prefácio do livro “O Cristo de Deus” (3ª Ed FEB 1979)
de Manuel Quintão
por Indalício Mendes
“Jesus “antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, TORNANDO-SE EM SEMELHANÇA DE HOMENS, e RECONHECIDO EM FIGURA HUMANA.” (Epístola de Paulo aos Filipenses, Ca. II, v. 7).
“...Deus, enviando a Seu próprio Filho EM SEMELHANÇA DE CARNE DE PECADO e por causa do pecado, condenou o pecado na carne; para que a exigência juta La Lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Os que são segundo a carne põem a sua mente nas coisas da carne, mas os que são segundo o Espírito põem a sua mente nas coisas do Espírito. A mente da carne é morte,mas a mente do Espírito é vida e paz” (Epístola de Paulo aos Romanos, cap. 8, vv 3-6).
“Um cepticismo presunçoso, que rejeita os fatos sem examiná-los, é mais funesto do que a credulidade que os aceita.” – Alexander VON HUMBOLDT.
O HOMEM – Conhecemos Manuel Justiniano de Freitas Quintão na antiga livraria a Federação Espírita Brasileira, se não nos trai a memória. Recordamos, porém, que ali era dele o lugar preferido, quando se dirigia ou se retirava da Federação Espírita Brasileira, na Avenida Passos. “Passar pela livraria” era, para ele, e para mim continua a sê-lo ainda hoje, como parte de um “rito” sentimental. Quintão chegava mansamente, humilde, a doçura refletida no olhar melancólico, a completar a bondade do semblante simpático. Saudava discretamente as pessoas presentes e, com desvelos paternais, passeava os olhos pelas estantes, como se cada vez fosse a primeira a avistar os livros disciplinadamente dispostos em cada lance. No entanto, eram-lhe tão familiares! A carinhosa visita cotidiana denunciava a ternura com que revia os volumes destinados à espiritização cristã do povo. Como amava os livros! Quase sempre dava presença na pequena e modesta tipografia que funcionava aos fundos da livraria, de lá regressando a passos lentos, a fisionomia tranqüila, para encostar-se a um dos balcões laterais, que semelhavam, para ele, o que a êxedras gregas para antigos filósofos. Sempre havia alguém desejoso de ouvi-lo.
A simplicidade do porte atraía. Comunicativo, fazia da palavra cativante mensageira de conceitos que penetravam logo a mente e o coração do interlocutor, deixando convite certo à reflexão. Não se presumia mestre de nada, mas a sabedoria colhida na vida, polida pelo estudo continuado, ilustrava qualquer palestra de que participasse. Gostava de conversar, e sempre oferecia o ouro legítimo da sua linguagem castiça, sem afetação, no intercâmbio instrutivo de cada momento, pondo amor nas frases, recebendo em troca o verbo opulento ou simples, conforme o caso, de quem com ele dialogasse. Sentíamos por Manuel Quintão quase místico respeito e sempre ouvimos com religiosa atenção o que nos dissesse, quer sobre Espiritismo, quer sobre outro tema que aflorasse no curso da conversação. Jamais lhe esquecemos a fisionomia bondosa, aberta em paternal sorriso, quando chegávamos. Quanta saudade!
Estamos falando de um homem que foi bom e útil. Sereno e compenetrado de suas responsabilidades doutrinárias, jamais deixou transparecer o peso dos problemas cármicos que corajosamente defrontou, solapada pelas durezas da existência terrena, pois dava a impressão de ser espiritualmente feliz, amparado pela fé que remove montanhas. Era didático por vocação e fraterno por índole. Sua experiência transvazava a acuidade mental que, coleante, envolvia as conversas que mantinha, livre e franca como a linfa pura que, procedente de distante fonte, se dá generosamente para fecundar a terra e aliviar os sedentos. Muito se aprendia com ele, que, solícito, não se negava a ninguém, não se fazia reticente, falso humilde, como os que com tudo concordam para parecerem indulgentes. Sabia dizer sim, mas não se intimidava de dizer não, quando necessário. Divergia sem ferir, desenvolvendo socrático raciocínio. Sem ser sistemático, mostrava-se exemplarmente fiel a seus pontos de vista lógicos e convincentes. A palavra tranqüila e cadenciada adquiria maior poder no estilo escorreito que a abrilhantava. Se o ardor do antigo polemista repontasse em qualquer diálogo, depressa a mansuetude evangélica o compelia a ausentar-se. Por isso, não transpunha os limites estabelecidos por sua educação, mesmo nos mais complexos debates de caráter teleológico ou disteleológico.
Quem o visse, de boa altura, com o busto em mui ligeira proclividade, não deduziria de pronto ali estivesse um homem de excelente cultura, que tanto falava bem, como bem escrevia. A idade, em vez de lhe quebrantar a lucidez, ativou-a, conservando-lhe a jovialidade comedida. Na tribuna espírita, sem os arroubos de orador de comício popular, mas pausado e reflexivo, Manuel Quintão foi autêntico semeador das verdades evangélicas e doutrinárias, disciplinado e sóbrio, sobretudo polido. Era assim, dentro da Federação Espírita Brasileira e fora dela, com agrado geral, até dos que, vez pó outra, o adversassem. Nunca visava aos homens, mas as idéias, aos argumentos que oferecessem.
E, pois, com inaudita emoção que rememoramos a sua personalidade pacífica e simpática, humilde e forte. Aí está uma construção pleonástica, porque ser verdadeiramente humilde é ser verdadeiramente forte. Hoje, ele, como tantos outros luminares do Espiritismo Cristão, que se entregaram a tenaz e árduo labor em prol da disseminação do Evangelho e da Doutrina Espírita, através das obras referendadas por Allan Kardec, Jean-Baptiste Roustaing, Léon Denis, Gabriel Delanne, e outros, mal são lembrados, o que, aliás, não é de surpreender, em face do que se passa em relação a Jesus, pois a Humanidade continua sendo absorvida pelo que mais de perto lhe acoroçoa os sentidos.
