terça-feira, 12 de julho de 2011

AH - 'O Exercício da Mediunidade na Igreja Primitiva'


A seguir, apresentamos mais um artigo sobre a Mediunidade na História de nossa civilização. 
Sugerimos 'cruzar' este artigo com a série de postagens sobre Coríntios I assinadas pelo Hermínio Miranda. 
Em tempo: Não identificamos o 'João Marcus' entre os que escreviam para o Reformador à época. Continuamos buscando... 

O Exercício
da Mediunidade
na Igreja Primitiva

João Marcus
Reformador (FEB) pág. 63 - Março 1965

            Vários escritores espíritas têm abordado a questão das práticas mediúnicas no seio da Igreja primitiva, ao tempo do Cristianismo nascente. Desconheço, porém, estudo de maior profundidade e extensão acerca de tão fascinante aspecto da história religiosa. A Enciclopédia Britânica cita a obra “The Christian Prophets” de Selwyn, um livro datado de 1900 (Daqui a pouco vamos conversar acerca dessa palavra  profeta.) Seria, creio eu, de grande interesse uma obra séria de pesquisa nas tradições e nos textos antigos e modernos, examinados, umas e outros, à luz dos postulados espíritas.
            Talvez o ponto de partida para uma obra dessa envergadura fosse a famosa Primeira Epístola aos Coríntios, do apóstolo Paulo. Na verdade, os capítulos 12, 13 e 14 desse interessantíssimo documento poderiam ser praticamente chamados de precursores de “O Livro dos Médiuns”, que Kardec escreveria dezoito séculos adiante. Nele, o apóstolo estuda as diferentes mediunidades e dá algumas instruções acerca da maneira de exercê-las. “E sobre os dons espirituais - diz ele - não quero, irmãos, que viveis em ignorância.”
            Para tranqüilizar aqueles que ainda se prendem à velha proibição da lei de Moisés, adverte que “ninguém que fala pelo espírito de Deus diz anátema a Jesus”. Mais ainda: assegura que “...ninguém pode dizer, Senhor Jesus, senão pelo Espírito Santo”, isto é, pela força do espírito que tem em si mesmo.
            Em seguida, discorre sobre as diversas formas de manifestação espiritual, dizendo que há uma “repartição de graças, mas um mesmo é o Espírito”, isto é, muitas espécies de mediunidade, mas de uma só origem espiritual. Uns proferem palavras de sabedoria, outros de fé; a estes é concedido o recurso de curar doenças, àqueles a faculdade de “operar milagres”, como a outros a profecia, ou o “discernimento dos espíritos”, ou a variedade de línguas, ou a interpretação das palavras.
            Aí temos a mediunidade, que se nutre na fonte da sabedoria e da cultura, dos chamados médiuns inspirados - oradores, escritores, artistas, que recebem, às vezes, apenas o germe de uma idéia para que a desenvolvam por seus próprios recursos e, de outras, têm a visão instantânea de toda a obra ou de toda a peça literária que deles esperam os poderes superiores.
            Aí está a mediunidade curadora, naqueles que transmitem novas energias através de seus passes ou prescrevem remédios como receitistas.
            Aí estão os que servem de instrumento a leis e forças ainda não bem conhecidas e que, curando o incurável e doutrinando Espíritos endurecidos, conseguem operar essas maravilhas de caridade e de amor ao próximo, que antigamente se chamavam milagres.
            Aí estão os que, na velha linguagem apostólica, profetizada, isto é, recebem Espíritos que, por sua boca, vêm transmitir mensagens de esperança e paz, revelar desilusões, mágoas, aflições ou trazer o consolo sereno das experiências que viveram. São os médiuns chamados psicofônicos.
            Aí estão, naqueles que “discernem os Espíritos”, os médiuns videntes, cujos recursos lhes permitem ver com os olhos espirituais os irmãos desencarnados.
            Aí estão os que, falando uma “variedade de línguas”, exercem a mediunidade chamada xenoglóssica, tão bem estudada por Ernesto Bozzano.
            Aí estão, finalmente, os dirigentes de trabalhos mediúnicos, na pessoa daqueles a quem o apóstolo chama “intérpretes das palavras”.
            Adverte ainda o autor da epístola que não existe uma mediunidade mais importante do que as demais, porque “também o corpo não é um só membro, mas muitos”. Cada um tem a sua função, a sua importância, a sua finalidade: “Se o corpo todo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se fosse todo ouvido, onde estaria o olfato?”
            Quanto aos que intitula profetas, colocou-os Paulo logo em seguida aos apóstolos e antes dos doutores; depois, os que têm a faculdade de perfazer milagres, os que curam doenças, os que assistem os seus irmãos, os que têm o dom de governar ou o dom de falar diversas línguas ou o de as interpretar.
