus estudos com Pestalozzi, no famoso castelo suíço de Loehringen (Yverdon), o Prof. Rivail fundara em Paris um Instituto Técnico, com orientação baseada nos métodos pestalozzianos. Madame Rivail associou-se ao esposo na afanosa tarefa educacional que ele vinha desempenhando no referido Instituto Haia mais de um lustro.

     Grandemente louvável era essa iniciativa humana e patriótica do Prof. Rivail, pois, não obstante as leis sucessivas decretadas após a Revolução Francesa em prol do ensino, a instrução pública vivia descurada do Governo, tanto que só em 1833, pela lei Guizot, é  que oficial e definitivamente ficaria estabelecido o ensino primário na França.

     Em 1835, o casal sofreu um grande revés. Aquele estabelecimento de ensino foi obrigado a cerrar suas portas e a entrar em liquidação, e a quantia que coube a Rivail, confiada a um amigo de sua intimidade, jamais lhe retornou às mãos.

     Possuindo, porém esposa altamente compreensiva, resignada e corajosa, fácil lhe foi sobrepor-se a esses infaustos acontecimentos. Amparando-se mutuamente, ambos se lançaram a maiores trabalhos. Durante o dia, enquanto Rivail se encarregava da contabilidade de três casas comerciais, sua esposa colaborava de alguma forma na preparação dos cursos gratuitos que haviam organizado na própria residência, e que funcionaram de 1835 a 1840.

     À noite, novamente juntos, não se davam a descanso justo e merecido, mas improdutivo. O problema da instrução às crianças e aos jovens tornara-se para o Prof. Rivail, como o fora para seu mestre Pestalozzi, sempre digno da maior atenção. Por isso, até mesmo as horas da noite ele as dividia para diferentes misteres relacionados com aquele problema, recebendo em todos a cooperação talentosa e espontânea de sua esposa. Além de escrever novas obras de ensino, que, aliás, tiveram grande  aceitação o Prof..Rivail realizava traduções de obras clássicas, preparava os cursos de Lévi-Alvarés (2), frequentados por toda a juventude parisiense do bairro (Faubourg) de São Germano, e se dedicava ainda, em dias certos da semana, juntamente com sua esposa, a professorar as matérias estatuídas para os já referidos cursos gratuitos.

     “Aquele que encontrar uma mulher boa, encontrará o bem e achara gozo no Senhor” – disse Salomão. Amélie Boudet era dessas mulheres boas, nobres e puras, e que, despojadas das vaidades mundanas, descobrem no matrimônio missões nobilitantes a serem desempenhadas.

     Nos cursos públicos de Matemáticas e Astronomia que o Prof. Rivail bissemanalmente lecionou, de 1843 a 1848 (3), e nos quais assistiram não só alunos, que também professores no “Liceu Polimático” que fundou e dirigiu até 1850, não faltou em tempo algum o auxílio  eficiente e constante de sua dedicada esposa.

     Todas essas realizações e outras mais, a bem do povo, se originaram das palestras costumeiras entre os dois cônjuges, mas, como salientou a Condessa de Ségur, deve-se principalmente à mulher as inspirações que os homens concretizam. No que toca à Madame Rivail, acreditamos que em muitas ocasiões, além de conselheira, foi ela a inspiradora de vários projetos que o marido pôs em execução. Aliás, é o que nos confirma o Sr. P. G. Leymarie  (que com ambos privara) ao declarar que Kardec tinha em grande consideração as opiniões de sua esposa.

     Graças principalmente às obras pedagógicas do Prof. Rivail, adotadas pela própria Universidade de França, e que tiveram sucessivas edições, ele a senhora alcançaram uma posição financeira satisfatória.


(2)       Lévi-Alvarés (David-Eugène), ilustre professor e escritor pedagógico, nascido de pais israelitas em 1794, foi grande amigo do prof. Rivail, e das obras deste duas foram escritas coma a colaboração dele.

            Ainda bem jovem, Lévi-Alvarés criou cursos para elevar o nível de instrução das moças, seguindo um método que depois tomou o seu próprio nome. Em 1825 fundou, em Paris, um curso de educação maternal, que alcançou êxito e fama. Com o Sr. Lourmand, também instituiu, no Hotel-de-Ville, um curso normal para professoras. Escreveu vários livros, e tanto o seu filho quanto um sobrinho continuaram abnegadamente a sua obra. (G. Vapereau, “Dictionnaire Universel des Contemporains”.