Avesso ao personalismo, compreendeu Manuel Quintão que, antes dos nossos melindres pessoais, está a Doutrina, que deve merecer a dedicação inteira dos que se encontram na Seara, a fim de que as semeaduras sejam fartas e as colheitas, fecundas. E disto ele não olvidava. Ardoroso, mas não rancoroso, conservava-se calmo quando tinha de responder a algum furibundo inimigo do Espiritismo. Suas expressões não faziam sangrar: faziam pensar. Foi, por conseqüência, no bom sentido, um apóstolo da causa. Não poucos os que com ele contenderam vieram, depois, a confessar honestamente a grandeza de caráter desse homem modesto, pacato, pobre de pecúnia, porém rico de sentimentos elevados, cuja vida pôs, até ao fim, a serviço da Terceira Revelação, com Allan Kardec, e a Revelação da Revelação, com Roustaing, sendo de se considerar que ambos não se opõem, antes se completam.
Tanto assim que deixou aos pósteros este trecho lapidar, ao referir-se à importante questão do “corpo fluídico” de Jesus:
“Caminho de todos os quadrantes, verdade de todos os tempos, vida de todas as inteligências, a afirmar-se no mundo, para o mundo e fora do mundo. É assim pensando e sentido que repetimos com Kardec, estudando Roustaing: “A chave está no espiritismo, isto, na revelação progressiva dos Espíritos e todos havemos de o reconhecer ao nosso tempo”.
Manuel Quintão foi infalível? Não, evidentemente. Teve erros, como todos os humanos. Quem não os tem? Falível – e isto é condição característica dos seres terrenos -, Manuel Quintão possuía, entretanto, valioso acervo de virtudes, as quais suplantavam as suas naturais limitações humanas. Sabia ceder humildemente, quando convencido de não haver sido feliz em dados momentos. A caridade, o amor ao próximo, a tolerância esclarecida, o espírito de solidariedade, o devotamento aos deveres, eram qualidades integrantes do seu ser. Médium curador, nada fez com que negligenciasse suas obrigações. Sabia respeitar a crença alheia e não fazia discriminações, a não ser diferenciações de natureza doutrinária, assim mesmo se tal lhe parecesse imprescindível. Tinha compromissos com o Cristo, dizia. A humildade, que tanto rareia no mundo, mesmo nos escalões do Espiritismo, era força atuante nesse homem simples e bom, que seguia, iluminando-se, as luzes da trilogia – DEUS, CRISTO, CARIDADE. Autodidata, conquistara paulatinamente o saber, sem que seu caráter sofresse mutações negativas. Comportava-se exemplarmente na prática doutrinária, onde quer que estivesse. Semelhante prática lhe granjeou o respeito de amigos e sinceros admiradores, no curso da existência trabalhosa, que durou precisamente oitenta anos.
Foi sócio da Federação Espírita Brasileira (onde entrou pela mão de Antonio Lima) (1) durante mais de quatro décadas. Por quatro vezes ocupou a Presidência da Casa de Ismael: em 1915, em 1918 e 1919, e em 1929. Filho de pai português, Antonio Gomes de Freitas Quintão, e mãe brasileira, Maria Amélia Justiniano Quintão, nasceu no lugar denominado Quirino, no antigo Estado do Rio de Janeiro. Na juventude, perambulou pelo materialismo, empolgado pelas idéias de Haeckel, Büchner, Renan, Voltaire, Zola e outros. E defendeu-as como jornalista, até que, certo dia, adoeceu gravemente. Foi quando encontrou a sua “estrada de Damasco”, conforme seu próprio testemunho:
“...desenganado pela medicina oficial, depois de esgotar todos os recursos e a pique de cair na indigência, é que fui levado a tentar a terapêutica mediúnico-espírita. Este episódio, contei-o na conferência que, em 1921, pronunciei a propósito das materializações assistidas pouco antes, no Pará, publicada sob o título de “Fenômenos de Materialização” (2). A minha cura foi tão rápida quanto eficaz e maravilhosa, e o monista irredutível, já candidatado ao suicídio, tornou-se espiritista confesso e professo.”
Prefaciando o magnífico livro, acima citado, o beletrista Almerindo Martins de Castro, autor de diversas obras de acentuado valor doutrinário, escreveu, referindo-se a Manuel Quintão:
“...Poucos, bem raros, são aqueles que aprendem, nas lições do Espiritismo, a estudar a vida no próprio cenário onde se agitam, e a vislumbrar, nos fatos cotidianos, o ensinamento que nos mostra a evidência das reencarnações expiatórias ou missionárias, patenteando – nessa sucessão de existências – a continuidade imortal da vida cósmica, multidividida, embora, em formas que vão desde as estrelas inconcebivelmente grandes, até às proporções invisíveis dos micróbios potentíssimos. Só estes raros conseguem o verdadeiro fruto promanado da doutrina: corrigem, dominam, vencem os maus pendores da natureza humana, contingentes quase sempre de predileções havidas em existências anteriores, e marcham para as águas purificadoras da reparação do passado. Os demais acreditam no Espiritismo, mas não são espíritas, embora se apregoem tal, de boa ou má-fé.
À luz deste sadio critério é que se pode encarar e compreender a personalidade de Manuel Quintão, ascensionando desde os pórticos do mistério ao zimbório da Verdade.
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Ligando-se ao poderoso núcleo que, do Espaço, superintende os destinos da Federação Espírita Brasileira, teve logo a assistência do boníssimo e iluminado Bezerra de Menezes, que, pelo seu lápis, receita – diariamente – para dezenas de enfermos solicitantes da ciência clarividente dos desencarnados. Esse Espírito, já envolto na luz imperecível do Céu, viu em Manuel Quintão o desejo de dar – de graça – aos outros, aquela mesma esmola que – de graça – recebera, quando, incrédulo e devorado pela doença do corpo, experimentara, sem fé, a realidade da fé alheia.
