domingo, 5 de junho de 2011

Grande era o Couto!




O Nascimento

Vivíamos os últimos dias de um abril que se faz longe. Corria o ano de 1865.  As águas de março já haviam lavado o verão como diria o poeta Tom Jobim, mas muito, muito mais tarde. Dna Maria Rosa carregara aquela gravidez em seu ventre por todo o verão. Sentia-se cansada. Sentia-se feliz também. Tudo corria bem apesar da luta pela sobrevivência continuar muito difícil na singeleza de um sobradinho na Prainha, no Rio de Janeiro.

O 1º de Maio amanheceu diferente... As contrações se faziam mais frequentes. A certeza de que se aproximava a hora do nascimento se tornava maior a cada minuto. Chamou seu marido  - Francisco de Oliveira Couto e pediu que chamasse a parteira. Pediu? Não sabemos ao certo. A humanidade ainda teima em apagar de sua memória todos os pequenos fatos que fazem a beleza da história dos grandes homens. Toalhas quentes.. Jarras de água.. E o trabalho de parto prosseguia.

Dona Maria Rosa era Dona Maria Rosa do Espírito Santo. Um santo espírito sem dúvida como confirmaremos mais adiante.
E, em meio às dores, Dona Maria Rosa rezava.
Rezava e dizia: Fazei Mestre Jesus de meu filho um Homem de Bem... Que ele pratique a vossa lei de justiça, de amor e de caridade em sua maior pureza. Que interrogue sua  consciência sobre seus próprios atos, que pergunte a si mesmo se não viola essa lei; se não faz o mal e se faz todo o bem possível; que não negligencie voluntariamente uma ocasião de ser útil; se ninguém terá o que reclamar dele; enfim, se faz / fará a outrem tudo o que quereria que se fizesse para com ele.

Por instantes, dores intensas afastaram Dna Maria Rosa de suas orações.  Minutos após, nascia um menino de profundos olhos negros, pleno de saúde e cercado de muita luz.

 A Mudança para Niterói

Os primeiros cinco anos se consumiram. Vivíamos então o ano de 1870. O menino crescia forte num ambiente saudável apesar da pobreza. Sem compreender bem o que se passava em torno dele, o filho de Dona Maria Rosa notou que algo mudara. Seu pai não voltava mais ao lar. Não o acariciava mais. É que o Sr Francisco havia desencarnado e o pequeno menino disso nem se apercebera. Afinal, tinha apenas 5 anos...

Começa, então, a luta intensa, incessante, de sua mãe, aquela criatura a quem o menino ficou devendo boa parte de sua extraordinária formação moral. A outra parte, hoje sabemos, veio dele próprio - do filho de Dona Maria Rosa - em sucessivas reencarnações ascendendo sempre a planos superiores.

Na Europa, Kardec recém retornara ao plano espiritual. Os 5 tijolinhos  porém, fundamento da 3ª Revelação, lá ficaram em Paris (num primeiro instante) e no mundo (nos tempos que virão).

Dona Maria Rosa tinha fé em Deus, em sua bondade, em sua justiça e em sua sabedoria; sabia que nada ocorre sem sua permissão e se submetia, em todas as coisas, à sua vontade. Tinha fé no futuro; por isso colocava os bens espirituais acima dos bens temporais. Sabia que todas as vicissitudes da vida, todas as dores, todas as decepções, são provas ou expiações, e as aceitava sem murmurar.
Dona Maria Rosa porém precisava do pão à mesa e buscou a cidade de Niterói como moradia. Lá havia serviço... Serviço pesado que a obrigava a curvar-se por horas diante de uma máquina de costura. Fardas do Arsenal de Marinha precisavam ser entregues. Panos grossos... mãos doloridas. E a costura prosseguia... interminável.

Cresce o menino

Um dia,  Dona Maria Rosa adoece... Era o cansaço promovido a doença. Chamado, o médico - Dr Paulo César de Andrade - bate à porta, entra, e com ele - além do conforto moral - o alívio para sua mãe. Este fato desperta no filho de Dona Maria Rosa uma enorme vontade de ser doutor, objetivo que ele passa a perseguir incansavelmente.