            É tudo ordenado no pensamento do autor, que vai colocando cada coisa no seu lugar. Começa com o apóstolo, porque é este quem traz a palavra evangélica, e termina com o que interpreta línguas, porque de nada valeriam as comunicações se não tivesse alguém que as traduzisse na linguagem empregada pela comunidade. Mas logo adverte que nem todos podem ser apóstolos, nem todos profetas e nem todos doutores. Cada qual pode aspirara às faculdades que julgar melhores, mas o que importa é o que lhes vai recomendar, a seguir, dizendo: “vou mostrar-vos outro caminho mais excelente”. E, então, vem o seu famoso capítulo 13, no qual produz aquele magnífico ensaio sobre a caridade: “Se eu falar a língua dos homens e dos anjos, e não tiver caridade, sou como o metal que soa, ou como o sino que tine. E se eu tiver o dom da profecia e conhecer todos os mistérios e quanto se pode saber e se tiver toda a fé, até ao ponto de transportar montes, e não tiver caridade, não sou nada...”
            No capítulo seguinte (14) incentiva aqueles que exercem a mediunidade produtiva e serena, dizendo que “o que profetiza fala aos homens, para sua edificação e exortação e consolação. O que fala uma língua desconhecida, edifica-se a si mesmo; porém, o que profetiza edifica a igreja de Deus. Quero, pois, que todos vós tenhais o dom de línguas; porém, muito mais que profetizeis, porque maior é o que profetiza do que o que fala línguas, a não ser que também ele interprete de maneira que a inveja receba edificação”.
            Este trecho é muito revelador. Não me venham dizer que o dom de línguas é o simples conhecimento de línguas estrangeiras, como aquele que, sendo brasileiro, sabe falar francês, inglês ou alemão; é antes a faculdade mediúnica da xenoglossia, segundo a qual o médium fala na língua que, embora desconhecida dele -pelo menos na presente existência-, é conhecida do Espírito manifestante. A literatura espírita relata muitos casos desta natureza. É importante notar, porém, que para estes exige o apóstolo o esclarecimento do intérprete e acrescenta: “a não ser que ele também interprete.”     
            Ora, aquele que pode interpretar, ou seja, expressar-se na língua dos seus ouvintes, não precisa primeiro falar em outra e depois verter o pensamento na daqueles que o cercam. Logo, falou sob o impulso de uma vontade estranha à sua, numa língua desconhecida dos circunstantes. Ainda no versículo 13 do mesmo capítulo 14, aconselha Paulo: aquele que “fala uma língua desconhecida, peça o dom de a interpretar”.
            Esclarece também adiante que “as línguas são para sinal, não aos fiéis, mas aos infiéis; porém, as profecias, não aos infiéis, mas aos fiéis”, ou seja, o fenômeno em si, de um médium falar língua que ele e os seus ouvintes desconheçam, pode impressionar os cépticos, mas o conteúdo das mensagens mediúnicas interessa àqueles que já se acham mais senhores das verdades espíritas.
            Outras normas fornece o apóstolo na sua extraordinária epístola, recomendando que as faculdades mediúnicas sejam usadas com serenidade e equilíbrio, em perfeita ordem e harmonia: “... se alguns têm o dom de línguas, não falem senão dois, ou quando muito três, e um depois do outro e haja algum que interprete o que eles disseram.” Quanto aos médiuns psicofônicos, a que ele chama profetas, que “falem também só dois ou três, e os mais julguem o que ouviram.”
            Note o leitor que ele recomenda não aceitar sem exame; antes advertindo que devem julgar o que for dito. Para que haja ordem e disciplina nos trabalhos, “vós podeis profetizar todos, um depois do outro, para assim aprenderem todos e serem todos exortados ao bem.”
            E depois: “Assim que, irmãos, tende emulação ao dom de profetizar e não profetizar e não proibais o uso do dom de línguas; mas faça-se tudo com decência e com ordem.”
            No capítulo 15, trata da natureza e essência do perispírito, a que chama corpo espiritual dizendo: “Se corpo animal, também o há espiritual...” O corpo material é formado da terra e portanto é terreno, e quanto ao que chama “segundo homem”, se é da essência divina,  celestial...
            Eis assim o resumo do mais antigo “Livro dos Médiuns”  de inspiração puramente cristã. Para se conhecer outro antes dele seria preciso mergulhar nas antiquíssimas tradições assírias, egípcias, caldaicas, pois que, também naqueles recuados tempos, se estudou e se exerceu a mediunidade.
            O termo que exprimia essa faculdade, ao tempo de Paulo, era “profecia”. Hoje a palavra tem sentido diverso, e o profeta, embora em nosso entender espírita seja sempre aquele que possui dons mediúnicos, é tido apenas como aquele que prevê acontecimentos futuros.