E foi nessa escola de miséria e sofrimento que ele, o médium receitista, aprendeu a força do SENTIMENTO, o poder da FÉ, a extensão da misericórdia divina, a VERDADE contida nos ensinamentos dos Espíritos que, em todos os tempos, a anunciaram, até que o Cristo a esculpisse no Evangelho e a exemplificasse – há vinte séculos – epilogada no Calvário. E também por isso foi que recebeu a inapreciável assistência de Espíritos da mais elevada moral evangélica, que não só lhe abriram ao entendimento das mais altas visões doutrinárias, mas igualmente lhe proporcionaram definitivas e convincentes demonstrações do poder das forças manejadas do Além – por eternos mensageiros dessa Verdade inacessível à Ciência da Terra.
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(1) Antonio Lima – Espírita militante bastante conhecido durante mais de usas primeiras décadas deste século por sua atividade, inclusive junto à Federação Espírita Brasileira. Poeta e escritor. Entre os livros que escreveu, editados pela FEB, contam-se Vida de Jesus, Estrada de Damasco, Senda de Espinhos, A Caminho do Abismo.
(2) Reformador de janeiro de 1955, página 7, sintética autobiografia deixada por Manuel Quintão, datada de 16-5-1939.
Possivelmente, já influências benéficas agiam do Invisível para que, dentro das contingências iniciais da sua provação, o futuro doutrinador chegasse, sem solavancos desequilibrantes do Espírito, à época própria de encarar o Sol rútilo da Verdade. Ignorado de si mesmo, foi subindo e penetrando naturalmente nos pórticos escalonados das hierarquias humanas, antes de chegar às do Espírito. O caixeiro medrou em um dos mais hábeis guarda-livros do seu tempo; do ensaísta bisonho dos versos e produções provincianos, surgiu um dos maiores escritores espíritas contemporâneos. Apenas, a premura de tempo não lhe ensejou trabalhos de longo fôlego. E embora as colunas do “Reformador” guardem lições suas, em prosa e verso, suficientes para constituir mais de um milhar de páginas de erudição doutrinária e modelar poesia, Manuel Quintão sempre fugiu a escrever livros, sustentando que o melhor fruto é proporcionado pela síntese no ensinamento, pois mais arraigada e eficazmente se guarda – na Alma – um preceito eloqüente e verdadeiro, do que – na memória – extenso trecho de rebuscado estilo a imitar os clássicos.”
Na verdade, muito se teria a dizer a respeito do médium e doutrinador Manuel Quintão, vítima também, como tantos outros, de julgamentos apressados, que censores pouco tolerantes ou sem o seu merecimento levianamente criticaram, esquecidos daquela memorável parábola em que o Mestre dos mestres, em vez de acusar Madalena, fazendo coro com os maledicentes que pretendiam dilapidá-la, deu uma de suas mais lindas, edificantes e imortais lições de compreensão, ternura e construtiva indulgência.
Manuel Quintão começou a freqüentar a Federação Espírita Brasileira em 1903, da qual nunca se afastou, dedicando-lhe profunda e sólida veneração. No terceiro volume dessa prodigiosa coletânea de mensagens mediúnicas denominada Trabalhos do Grupo ISMAEL, em sessão de 5 de agosto de 1942, o bondoso e iluminado Espírito Bittencourt Sampaio, por intermédio do médium J. Celani, disse, a propósito de imerecidas censuras feitas à Federação Espírita Brasileira, por intransigentes e sistemáticos adversários de sua orientação:
“Lembrai-vos e adverti aos que a hostilizam que a Casa de Ismael não é dos homens, mas de Jesus, instituída pelos seus grandes servos, para glória do seu nome, na sustentação do seu Evangelho. Pode ser humanamente mal dirigida ou governada de modo falho e defeituoso, com relação à sua tarefa. Sempre, porém, será a Casa de Ismael.
Fazei compreender isso, com a mesma brandura, a mesma doçura, a mesma fraternidade com que o Divino Mestre admoestava os discípulos que, pelas interpelações que lhe dirigiam, demonstravam não haverem ainda assimilado o espírito da doutrina em que Ele os instruía.. Dessa forma vencereis, porquanto é loucura atirar pedras à Lua; ao caírem, elas atingirão a cabeça dos imprudentes, que as arremessaram.”
Ao pé da página (152), esta nota, dirigida Guillon Ribeiro, então Presidente da Federação Espírita Brasileira:
“Guillon, dize ao Quintão que estamos com ele e queremos vê-lo aqui ainda, no cumprimento do dever. Paz.”
Quintão achava-se enfermo e tão simples e lacônico “recado” expressa bem a afeição que os Espíritos tinham por esse prestimoso trabalhador da seara. Esse amor que viceja na Casa de Ismael envolve quantos a conhecem interiormente e compreendem verdadeiramente a magnitude do trabalho que lá se realiza, sem discriminações, mas com a cooperação espontânea e viva, dedicada e amorosa de todos, pois sentem intimamente a alta finalidade da FEB e as suaves e fraternas vibrações do seu ambiente. É uma casa de paz, onde se verifica a aglutinação de sentimentos elevados, na qual o amai-vos uns aos outros é a senha dos que se fazem humildes de dentro para fora, livres do farisaísmo que macula a alma dos insinceros.
Se não, vejamos o testemunho do grande escritor espírita e orador dos mais inspirados e fluentes, que foi Carlos Imbassahy, no texto do prefácio que escreveu para o livro Cinzas do meu cinzeiro, de Manuel Quintão:
“Também militamos na Federação Espírita Brasileira.
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Força é confessar que não achamos fora dali gente tão honesta, tão sincera, tão digna”.
Evidentemente, não pretendeu Imbassahy dizer que a FEB mantivesse o monopólio dessas virtudes, mas, por certo, desejou enfatizar o bem-estar que sentia no espiritualizado ambiente da Casa de Ismael.