O filho de Dona Maria Rosa aprendia com o Dr Paulo César o conceito supremo na medicina... Medicina? Medicina é a arte de consolar!  
O filho de Dona Maria Rosa queria ser Doutor...
E Dona Maria Rosa começa a ''coser'' um doutor.. 
Daquelas agulhas havia de sair um doutor !

Primeira lição!
Filho .. lembre-se sempre que o homem, possuído do sentimento da caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem esperança de recompensa, retribui o mal com o bem, toma a defesa do fraco contra o forte, e sacrifica sempre seu interesse à justiça.
 E o filho de Dona Maria Rosa escutava sem perder uma só palavra da lição que sua mãezinha lhe colocava de forma tão suave.

Juventude e Caráter

Deixou escrito o filho de Dona Maria Rosa...

''A formação de meu caráter fez-se sob a influência preponderante de duas mulheres: a primeira, minha mãe, que costurava dia e noite para extrair do anonimato da nossa extrema pobreza um doutor; também não lhe fui um filho, mas uma filha, e enquanto viveu privei-me de constituir família para não diminuir a dedicação que lhe devia...''.

Aos 15 anos entra o filho de Dona Maria Rosa na faculdade de medicina.  (existem autores que apontam para a idade de 14 anos como a idade de ingresso na universidade e não  a de 15 anos).
Como isso foi possível?
Dizem alguns que o papel tudo aceita...

No mesmo dia em que o filho de Dona Maria Rosa completava seus 15 anos - 1º de Maio de 1880 - retornava à Terra um nobre espírito que ganharia nessa nova caminhada terrestre o nome de Eurípedes Barsanulfo reencarnando em Sacramento, Minas Gerais. Mas essa é uma outra linda história a ser contada...

Médico !

Luta contínua, lampião de querosene a iluminar folhas de livros, hospital, estudo, estudo, hospital, luta, luta, mais luta... e um belo dia, depois de uma série de tentativas, esperanças, dúvidas,  hesitações,
surge num modesto sobrado da Prainha
uma placa, um nome e uma profissão:

Miguel Couto, médico




Dr Miguel sai de casa para atender os doentes do bairro. Dr Miguel sobe e desce morros que o deixam sem fôlego; vai recomeçar, diariamente,
uma luta árdua, difícil.
Não se trata mais de examinar gatos e cães como fazia na meninice. Agora muitas vidas humanas dependem dele. Muitos seres confiam-lhe o que possuem de mais precioso. A vida !









Dr Miguel está tonto de sono.
O cansaço invade-lhe o corpo.
Anda. Anda muito. Anda sem parar.
Só para à porta do sobrado onde mora na Prainha.
Lá o esperam dois doentes e muitos recados.
Melhoras, pioras, na mesma. E ele continua.

Dr Miguel não pode parar.
Dr Miguel não sabe parar enquanto um apenas de seus pacientes esteja em aflição. Do seu movimento dependem muitas vidas. Vidas que confiam nele.
Dr Miguel sorri. Não há amargura no sorriso. Apenas resignação. Sorri... mas não para!

Segue... Ana melhorou? Carlos já foi operado?
O Toninho continua com o xarope?
Cansaço.. Cansaço... cansaço... Sono.
Não.. Não é caso de morte, senhora. Ficará bom. Completamente bom (ficará mesmo?).
Dr Miguel não pode parar.

Seu primeiro movimento é de pensar nos outros antes de pensar em si, de procurar o interesse dos outros antes do seu próprio. Dr Miguel encontra satisfação nos benefícios que derrama, nos serviços que presta, nos felizes que faz, nas lágrimas que seca,
nas consolações que dá aos aflitos.
          Seu primeiro movimento é de pensar nos outros antes de pensar em si, de procurar o interesse dos outros antes do seu próprio.

         Dr Miguel é bom, humano e benevolente para com todos, sem preferência de raças nem de crenças, porque vê irmãos em todos os homens. Respeita nos outros todas as convicções sinceras, e não lança o anátema àqueles que não pensam como ele.