(3)       Revue Spirite, n. 10 de 1904, pág. 579.

      O nome Denizard Rivail tornou-se conhecido nos meios cultos e além do mais bastante respeitado. Estava aberto para ele o caminho da riqueza e da glória, no terreno da Pedagogia. Sobrar-lhe-ia, agora, mais tempo para dedicar-se à esposa, que na sua humildade e elevação de espírito jamais reclamara coisa alguma.

     A ambos, porém, estava reservada uma missão, grandiosa pela sua importância universal, mas plena de exaustivos trabalhos e dolorosos espinhos.

     O primeiro toque de chamada verificou-se em 1854, quando o Prof. Rivail foi atraído para os curiosos fenômenos das “mesas girantes”, então em voga no Mundo todo. Outros convites do Além se seguiram, e vemos, em meados de 1855, na casa da Família Baudin, o Prof. Rivail iniciar os seus primeiros estudos sérios sobre os citados fenômenos, entrevendo, ali, a chave do problema que durante milênios viveu na obscuridade.

     Acompanhando o esposo nessas investigações, era de se ver a alegria emotiva com que ela tomava conhecimento dos fatos que descerravam para Humanidade novos horizontes de felicidade.

     Após observações e experiências inúmeras, o Prof. Rivail pôs mãos à maravilhosa obra da Codificação, e é ainda de sua cara consorte, então com 60 anos, que ele recebe todo o apoio moral nesse cometimento. Tornou-se ela verdadeira secretária do esposo, secundando-o nos novos e bem mais árduos trabalhos que agora lhes tomavam todo o tempo, estimulando-o, incentivando-o no cumprimento de sua missão.

     Sem dúvida, os espíritas muito devemos a Amélie Boudet e estamos de acordo com o que acertadamente escreveu Samuel Smiles: os supremos atos da mulher geralmente permanecem ignorados, não saem à luz da admiração do mundo, porque são feitos na vida privada, longe dos olhos do público, pelo único amor do bem.

     O nome de Madame Rivail enfileira-se assim, com muita justiça, entre os de inúmeras mulheres que a História registrou como dedicadas a fiéis colaboradoras dos seus esposos, sem as quais talvez eles não levassem a termo as suas missões. Tais foram, por exemplo, as valorosas esposas de Lavoisier, de Buckland, de Flaxman, de Huber, de Sir William Hamilton, de Stuart Mill, de Faraday, de Tom Hood, de Sir Napier, de Pestalozzi, de Lutero, e de tantos e tantos outros homens de gênio. A todas essas Grandes Mulheres, além daquelas muitas esquecidas pela História, a Humanidade é devedora eterna!

     Lançado o Livro dos Espíritos, da lavra de Allan Kardec, pseudônimo que tomou o Prof. Rivail, este, meses depois, a 1º de Janeiro de 1858, com o apoio tão somente de sua esposa, deu a lume o primeiro número da Revue Spirite, periódico que no próximo ano completará um século de existência grandemente benéfica para o Espiritismo.

     Havia cerca de seis meses que, na residência do casal Rivail, então situada à rua dos Mártires, nº 8, se efetuavam sessões bastante concorridas, exigindo da parte de Madame Rivail uma série de cuidados e atenções, que por vezes a deixavam extenuada. O local chegou a se tornar apertado para o elevado número de pessoas que ali compareciam, de sorte que, em Abril de 1858, Allan Kardec fundava, fora do seu lar, a “Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas”. Mas uma obra de grave responsabilidade!

     Tomar tais iniciativas naquela recuada época, em que o despotismo clerical ainda constituía uma força, não era tarefa para muitos. Havia necessidade de larga dose de devotamento, firmeza de vistas e verdadeiro espírito de sacrifício.

     Ao casal Rivail é que coube, apesar de todos os escolhos e perigos que se lhe deparariam em a nova estrada, empreender, com a assistência e proteção do Alto, a maior revolução de idéias de que se teve notícia  nos meados do século XIX.

     Allan Kardec foi alvo do ódio, da injúria, da calúnia, da inveja, do ciúme e do despeito de inimigos gratuitos, que a todo custo queriam conservar a luz sob o alqueire.

     Intrigas, traições, insultos, ingratidões, tudo de mal cercou o ilustro reformador, mas em todos os momentos de provas e dificuldades sempre encontrou, no terno afeto de sua nobre esposa, amparo e consolação, confirmando-se  essas palavras de Simalen: “A mulher é a estrela de bonança nos temporais da vida.”