*
Manuel Quintão foi homem de paz, honrado com os outros e consigo mesmo, reconhecendo suas limitações, como criatura humana, tanto que afirmava achar-se também na faina da reconstrução à base dos ensinos evangélicos, por não ser o Espiritismo campo adequado ao cultivo do personalismo narcisista em concubinagem com a egolatria. Ou o homem cumpre seus deveres com dedicação, humildade e constância, ou terá de amargar, um dia, porque isso é imperativo na Lei, as desilusões que o tardio arrependimento acarreta, mostrando a irreversibilidade do tempo perdido inutilmente. Nenhum de nós está no Espiritismo para servir-se a si mesmo, mas para servir a todos. A Terceira Revelação, não é um palco em que cada qual deva exibir suas habilidades e seus talentos, para gozo próprio. É escola sacrificial de renovação. É escola grátis, mas séria, para aprendermos a ser úteis a outrem, na medida da nossa fidelidade a Jesus. Todavia, sempre é muito caro o preço pago pela leviandade ou descaso no cumprimento dos deveres decorrentes do ingresso em suas fileiras. Por isso, Manuel Quintão era escrupuloso e, ao mesmo tempo, tolerante e paciente, pacífico e fraterno. Não cultivava ressentimentos nem permitia equívocos que pudessem resultar em mal-entendidos prejudiciais ao movimento espírita. Se fosse necessário usar de franqueza para eliminar dúvidas ou para restabelecer a verdade, desfigurada ou desfeita, não se omitia, não ficava indeciso: agia prontamente, em linguagem serena, mas clara e determinada. Possuía, realmente, uma educação cristã-espírita.
Amante do vernáculo, esmerava-se na linguagem escrita e falada, escrevendo de maneira que qualquer pessoa entendesse, embora apreciasse o ornamento da frase perfeita e encantadora. Não tisnava o falar com vocábulos pernósticos nem chulos, de mau gosto ou inadequados. Conhecia o idioma e buscava respeitá-lo, exemplificando a arte de escrever bem. Sua prosa era leve e agradável, às vezes com um suave colorido de jovialidade. Já velho, cansado, o alforje da vida pejado de duras experiências, não se fazia triste nem lamuriento. Pelo contrário, gostava da alegria discreta, do dito álacre, da atitude simpática, porque, para ele, somente podemos recriar o ânimo que ameaça decair, reagindo com coragem e otimismo. O homem vale por sua força interior, pelo vigor de sua alma. Não disse Paulo – “Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos” (II. Cor.: 8-9)? Porque, ou temos fé ou não temos fé, não podendo haver situação intermediária. E Paulo se lembrava da pletora de ânimo de Jesus, em todos os momentos do seu inenarrável sacrifício. Manuel Quintão se reabastecia de fé no Evangelho, que lhe dava ânimo para suportar estoicamente os acicates da existência. A Doutrina era-lhe reconfortante estimulador em todos os instantes. Tinha fé e compreendia que nada acontece por acaso, pois para tudo uma razão há que muitas vezes desconhecemos. Parece haver-se familiarizado com esta advertência contida no Eclesiástico:
“Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça. Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme, na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus pelo cadinho do aviltamento. Põe tua confiança em Deus e ele te salvará, orienta bem o teu caminho e espera nele.Conserva o temor dele até na velhice.”
(Eclesiástico, cap II, vv. 1-6.)
Sabia estar, como todos estamos, num mundo em lenta e espinhosa evolução, no qual as criaturas passam também pelo cadinho das mais duras provas, “pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata”. De nós dependerá o êxito ou o revés. O nosso mérito está em lutar dignamente para que, um dia, possamos, transpostos todos os obstáculos, sentir a alegria da alma redimida e pronta para receber o prêmio do nosso esforço e perseverança, tornando-nos cristão em Cristo!
Em suma, era ele um homem generoso, com a alegria que nasce da consciência pacificada no amor de Deus.
Ao recordar a sua personalidade simples e cativante, relembramos, por natural associação de idéias, de Pedro, ativo, humilde, conselheiral e afetivo, a derramar sobre os homens ainda preocupados com as seduções terrenas os eflúvios do seu coração bondoso, neles pondo o olhar referto de ternura, talvez repetindo mentalmente a recomendação do Nazareno, esplendente de luz:
- Amai-vos uns aos outros!
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Nesta pequena obra, Manuel Quintão, hábil e brilhante estilista, ao mesmo tempo que realça o valor da Revelação da Revelação, onde se encontra, com meridiana clareza, o tema superior do “corpo fluídico de Jesus”, refuta, com elegância e firmeza, os paralogismos de um autor empenhado em contestações pueris, muito distantes da grandeza com que os Espíritos comunicantes desempenharam tão importante papel na coordenação e disseminação dos Evangelhos do Cristo de Deus. A sua linguagem é serena, como a de todo aquele que descansa a alma na Verdade, mas vigorosa, sem ser ácida,, e bastante lúcida, para que se possa bem distinguir o trigo dourado que oferece, em contraposição ao joio baço imposto pelo crítico temerário. Repondo cada coisa em seu devido lugar, Manuel Quintão pulveriza sofismas e denuncia deturpações, restabelece, com distinto critério analítico, o raciocínio correto, demonstrando, e, nesse passo, repetindo Helvétius, que “a Verdade não pode ser nociva”.
Todavia, sem esquecer o princípio da tolerância, que deve ser apanágio do legítimo
espírita-cristão, dá a entender que muitos erros são cometidos pela falta de conhecimento suficiente do assunto que é discutido, reproduzindo, com oportunidade, esta nota elucidativa que se encontra em O Livro dos Espíritos, Parte II, cap. IV, nº 182:
“Nós, Espíritos, só podemos responder de acordo com o grau de adiantamento em que vos achais. Quer dizer que não devemos revelar estas coisas a todos, porque nem todos estão em estado compreendê-las e semelhante revelação os perturbaria.”
