terça-feira, 12 de julho de 2011

02 / 02 'Roma e o Evangelho" - 2



após o 'Prefácio do Tradutor' lemos...
            
Quatro palavras ao leitor

                Quando, no intuito de estudarmos o Espiritismo, demos princípio, em maio passado, ás nossas reuniões, bem longe estávamos de suspeitar que um dia havíamos de publicar o resultado dos nossos modestos trabalhos.

                Levávamos a suspeita de encontrar, na nova doutrina, pontos ridículos - flancos vulneráveis – e motivos mais que suficientes, não só para a votarmos ao desprezo, como para sepultá-la por atentatória das sábias leis da moral evangélica; caso em que estávamos, de antemão, resolvidos a dissolver as nossas reuniões, volvendo cada um de nós ao seu estado anterior.

                Força, porém, é confessar que redondamente falsa era aquela suposição e que infundada e ilegítima era ela.

                Em vez de teorias ilógicas – afirmações ridículas – crenças supersticiosas e absurdas – e moral suspeita, deparamos com uma filosofia robusta e acessível à razão, sancionada pelos fatos e solidamente firmada nos ensinamentos de Jesus Cristo.

                Movidos por uma força superior e irresistível, demos, em setembro, um caráter mais formal às reuniões, estabelecendo, em razão dos estudos feitos e das ideias aceitas, o Círculo Cristiano-Espiritista, já então decididos a darmos, oportunamente, ao público, o fruto dos nossos trabalhos.

                Sem o impulso superior e sem a força da convicção e do dever que nos fizeram corajosos, não nos atreveríamos a publicar este livro.

                Frágeis e fracos para resistirmos ao sopro do Aquilão – sem abrigo, além da consciência satisfeita, para enfrentarmos com a tempestade, bem sabíamos que, da publicação deste livro, só colheríamos desgostos e amarguras.[1]

     Débeis pigmeus, arrojamo-nos a por os olhos num colosso de dezenove séculos, cujo simples estremecimento podia aniquilar-nos.

     Por que, então, não vacilamos – não trememos? Por que, como David, nos oferecemos às iras de Golíat?
 
      Por que tão insólito valor, quando sabíamos que éramos irremessivelmente vítimas da força?

     Ah! Uma voz mais poderosa que a de todos os colossos da Terra, soou clara aos nossos ouvidos – e nós seguimos os seus preceitos, tomados da loucura do dever a que estamos resolvidos sacrificar tudo.

     Como os primeiros cristãos, temos a fé precisa para desenrolar o divino estandarte dos ensinos de Jesus, embora tenhamos de sucumbir à sua gloriosa sombra.

     Não nos amaldiçoeis, sacerdotes do Cristo, que vos julgais depositários da verdade absoluta. Somos vossos irmãos – e, mesmo que recusásseis o vosso coração à caridade, tão recomendada pelo Enviado do Altíssimo, não deixaríamos de sê-lo.

     Nós vos amamos e bendizemos, porque devemos assim fazer – porque devemos amar e bendizer todas as criaturas emanadas do pensamento de Deus.

    Não nos amaldiçoareis, não? Dizeis-vos cristãos – e estamos certos de que procedereis como cristãos. Não ignorais que Jesus repreendeu severamente a Tiago e a João[2] quando pediram o fogo do céu para samaritanos que recusaram recebê-los em uma das suas cidades.

     E o que faríeis, se chegasse a vós outros a palavra de Jesus dizendo-vos: “fazei isto?”
     Faríeis o que o Mestre vos ordenasse; e, pois, deixai que o façamos nós.

     O fim do presente livro é justificar o nosso procedimento e combater os erros plantados pelos homens na religião cristã, demonstrando que o Evangelho, longe de opor-se à realização do progresso condenado pelos decretos de Roma, é a fonte e a grande alavanca do progresso infinito da Humanidade.

     É assim que, convencidos os homens de que o Cristianismo satisfaz a todas as necessidades e legítimas aspirações, abraçá-lo-ão com entusiasmo e fé – e desaparecerão o indiferentismo e o culto da matéria.

     Como, porém, a existência dos erros supõe a de indivíduos ou classes que os aceitam e sustentam, é impossível combatê-los sem ferir as suscetibilidades destes.

     A fim, portanto, de evitar falsas interpretações que não estão em nosso ânimo, declaramos formalmente que, nem antipatias, nem prevenções, nem má-vontade, e tampouco desejo de ofender ou prejudicar alguém, moveram, direta ou indiretamente, a nossa pena, pois ela é exclusivamente dirigida pelos impulsos da consciência.
     Quando censuramos, referindo-nos ao clero ou às autoridades da Igreja, deve isso ser entendido como dirigido aos erros e abusos, nunca porém aos indivíduos ou classes;  pois que, se nos julgamos autorizados a censurar mistificações, direitos não presumimos ter de condenar os que porventura vêem o bom uso no abuso - e a verdade no erro.

     E como poderíamos condenar, se o princípio capital da nossa doutrina é a caridade e o perdão?

     Tudo tem sua razão de ser – e tudo contribui e coopera para o cumprimento da lei que preside à criação.

     Moisés não podia deixar de preceder a Jesus, porque o povo hebreu, então grosseiro, material e prevaricador, não estava em condições de receber o Evangelho.

     Tampouco Jesus, não ensinou tudo o que sabia, porque a geração do seu tempo não suportaria o peso de todas as verdades[3].

     Por isso, ele serviu-se de alegorias e de parábolas que, se no momento se prestavam a errôneas interpretações, mais tarde deveriam ser entendidas em seu verdadeiro sentido.

     Quem, entretanto, poderá com razão acusar Moisés, pela dureza das suas leis, e Jesus, por haver falado ou dito em linguagem obscura o que não convinha revelar?

     A inspiração e a palavra de Deus são sucessivas, e a Humanidade vai recolhendo-as à medida das suas necessidades.

         Por conseguinte, não podemos culpar a Igreja Romana por erros que não são seus, mas sim da miséria dos tempos e da ignorância das gerações que se têm sucedido após a morte de Jesus.

     Se, depois do exposto, alguém se julgar ferido por qualquer frase nossa, sentiremos; mas a culpa não é nossa.

     As pessoas, repetimos, merecem-nos indistintamente o mais cordial respeito; os erros, eis o que nos propomos combater.

     Lérida, abril de 1874.
                                                               O Círculo Cristiano-Espiritista.


[1] Poucos meses depois de publicada esta obra, o Ministro da Instrução Pública na Espanha, Marques de Orovio, suspendia dos seus empregos de Diretor e segundo Professor da Escola Normal de Lérida, por causa de suas opiniões filosófico- religiosas, a D. Domingo de Miguel, presidente do “Círculo Cristiano=Espiritista”, e o autor do “Roma e o Evangelho”.
[2]   S. Lucas, cap. IX, vers. 54, 55 e 56.
[3]    S. João, cap. XVI, vers. 12.

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