     Com vasta correspondência epistolar, proveniente da França e de vários outros países, não fosse a ajuda de sua esposa nesse setor, sem dúvida, não sobraria tempo para Allan Kardec se dedicar ao preparo dos livros da Codificação e de sua revista.

     Uma série de viagens (em 1860, 1861, 1862, 1864, etc.) realizou Kardec, percorrendo mais de  vinte cidades francesas, além de várias outras da Suíça e da Bélgica, em todas semeando as ideias espíritas.

     Sua veneranda consorte, sempre que suas forças lhe permitiram, acompanhou-o em muitas dessas viagens, cujas despesas, cumpre informar, corriam por conta do próprio casal.

     Parafraseando o escritor Carlyle, poder-se-ia dizer que Madame Allan Kardec, pelo espaço de quase quarenta anos, foi a companheira amante e fiel do seu marido, e com seus atos e suas palavras sempre o ajudou em tudo quanto ele empreendeu de digno e de bom.

     Aos 31 de Março de 1869, com 65 anos de idade, desencarnava, subitamente, Allan Kardec, quando ultimava os preparativos para a mudança de residência.

     Foi uma perda irreparável para o mundo espiritista, lançando em consternação a todos quantos o amaram. Madame Allan Kardec, que partilhara com admirável resignação as desilusões e os infortúnios do esposo, agora, com os cabelos nevados pelos seus 74 anos e a alma sublimada pelos ensinos dos Espíritos do Senhor, suportaria qualquer realidade mais dura. Ante a partida do querido companheiro para a Espiritualidade, portou-se como verdadeira espírita, cheia de fé e estoicismo, conquanto, como é natural, abalada no profundo do ser.

     No cemitério de Montmartre, onde, com simplicidade, aos 2 de Abril, se realizou o sepultamento dos despojos do mestre, comparecia uma multidão de mais de mil pessoas. Discursaram diversos oradores, discípulos dedicados de Kardec, e por último o Sr. E. Muller, que logo no princípio do seu elogio fúnebre ao querido extinto assim se expressou: “Falo em nome de sua viúva, da que lhe foi companheira fiel e ditosa durante trinta e sete anos de felicidade sem nuvens nem desgostos, daquela que lhe compartiu as crenças e os trabalhos, as vicissitudes e as alegrias, e que se orgulhava da pureza dos costumes, da honestidade absoluta e do desinteresse sublime do esposo. Hoje, sozinha, é ela quem nos dá a todos o exemplo de coragem, de tolerância, do perdão das injúrias e do dever escrupulosamente cumprido.”

     Madame Allan Kardec recebeu da França e do estrangeiro numerosas e efusivas manifestações de simpatia e encorajamento, o que lhe trouxe novas forças para o prosseguimento da obra do seu amado esposo.

     Desejando os espiritistas franceses perpetuar num monumento o seu testemunho de profundo reconhecimento à memória do inesquecível mestre, consultaram nesse sentido a viúva, que, sensibilizada com aqueles desejos humanos mais sinceros, anuiu, encarregando desde logo uma comissão para tomar as necessárias providências. Obedecendo a um desenho do Sr. Sebille, foi então levantado no cemitério do Père-Lachaise um dólmen, constituído de três pedras de granito puro, em posição vertical, sobre as quais se colocou uma quarta pedra, tabular, ligeiramente inclinada, e pesando seis toneladas. No interior desse dólmen, sobre uma coluna também de pedra, fixou-se um busto, em bronze, de Kardec.

     Essa nova morada dos despojos mortais do Codificador foi inaugurada em 31 de Março de 1870, e nessa ocasião o Sr. Levent, vice-presidente da “Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas”, discursou, a pedido de Madame Allan Kardec, em nome dela e dos amigos.

     Cerca de dois meses após o decesso do excelso missionário de Lião, sua esposa, no desejo louvável de contribuir para a realização dos planos futuros que ele tivera em mente, e de cujas obras, revista e Livraria passou a ser a única proprietária legal, houve por bem, no interesse da Doutrina, conceder todos os anos certa verba para uma “Caixa geral do Espiritismo”, cujos fundos seriam aplicados na aquisição de propriedades, a fim de que pudessem ser remediadas quaisquer eventualidades futuras.