Nada tem de vexatória a situação de alguém que ainda não está capacitado a compreender o que é de fácil entendimento a outrem. O que se torna vexatório é persistir na ignorância ou se deixar conduzir por propósitos incompatíveis com a ética, sempre necessária nas relações dos homens entre si. Não se trata, às vezes, de menor ou maior inteligência, mas, sobretudo, de grau de acuidade espiritual. Daí a necessidade do esclarecimento ponderado, da tolerância vigilante, mesmo quando a crítica ou mesmo a agressão é utilizada como argumento adverso, na tentativa de empanar o brilho da Verdade e de destruir o indestrutível.
Foi essa a orientação seguida por Manuel Quintão, em O Cristo de Deus: pacífico, mas positivo; indulgente, porém, franco, com o que recorda estas palavras do ilustre Codificador, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, p. 27, 66ª Ed. FEB, 1976.
“Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral são ininteligíveis, parecendo alguns até disparatados, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como já o puderam reconhecer os que o têm estudado seriamente e como todos, mais tarde, ainda melhor o reconhecerão.”
O problema está, talvez, na falta de seriedade no estudo do Espiritismo, e acrescentaremos: também do Evangelho, pois em ambos se encontram passagens que levam à compreensão nítida de que Jesus, pela sua hierarquia moral e espiritual, infinitamente superior à de todos nós, pobres terrícolas, somente poderia ter baixado a este planeta com um corpo fluídico, de aparência carnal.
Tem-se insistido num sofisma, já desmantelado por Leopoldo do Cirne , Manuel Quintão, Guillon Ribeiro, Ismael Gomes Braga, Antonio Luiz Sayão, além de Bittencourt Sampaio, outro Espírito de nobre e elevada envergadura, com o fim de opor entraves à difusão de ‘Os Quatro Evangelhos’, mas o progressivo aumento de tiragem dessa notável obra mediúnica constitui prova evidente e cabal de que aumenta, também progressivamente, o número de seus estudiosos leitores.
Sendo a Doutrina espírita de caráter essencialmente progressivo é cabível, aqui, a reprodução de mais este trecho de sua autoria, para se aceitar o fato de ser o lançamento de Os Quatro Evangelhos, por Jean-Baptiste Roustaing, como enorme passo à frente, um grande avanço no estudo do Espiritismo evangélico:
“...não lhe cabe (à Doutrina) fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando ideias reconhecidamente justas. DE QUALQUER ORDEM QUE SEJAM, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias da sua perpetuidade.”
Ora, ao contrário do que alguns insistem em asseverar, o que já foi dito e repetido é que Kardec, usando do seu direito de externar um ponto de vista apenas pessoal, considerou que ainda era cedo para dar à luz da publicidade assunto tão transcendente, mas reconhecendo na obra – Espiritismo Cristão ou Revelação da Revelação – OS QUATRO EVANGELHOS – Seguidos dos mandamentos explicados em espírito e verdade pelos Evangelistas assistidos pelos Apóstolos e Moisés – “O MÉRITO DE NÃO ESTAR EM CONTRADIÇÃO, POR QUALQUER DE SEUS PONTOS, COM A DOUTRINA ENSINADA EM O LIVRO DOS ESPÍRITOS E EM O LIVRO DOS MÉDIUNS.” Esclareceu que, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, se limitou às máximas morais que, com raras exceções, são geralmente claras” e, dessa forma, “não poderiam ser interpretadas de maneiras diversas; por isso mesmo jamais fizeram objeto das controvérsias religiosas”. Pioneiro das ideias espíritas, numa época em que os ultramontanos ainda faziam tremendas pressões contra tudo quanto lhes parecesse conflitante com os pontos de vista católicos, é possível que a prudência de Kardec, tantas e tantas vezes louvada, lhe haja sugerido não julgar conveniente, em tal época, suscitar debates maiores em torno do problema espírita religioso. Tanto assim parece que ele, com a característica lealdade que possuía, apontou: “Essa a razão que nos levou a começar aí, a fim de sermos aceito sem contestação, aguardando, relativamente ao mais, que a opinião geral se encontrasse familiarizada com a idéia espírita.” Idêntico ponto de vista se encontra na Revue Spirite, de junho de 1867.
Kardec não negou a veracidade das revelações divulgadas por J.-B. Roustaing. Apenas, conforme afirmou, não julgava oportuno “abordar” certas questões. Podemos até compreender, disso, que, se julgasse oportuno, por certo não deixaria de abordá-las. Só muitos anos depois foi que William Crookes, que ainda não aceitava sequer a idéia da materialização, veio a assistir a uma sessão desse gênero, em Londres, precisamente a 22 de outubro de 1873 (ver Fatos Espíritas, de William Crookes, editado pela FEB), em que a médium Florence Cook (morena) recebia o Espírito Katie King (ou Anne Morgan), sob o controle científico principal do sábio Alexander Aksakof. Mas formas as experiências de Crookes com Miss Cook que sacudiram a ciência oficial. Se tais experiências houvessem ocorrido durante a presença de Kardec na Terra, certamente o Codificador, que era “o bom senso encarnado”, no dizer de Flammarion, estaria mais seguro para externar uma opinião decisiva sobre a questão do corpo fluídico de Jesus.
Um assunto puxa outro, porque, afinal, há um co relacionamento de fatos, no Espiritismo, que o torna mais e mais interessante. O Livro dos Médiuns registra em suas páginas o caso dos fenômenos de bicorporeidade e bilocação de Santo Antônio de Pádua. E ali está uma explicação muito oportuna do Espírito de Santo Afonso:
“Quando um homem, POR SUAS VIRTUDES, chegou a desmaterializar-se completamente; quando conseguiu elevar sua alma para Deus, pode aparecer em dois lugares ao mesmo tempo.” (Os destaques são nossos).