A figura de Venceslau comparece em vários momentos da história do Dr Miguel Couto. Deste modo... sem sobrenome. Apenas Venceslau....

Uma delas se inicia assim...

Você mandou fazer os remédios, Venceslau?
Venceslau encabula. Gagueja. Tenta mentir. Não sabe !
'- Não tinha dinheiro', diz ele.
Dr Miguel mete a mão no bolso.
 Lá no fundo jaz uma nota qualquer, a única.
-Olhe, Venceslau. Você me desculpe.
Não tenho mais que isso. Mande aviar a receita.
-Doutor. Eu não tenho coragem. O senhor sabe...
-Sim. Eu sei... mas ela precisa tomar o remédio. Vá!
-O senhor é um santo, doutor.
Dr Miguel sorri sem jeito.
-Não, Venceslau. Não sou santo. Sou médico.
Qualquer médico faria a mesma coisa.
Venceslau encara-o muito sério, e ante a estupefação do Dr Miguel grita bem alto, separando cada sílaba:
É men-ti-ra !



Outro personagem que comparece em vários momentos na história do Dr Miguel é o do enfermeiro e ajudante por mais de 20 anos. Seu nome?  Carlos. Assim...  assim... Também sem sobrenome. Apenas Carlos....

Contava Carlos que Dr Miguel dizia sempre:
''-Seu Carlos. Eu não quero que o senhor cobre nada dessa gente que vem aqui várias vezes.
Esses já são meus amigos.
Quando alguém vier me procurar veja se é pobre.
Se for... não cobre nada.
Eles são meus amigos.

E sorrindo satisfeito repetia:
São todos meus amigos !

Se algum doente, furtivamente, procurava fazer chegar o dinheiro às suas mãos, podia estar certo de que,
na semana seguinte,
o dinheiro lhe seria devolvido num envelope.

São todos meus amigos, seu Carlos.
São todos meus amigos!








O enfermeiro Carlos contava ainda..

No bolso do colete do Dr Miguel
havia sempre dinheiro para distribuir...
''-Você não tem dinheiro para o remédio,
não é verdade?
Aí, enfiava os dedos no bolso do colete e lá vinha uma quantia qualquer, que oferecia com discrição, sem ferir, sem humilhar, sem fazer sentir.
 Do bolso daquele colete saia uma fortuna, dizia Carlos..

De Carlos, obtivemos ainda o seguinte comentário...
O Dr Miguel era muito religioso.
 Sempre que lhe faziam homenagem,
não dispensava a missa.
Usava um 'santinho'.
Com ele... dois.
Era um santo confiando noutro santo.

Dr Miguel enfim transformava todos em amigos, amigos sinceros, amigos dedicados, amigos amigos...

Dr Miguel não lisonjeava. Estimulava.
Dr Miguel não ironizava. Sorria.
Dr Miguel não mentia. Consolava.

Dr Miguel fazia da doença a sua doença.
Das dores a sua dor.
Era delicado no trato, brando ao falar,...
eram todos seus amigos.!

Historinhas como esta nos fazem sentir saudade daquela época. Um só Rio de Janeiro contando com dois espíritos de enorme grandeza moral: Dr Miguel e Dr Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti, então com seus 60 anos bem vividos, já espírita e desde sempre pleno de amor aos pobres e desafortunados.

Ambos encontravam satisfação nos benefícios que derramavam, nos serviços que prestavam, nos felizes que faziam, nas lágrimas que secavam, nas consolações que davam aos aflitos.
          
Cadáveres
 Doutor Miguel jamais conseguira encarar impessoalmente um cadáver. Aquilo não era para ele apenas uma peça para um estudo de Anatomia.
Era algo mais profundo.
Ele imaginava o que aquele ser dissecado tinha sido em vida. Sonhara, provavelmente com riquezas, glória, poder... Deixara filhos? provavelmente...
Deixara uma esposa? Talvez.
E agora? Agora estava alí, talhado, retalhado, dissecado, servindo a alunos de Faculdade que nele estudavam e aprendiam para aplicarem seus conhecimentos aos que ainda vivos  conservavam sonhos de poder, glória e riqueza...
Da vida nada se leva senão a vida que se leva...