     Outras sábias decisões foram por ela tomadas no sentido de salvaguardar a propaganda do Espiritismo, sendo, por isso, bastante apreciado pelos espíritas de todo o Mundo o seu nobre desinteresse e devotamento.

     Apesar de sua avançada idade, Madame Alan Kardec demonstrava um espírito de trabalho fora do comum, fazendo questão de tudo gerir pessoalmente, cuidando de assuntos diversos, que demandariam várias cabeças.

     Além de comparecer a reuniões para as quais era convidada, todos os anos presidia à belíssima sessão em que se comemorava o Dia dos Mortos, e na qual, após vários oradores mostrarem o que em verdade significa a morte à luz do Espiritismo, expressivas comunicações de Espíritos Superiores eram recebidas por diversos médiuns.

     Se Madame Allan Kardec – conforme se lê em Revue Spirite de 1869 – se entregasse ao seu interesse pessoal, deixando que as coisas andassem por si mesmas e sem preocupação de sua parte, ela facilmente poderia assegurar tranquilidade e repouso à sua velhice. Mas, colocando-se num ponto de vista superior, e guiada, além disso, pela certeza de que Allan Kardec com ela contava para prosseguir, no rumo já traçado, a obra moralizadora que lhe foi objeto de toda a solicitude durante os últimos anos de vida. Madame Allan Kardec não hesitou um só instante.

      Profundamente convencida da verdade dos ensinos espíritas, ela buscou garantir a vitalidade do Espiritismo no futuro, e, conforme ela mesma o disse, melhor não saberia aplicar o tempo que ainda lhe restava na terra, antes de reúne se ao esposo.

     Esforçando-se por concretizar os planos expostos por Allan Kardec em Revue Spirite de 1868, ela conseguiu, depois de cuidadosos estudos feitos conjuntamente com alguns dos velhos discípulos de Kardec, fundar a “Sociedade Anônima do Espiritismo”.

     Destinada à vulgarização do Espiritismo por todos os meios permitidos pelas leis, a referida sociedade tinha, contudo, como fito principal, a continuação da Revue Spirite, a publicação das obras de Kardec e bem assim de todos os livros que tratassem de Espiritismo.

     Graças, pois, à visão, ao empenho, ao devotamente sem limites de Madame Allan Kardec, o Espiritismo cresceu a passos de gigante, não só na França, que também no Mundo todo.

     Estafantes eram os afazeres dessa admirável mulher, cuja idade já lhe exigia repouso físico e sossego de espírito. Bem cedo, entretanto, os Céus a socorreram. O Sr. P. G. Leymarie, um dos mais fervorosos discípulos de Kardec desde 1858, médium, homem honesto e trabalhador incansável, assumiu em 1871 a gerência da Revue Spirite e da Livraria, e logo depois, com a renúncia dos companheiros de administração da sociedade anônima, sozinho tomou sob os ombros os pesados encargos da direção. Daí por diante, foi ele o braço direito de Madame Allan Kardec, sempre acatando com respeito às instruções emanadas da venerável anciã, permitindo que ela terminasse seus dias em paz e confiante no progresso contínuo do Espiritismo.

     Parecendo muito comercial, aos olhos de alguns espíritas puritanos, o título dado à Sociedade, Madame Allan Kardec, que também nunca simpatizara com esse título, mas que o aceitara por causa de certa conveniência, resolveu, na assembleia geral de 18 de Outubro e 1873, dar-lhe novo nome: “Sociedade para a continuação das Obras espíritas de Allan Kardec”, satisfazendo com isso a gregos e troianos.

     Muito ainda fez essa extraordinária mulher a prol do Espiritismo e de todos quantos lhe pediam um conselho ou uma palavra de consolo, até que em 21 de Janeiro de 1883, às 5 horas da madrugada, docemente, com rara lucidez de espírito, com aquele mesmo gracioso e meigo sorriso que sempre lhe brincava nos lábios, desatou-se dos últimos laços que a prendiam à matéria.

     A querida velhinha tinha então 87 anos, e nessa idade, contam os que a conheceram, ainda lia sem precisar de óculos e escrevia ao mesmo tempo corretamente e com letra firme.

     Aplicando-lhe as expressões de célebre escritor, pode-se dizer, sem nenhum excesso, que “sua existência inteira foi um poema cheio de coragem, perseverança, caridade e sabedoria”.

     Compreensível, pois, era a consternação que atingiu a família espírita em todos os quadrantes do Globo.