O Espírito do homem (Santo Antônio de Pádua) desmaterializa-se, o corpo físico fica no local onde acontece o fenômeno, enquanto o Espírito, liberto da prisão carnal, aparece noutro lugar, mesmo distante. Se isso é possível, pelas virtudes do homem, por que a materialização e desmaterialização de um Espírito como Jesus não pode ocorrer também, oferecendo ainda maiores exemplos de autonomia e determinação? Como será possível admitir que seja possível considerar limitados os poderes de um Espírito de elevada hierarquia, como Jesus, sábio e imaculado, que nunca faliu, que dispões do conhecimento integral de todos os mistérios da Espiritualidade, como o de todos os fluidos e do seu aproveitamento, que “a nossa vã filosofia” mal pode compreender? No caso de Santo Antônio de Pádua houve, além de bilocação, materialização e desmaterialização. Mas, cedamos a palavra a um dos espíritas mais estudiosos e experientes, Almerindo Martins de Castro, contidas em seu livro Antônio de Pádua, editado pela FEB: O pai de Antônio fora maliciosamente envolvido num caso de prestação de contas. Agira lisamente, mas não pedira recibos para comprovar os pagamentos feitos. Suspeitado, ficou aflito, pois negavam que houvesse feito os pagamentos. “E sob o império dessas penosas impressões estava, quando disso: - “Pobre de mim, que não tenho um filho, parente, nem amigo para valer-me nesta situação!...” Nisto, à porta chamaram-no, e ele, julgando tratar-se de enviados da Justiça Régia, foi à Câmara da Cidade, onde devia dar as definitivas alegações aos oficiais del-Rei. Mas, ali chegando, antes que pronunciasse qualquer palavra, surgiu Antônio – que estava na Itália, em Milão – e relatou àqueles homens de má-fé todos os detalhes do que fizera o pai, minuciando o local, hora e espécie da moeda em que lhes havia sido feita a entrega das quantias devidas.”
Surgindo Antônio, evidentemente em forma humana, materializado, tanto que fez o relato a que se refere a descrição, salvou o pai, deixando provada a lisura com que ele procedera.
Mas, continua o livro: “Outro fato, verdadeiramente de MATERIALIZAÇÃO. Um amigo e vizinho do pai de Antônio matou, por inimizade, certo moço de importante família e escondeu o cadáver no quintal da casa de Martim de Bulhões. Feitas as pesquisas e achado o morto, foi o pai de Antônio envolvido no processo e condenado à morte, como sendo cúmplice, juntamente com os autores do crime. Antônio pregava em Pádua, quando foi mediunicamente ciente do ocorrido, isto é, de que o pai ia ser decapitado. Antônio cessou de falar. Seu corpo, arrimando-se no púlpito, imobilizou-se, dando a impressão de estar dormindo. E apareceu em Lisboa, no adro da Sé, onde tivera sepultura o assassinado, e aí deteve o cortejo da Justiça. E, chegando junto à cova do morto, MATERIALIZOU O ESPÍRITO DA VÍTIMA, fazendo-o narrar toda a verdade do crime, sem omitir uma peripécia. O espanto foi inenarrável, pois todos VIRAM o defunto erguer-se da tumba, e, finda a narrativa, cair “morto” outra vez!
Mas, o extraordinário livramento do velho Martim de Bulhões não produziu só esses pasmos, porque, Antônio, quando continuou a prédica interrompida – em Pádua -, pediu desculpas pelo demorado intervalo, contando como fora e conseguira salvar o progenitor. E os que não acreditaram tiveram a confirmação do caso, quando chegaram as informações pedidas para Portugal” (págs. 48 a 50).
Como se leu, o Espírito pode assemelhar-se, por sua vontade, desde que seja suficientemente virtuoso, ao corpo carnal de um ser vivo. Em O Livro dos Médiuns, lê-se: “Está admitido que o Espírito pode dar ao seu perispírito todas as aparências; que, mediante uma modificação na disposição molecular, pode dar-lhe a visibilidade, a tangibilidade e, conseguintemente, a opacidade” (também, obviamente, a materialização, acrescentamos), págs. 153 e 154. Kardec, entretanto, fiel à prudência sempre manifestada, porque lhe faltavam provas, disse, tal como viria a dizer a respeito do corpo fluídico de Jesus: “Quanto ao fenômeno em si, não afirmamos nem a sua possibilidade, nem a sua impossibilidade. Dado, entretanto, que ocorra, a circunstância de se lhe não oferecer uma solução satisfatória DE NENHUM MODO O INFIRMARIA.” E concluiu que esta advertência, esquecida no caso do corpo fluídico de Jesus: IMPORTA SE NÃO ESQUEÇA QUE NOS ACHAMOS NOS PRIMÓRDIOS DA CIÊNCIA E QUE ELA ESTÁ LONGE DE HAVER DITO A ÚLTIMA PALAVRA SOBRE ESSE PONTO, COMO SOBRE MUITOS OUTROS” (o grifo e o versal são nossos, Ibidem, págs. 154 e 155).
Aliás, não há nenhuma referência à materialização de espíritos em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns, e isso é assaz significativo. É, pois, compreensível que Kardec, voltamos a dizer, escrupuloso como era, extremasse sua cautela quanto aos fenômenos de materialização, porque não pudera conhecê-los “de visu”; e, porque cada conhecimento chega no tempo devido, evitasse, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXVII, item 8, página 389, narrar o aparecimento do anjo Rafael, Espírito materializado, ao velho Tobias e seu filho, homônimo, limitando-se apenas a extrair do fato soberbo este comentário ligeiro:
“Se o anjo que acompanhou a Tobias lhe houvera dito: “Sou enviado por Deus para te guiar na tua viagem e te preservar de todo perigo”, nenhum mérito teria tido Tobias. Fiando-se no seu companheiro, nem sequer de pensar precisava. Essa a razão por que o anjo só se deu a conhecer ao regressarem”.