            A Enciclopédia Britânica esclarece que a palavra profeta tem sua origem no substantivo hebraico NABI, cuja origem, segundo o autor do artigo, é obscura. Acha isso o autor porque as derivações da palavra NABI significam “excitação intensa”, “borbulhamento” e, em assírio, “transportar-se”, ou seja, cair em transe. A forma verbal em Hebraico também significa frenesi, cujo sinônimo em inglês, aliás segundo o dicionário Webster, é inspiração.  De modo que, se permitem a ousadia, discordo do conceito do enciclopedista ao afirmar obscura a origem da palavra. Acho-a até muito clara, pois que profecia e mediunidade dão mais ou menos palavras sinônimos, e ‘transporte’, ‘frenesi’ e ‘inspiração’ são maneiras diferentes de apreciar o mesmo fenômeno espiritual.
            No ano 1000 antes de Cristo, uma comunidade hebraica, existente em várias localidades, contava com um grupo de médiuns (profetas), que cultuavam uma divindade chamada Javé (Jeová). Esses médiuns, estimulados por música rítmica, cantorias e danças, caíam em transe, e, segundo a Britânica, exerciam poderes hipnóticos sobre os circunstantes. Os espíritas podemos admitir que não se trata de poder hipnótico e sim de manifestação mediúnica, verdadeira sessão pública de espiritismo prático.
            A velha nação israelita chegou a ter organizações especializadas no preparo dos seus profetas, ao que hoje chamaríamos Escola de Médiuns. Já ao tempo de Samuel, a palavra profeta designava aqueles que primitivamente eram chamados ‘videntes’, do hebraico Roeh (visionário). Depois, veio a chamada idade de ouro dos profetas propriamente ditos, com Isaías, Jeremias, Amós , Oséas e outros.
            Quantos aos chamados ‘profetas’ da igreja cristã primitiva, exerciam seu mister como agregados às diversas comunidades ou iam de uma à outra, como médiuns itinerantes, incumbidos de receber os Espíritos orientadores dos diferentes agrupamentos cristãos. Segundo se apurou, esses médiuns gozavam de grande reputação e respeito por todo um século, mas ‘sua posição foi sempre precária’. Do entusiasmo mais sereno e sadio podiam os médiuns passar aos transes improdutivos. Por outro lado, ao que parece, começaram a aparecer mistificadores, como também aqueles cuja conduta na vida diária não se coadunava com os belos pronunciamentos que admitiam em estado de transe mediúnico. É claro que nem sempre o médium é perfeitamente moralizado e equilibrado, e o que assim permanece, sem esforçar-se na busca da serenidade, acaba por cair sob o poder de obsessores e aviltar as suas faculdades ao ponto de as inutilizar por completo. Assim, o prestígio dos sacerdotes começou a obscurecer o dos médiuns itinerantes, cuja única virtude, em muitos casos, era apenas dizer coisas edificantes em estado de transe. Às vezes, acontecia serem os próprios sacerdotes portadores de faculdades mediúnicas, o que era tanto melhor.
            Aí por volta do segundo século de Cristianismo, os abusos tinham assumido proporções consideráveis e a igreja entendeu de proibir a prática mediúnica nas suas reuniões. As autoridades eclesiásticas decidiram que ‘o êxtase era demoníaco e não divino’ e que os profetas não deveriam mais aceitar as suas faculdades, ou seja, precisavam sufocar qualquer manifestação de mediunidade nascente. Foi isso um bem e um mal. Bem, porque o exercício da mediunidade era ainda pouco disciplinado e estudado e se prestava realmente às mais perigosa e ridículas explorações, tanto de encarnados quanto de desencarnados. Foi um mal, porque a prática não deveria ter sido liquidada e sim transferida à responsabilidade de seu estudo à pessoas que, mesmo dentro da mais pura ortodoxia cristã, estivessem em condições morais e intelectuais de examiná-la criteriosamente e desenvolvê-la metodicamente, com disciplina e ordem, como recomendava Paulo aos Coríntios. Se tivesse adotado esta alternativa, a igreja cristã seria hoje o maior repositório de conhecimentos espirituais e a evolução do espírito humano estaria alguns milênios à frente do ponto em que hoje se encontra. Pode-se imaginar o que não teria feito a prática honesta e serena de quase dois mil anos de espiritismo cristão? Certamente que prevaleceu naquela encruzilhada do Cristianismo a vontade e a inspiração daqueles que ainda não possuíam em si luz suficiente para alcançar as tremendas consequências da decisão que estavam tomando. Quanta dor nos tem custado essa decisão...
          Deixo aqui estas notas apressadas para que alguém, melhor que eu, possa aprofundar o assunto e emergir com um trabalho largo e sério sobre ele.       


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