     De acordo com os seus próprios desejos, o enterro de Madame Allan Kardec foi simples e espiriticamente realizado, saindo o féretro de sua residência, na Avenida e Vila Ségur n. 39, para o Pére-Lachaise, a 12 quilômetros de distância.

     Grande multidão, composta de pessoas humildes e de destaque, compareceu em 23 de Janeiro às exéquias junto ao dólmen de Kardec, onde os despojos da velhinha foram inumados e onde todos os anos, até à sua desencarnação, ela compareceu às solenidades de 31 de março.
    
     Na coluna que suporta o busto do Codificador foram depois gravados, à esquerda, esses dizeres em letras maiúsculas: AMÉLIE GABRIELLE BOUDET – VEUVE ALLAN KARDEC – 21 DE NOVEMBRE 1795 – 21 JANVIER 1883. (4)

     No ato do sepultamento falaram os Srs. P. G. Leymarie, em nome de todos os espíritas e da “Sociedade para a continuação das Obras espíritas de Allan Kardec”, Charles Fauvety, ilustre escritor e presidente da “Sociedade Científica de Estudos Psicológicos”, e bem assim representantes de outras Instituições e amigos, como Gabriel Delanne, Cot, Carrier, J. Camille Chaigneau, poeta e escritor, Lecoq, Georges Cochet, Louis Vignon, que dedicou delicados versos à querida extinta, o Sr. Josset e a distinta escritora Sra. Sofia Rosen-Dufaure, todos fazendo sobressair os reais méritos daquela digna sucessora de Kardec. Por fim, com uma prece feita pelo Sr. Warroquier, os presentes se dispersaram e silêncio.

     A nota mais tocante daquelas homenagens póstumas foi dada pelo Sr. Lecoq. Leu ele, para alegria de todos, bela comunicação mediúnica de Antônio de Pádua, recebida naquele mesmo dia, na qual esse iluminado Espírito descrevia a brilhante recepção com que elevados Amigos do Espaço, juntamente com Allan Kardec, acolheram aquele ser bem-aventurado.

     No improviso do Sr. P. G. Leymarie, este relembrou, em traços rápidos, algo da vida operosa da veneranda extinta, da sua nobreza d’alma, afirmando, entre outras coisas, que a publicação tanto d’O Livro dos Espíritos, cujo centenário agora festejamos, quanto da Revue Spirite, se deveu em grande parte à firmeza de ânimo, à insistência, à perseverança de Madame Allan Kardec. (5)

     Não deixando herdeiros diretos, pois que não teve filhos, por testamento fez ela sua legatária universal a “Sociedade para a continuação das Obras espíritas de Allan Kardec”. Embora uma parenta sua, já bem idosa, e os filhos desta intentassem anular essas disposições testamentárias, alegando que ela não estava em perfeito juízo, nada, entretanto, conseguiram, pois as provas em contrário foram esmagadoras.

     Em 26 de Janeiro de 1883, o conceituado médium parisiense Sr. E. Cordurié recebia espontaneamente uma mensagem assinada pelo Espírito de Madame Allan Kardec, logo seguida de outra, da autoria de seu esposo. Singelas na forma, belas nos conceitos, tinham ainda um sopro de imortalidade e comprovavam que a vida continua...

     Recentemente (6), referindo-se à inolvidável companheira do Codificador, o Sr. Hubert Forestier, que há pouco mais de um quarto de século dirige a Revue Spirite, assim se pronunciou: “De igual grandeza de alma, a esposa foi digna do esposo. Ela também prestou relevantes serviços à Causa espírita, à Causa que objetiva elevar o homem acima das torpezas, das vaidades e das misérias.”

(4)       Cometeu-se, como se vê, um engano, ao ser gravado o dia do nascimento, que foi realmente em 23. (Ver Henri Sausse, “Biographie d’Allan Kardec”, 4me. Ed., pág.22).
(5)       “Compte rendu des obsèques de Mme. Allan Kardec”, págs. 2 e 3 in “Revue Spirite”. 1869.
(6)       “La Revue Spiritie”, Maio-Junho de 1954.

     Dessa forma, no momento em que o Mundo comemora o Primeiro Centenário da Codificação, nós, os espiritistas brasileiros, não podíamos deixar de igualmente render ao grande vulto de mulher, que foi Amélie-Gabrielle Boudet, a nossa mais sincera homenagem, plena de respeito, admiração e profundo reconhecimento!



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