Voluntariamente, ou não, deixou o fundamental pelo acessório. O fundamental, o essencial, no episódio, é o fato de o anjo Rafael ter vindo em auxílio do velho Tobias, atendendo a preces por este feitas a Deus. Quando Tobias, o moço, e Rafael puseram-se a caminho, numa viagem longa, conviveram durante muito tempo, venceram obstáculos, até chegarem à casa de Raquel. Lá, conversaram, cearam, etc. Rafael assistiu às festas nupciais de Tobias e Sara, filha de Raquel. Depois, o anjo, acompanhado por quatro criados de Raquel e dois camelos, foi à cidade, ao encontro de Gabelo. De volta, participaram, Rafael e Gabelo, do banquete de boda. Tobias, o moço, vai a Nínive, em companhia de Rafael, e retornam à casa do velho Tobias (ver O Livro de Tobias, editado pela FEB). Durante tão largo tempo de convivência, o jovem Tobias não chegou jamais a perceber que Rafael (ou Azarias, nome que este usou) não era um homem comum, mas um anjo, um espírito evoluído, que, servindo a mandado de Deus, ali fora para ajudá-lo, como para curar seus pais, que haviam feito jus a essa ajuda, pelo muito que veneravam o Senhor. Em nenhum momento, Rafael deixou de se portar como um homem aparentemente igual a Tobias.
Kardec, que conhecia o caso, tanto que o citou em O Evangelho Segundo o Espiritismo, não deixou, repetimos, nenhuma observação particular a esse respeito. Fora de dúvida, porém dele deve ter-se lembrado, quando se ocupou da obra lançada à publicidade por J.-B. Roustaing (A Revelação da Revelação ou Os Quatro Evangelhos), e talvez não sentisse ainda o momento para definições, no que diz respeito à fluidez do corpo de Jesus, assunto que reputava melindroso, preferindo, por isto mesmo, guardar a mesma neutralidade que já demonstrara em outra oportunidade.
Essa posição, no entanto, de modo algum infirma a obra “de” Roustaing, como não a infirmou, obra extraordinária, de eloquente e positiva interpretação dos fatos evangélicos à luz do Espiritismo Cristão. Tanto assim foi que, na Revue, Allan Kardec escreveu, relativamente a Os Quatro Evangelhos, que tal obra tinha “O MÉRITO DE NÃO ESTAR EM CONTRADIÇÃO, POR QUALQUER DE SEUS PONTOS, COM A DOUTRINA ENSINADA EM O LIVRO DOS ESPÍRITOS E EM O LIVRO DOS MÉDIUNS”.
*
Não raro, a vaidade pessoal fomenta a insistência oposicionista, a má compreensão ou o espírito de sistema, da parte de adeptos, como já se disse, que “entraram no Espiritismo, mas nos quais o Espiritismo não entrou”... Mas essa oposição tem um aspecto favorável, que é trazer sempre, na “crista da onda”, a formidável obra mediúnica que Roustaing corajosamente divulgou.
Vejamos a Revue Spirite, de junho de 1867, e destaquemos este trecho da autoria de Kardec:
“Dissemos acima que o Livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios exarados em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns; as nossas observações, por conseguinte, entendem com a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos fatos. É assim, por exemplo, que aquele livro dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico concretizado, com as aparências da materialidade e dele faz um agênere. Aos olhos dos homens, que então não lhe teriam podido compreender a natureza espiritual, ele teve que passar, na aparência, palavra esta que incessantemente se repete no curso inteiro da obra, por todas a vicissitudes da humanidade. Desse modo se explicaria o mistério do seu nascimento: Maria não teria tido mais do que as aparências da gravidez. Este ponto, estabelecido como premissa e pedra angular, é a base em que o autor assenta a explicação de todos os fatos extraordinários ou milagrosos da vida de Jesus. NADA HÁ NISSO, SEM DÚVIDA, DE MATERIALMENTE IMPOSSÍVEL PARA QUEM CONHECE AS PROPRIEDADES DO ENVOLTÓRIO ESPIRITUAL” (o versal é nosso).
Há, contudo, a apontar que, ao contrário do que se lê, na 16ª linha do trecho reproduzido, Roustaing não foi o autor da obra, ditada por Espíritos superiores à Srª Emilie Collignon, “médium absolutamente mecânica, dama da alta sociedade, e que, pessoalmente, não concordava com a teoria do corpo fluídico, enquanto os Espíritos a lançavam pelo seu lápis” (ver Elos Doutrinários, de Ismael Gomes Braga, 2ª edição da FEB, 1961, pág. 14). A respeito ainda da reputação da Srª Collignon, transcrevemos a palavra de Kardec, da página 288 da Revue Spirite de 1865, em noticiário por ele assinado:
“Temos o prazer e o dever de chamar a atenção de nossos leitores para essa brochura “Palestras Familiares sobre o Espiritismo”, por Mme. Collignon, que inscrevemos com prazer entre os livros recomendáveis” (ibidem).
A propósito do mistério da virgindade de Maria Santíssima, cujo nome declinamos com o mais profundo respeito, nada teve de milagroso. Tampouco pode ser, hoje em dia, considerado mistério, tantos são os casos de “falsa gravidez” registrados nos anais da Medicina. Nós mesmos conhecemos um deles, ocorrido com pessoa de nossa amizade. É mais uma das numerosas “novidades” seculares. Em seu famoso livro Les vierges mères et lês naissances miraculeuses, do qual foi editada um síntese, traduzida para o português pelo Dr. Gastão Pereira da Silva (As Virgens Mães e os Nascimentos Miraculosos, livraria Império, Rio), diz Pierre Saintyves:
“Justino parece ter sido o primeiro a argumentar, servindo-se das fábulas pagãs, para justificar o nascimento milagroso de Cristo. Mas esse antigo platoniano parece também querer passar de largo no que respeita à lenda que corria acerca do autor dos Diálogos”.
- “Quando dizemos que o primeiro verbo, nascido de Deus, Jesus-Cristo, nosso Senhor, foi gerado sem operação carnal, que foi crucificado, que morreu, que ressuscitou e que subiu ao céu – damos curso a uma história tão estranha como a daqueles seres a quem chamais filhos de Zeus” (página 152).
Na mesma página: “Orígenes é menos reservado. Este argumenta assim contra Celso:
- “Que haverá, pois, de incrível em dizer que Deus, tendo resolvido enviar aos homens um mensageiro, em tudo divino e extraordinário, quisesse para seu filho um nascimento também extraordinário em tudo, em vez de nascer de um homem e uma mulher, do mesmo modo que os outros?”
À página 153:
“... S. Jerônimo, por seu lado, vai na mesma ordem de ideias:
-“Pensavam que o príncipe dos Sábios – disse ele – não poderia ter nascido senão de uma virgem.
“Mas também, quando trata de responder a Helvídio, que se servia dos irmãos e das irmãs do Cristo para argumentar contra a virgindade de Maria, o que encontrava ele para lhe retorquir? Nada menos do que estas palavras:
-“Eu poderia, em rigor, dizer-te que José, a exemplo de Abraão e de Jacó, teve muitas esposas – e que os irmãos do Senhor são filhos dessas esposas. E, na verdade, dando-te esta resposta, não faria mais do que seguir o sentimento geral. Mas esse sentimento é temerário e fere a piedade. Tu pretendes que Maria não ficou virgem. Pois bem: eu afirmo que o próprio José era virgem e que o Cristo, virgem também, nasceu de um casamento de virgens.”
“S. Jerônimo repele, pois, a opinião do seu adversário. E não fica aí: também proclama a virgindade do próprio José e contradiz por este meio a tradição da primitiva igreja, que fazia dos irmãos e das irmãs de Jesus os filhos de um primeiro casamento de José” (sic) (pág. 154).
Relativamente aos chamados “irmãos de Jesus”, a FEB editou um livro muito interessante, de instrutiva conferência proferida por Kruger Mattos, o qual convidou Manuel Quintão para prefaciá-lo. Este, escusando-se em respeito a velho princípio de não prefaciar livros, escreveu-lhe uma carta, incluída, “À guisa de prefácio”, da qual reproduzimos as linhas finais:
“Sem embargo, se você, meu caro Kruger, quiser um conselho, aqui lho dou com fidelidade de coração: dispense o prefácio. Seu trabalho não precisa de anteparos, vale pela só estrutura e o seu nome não requer credenciais. – Irmão e servo em Cristo – (a) MANUEL QUINTÃO.”
Convém que os interessados leiam esse precioso livrinho, tanto mais que está recomendado por Manuel Quintão, cujo nome dispensa novos comentários jubilosos.
Por conseguinte, não há motivo algum para espantos, nem para assomos de revolta, quando se diz que a gravidez de Maria Santíssima foi apenas aparente, tanto mais que não existe nenhuma referência ou a mais leve insinuação histórica quanto ao parto, propriamente, pois que a tradição cristã assim descreve o maior acontecimento humano de todos os tempos:
“Ora, o nascimento de Jesus-Cristo foi desta maneira: Estando Maria, sua mãe, já desposada com José, antes que se ajuntassem, ela se achou grávida por virtude do Espírito Santo. José, seu marido, sendo reto e não a querendo infamar, resolveu deixá-la secretamente. Quando, porém, pensava nestas coisas, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, dizendo: José, filho de David, não temas receber a Maria, tua mulher; pois o que nela foi gerado, é por virtude do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem chamarás JESUS, porque ele salvará seu povo dos pecados deles. Ora, tudo isso aconteceu, PARA QUE SE CUMPRISSE O QUE DISSERA O SENHOR PELO PROFETA: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado Emmanuel, que quer dizer – Deus conosco. José, tendo despertado do sono, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua mulher, e não a conheceu enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de JESUS.” (Mateus, cap. I, vv. 18-25.)
A reedição deste livro, com o constituir a satisfação de um imperativo do meio espírita, representa, simultaneamente, uma reverência ao correligionário exemplar, que fio Manuel Quintão, servidor de indubitável devotamento ao Cristo de Deus, a quem procurou dar tudo de si, pondo amor em seus atos e palavras, ao levar a luz do Evangelho e da Doutrina onde quer que a treva comprometesse o avanço dos que aspiram ir ao encontro do Pai bem-amado. As discussões, os debates, as controvérsias, quando sustentados com superioridade de vistas, trazem sempre benefício geral, principalmente quando versam sobre a personalidade do Cristo de Deus, a cuja soberania espiritual estão entregues os destinos da humanidade terrena.
Quintão não impõe: expõe. Predicador convincente, pela sedução do verbo e a segurança dos argumentos, põe o coração na lide, sem se presumir sábio, pois acata o direito da livre opinião. Contudo, considerava dever de cada um, respeitando embora a liberdade de pensar e de dizer de todos, usar desse mesmíssimo direito em defesa de princípios sacratíssimos, em se tratando de Jesus, tal como o fizeram Bezerra de Menezes, Bittencourt Sampaio, Antônio Luiz Sayão, Pedro Richard, D. Romualdo Seixas, Leopoldo Cirne, Guillon Ribeiro, Wantuil de Freitas, Ismael Gomes Braga e outros, cujos rastros são inapagáveis, no roteiro do Espiritismo Cristão.
Sem polemizar, porém, orientando no esclarecimento oportuno, pois é de luz que o mundo precisa, fê-lo com a alma aberta, convicto de que o Evangelho é a alma do Espiritismo Cristão, tal como disse Bittencourt Sampaio:
- “Não há por onde fugir: ou o Evangelho é assimilado, ou não há Espiritismo. Porque, para o Espiritismo cristão, um único código existe: o Evangelho de N. S. Jesus-Cristo. Fora daí só haverá diletantismo inócuo, incapaz de levar o homem à felicidade dos eleitos.”
A leitura desse livro, feita com o coração livre de preconceitos e agravos, antes com a vontade de por ele receber o banho lustral do conhecimento em espírito e verdade, trará benefícios, porque, disse Paulo, “onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade”.
Rio de Janeiro, 1° de novembro de 1975.
INDALÍCIO H. MENDES”
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