Dr Miguel casou-se com a Sra  Maria Jales Couto em 1898. Foram, pois, 36 anos de união.
Foi para ela a afirmação que fez pública:
''-Sois a inspiração de minha vida.''

Carlos Chagas

Assim se expressou Carlos Chagas,o famoso sanitarista, que privou da intimidade do Dr Miguel por toda a vida::

Miguel Couto foi um homem de uma bondade integral, sem falhas e sem paralelo; bondade que iluminou toda uma existência e esparziu pela vida benefícios sem fim; bondade que se transformou numa grande força de equilíbrio social, um poderoso fator de aperfeiçoamento, um elemento preponderante na formação espiritual de numerosos discípulos...''

Uma ocasião, os doentes da 7ª enfermaria da Santa Casa quiseram homenageá-lo. Um doente humilde lhe entrega um ramo de flores e diz, em sua linguagem simples ser ele Dr Miguel o médico que tratava os pobres como se fossem ricos.
A resposta, emocionada, foi, mais ou menos assim:
''- Vivi 10 anos no meio da pobreza. Nela plasmei minha individualidade de maneira que os ricos me parecem pobres também porque, diante de Deus, todos somos iguais...''



Foram muitas as participações
do Dr Miguel sobre os fatos e coisas de seu tempo.

A seguir apresentamos algumas de suas colocações na tribuna da Academia Nacional de Medicina:

''Ainda não penetrou bem em todas as consciências  e se torna necessário repetir monotonamente a cada hora, que a primeira riqueza de uma nação é o homem, e seu sangue, e seu cérebro, e os seus músculos, e que ela ( a nação) está fatalmente condenada à decadência e ao desaparecimento, quaisquer que sejam os tesouros naturais que encerre, quando o homem que a habita não a merece''.

Outra mais...

O Brasil não é só o dia de hoje, é o amanhã dos nossos filhos, e se a pátria os quer fortes para defendê-la e cultos para elevá-la, cumpre-lhe não os esquecer um momento.''

e ainda...

''Só há um problema nacional: a educação do povo. A decadência da raça não se há de fazer na nossa terra, e o remédio soberano é a cultura;;a saúde dando-lhe a força e a beleza, a cultura dando-lhe a ambição e a bondade.''


e + esta

''Sem educação não há superioridade moral e sem superioridade moral não há pátria. Para chegar a esta perfeição nunca é demasiado o sacrifício que se peça ao povo. Quanto mais os governos gastarem com os futuros pais, menos empregos terão que inventar para os filhos.''

Dr Miguel foi um defensor intransigente da melhoria na educação do brasileiro.

Finalmente repare-se uma injustiça:
Dr Miguel era contra a imigração japonesa no Brasil. Posto assim, em poucas palavras, como se lê em muitas sinopses, soa a racismo ou qualquer coisa assemelhada. Não foi assim. A posição do Dr Miguel a respeito do tema sempre foi justa e sensata apesar do desdobramento do tema não encontrar espaço nesses comentários. Numa outra oportunidade; num outro tempo, num outro espaço, um outro alguém deverá colocar o assunto com o detalhamento e justiça que ele merece.









De uma de suas aulas de laboratório,
retiramos o que se segue:

Era um homem atacado de bronquite.. Na mão trazia timidamente uma receita cuja fórmula já havia sido aviada. E Dr Miguel mostrava aos alunos a 'xaropada'.

Disse ele: ''-Vede que na garrafa entrou toda a farmácia só faltando o farmacêutico, e imaginem como ficou tonta a natureza para atender a tantas ordens ao mesmo tempo. Nenhuma prova maior podia dar esse farmacêutico da falta de confiança em cada uma das substâncias componentes da sua fórmula, pois se a tivesse numa, seria essa a única prescrita.

São médicos de fórmulas feitas; só creem nelas como as viram arquitetadas ou as arquitetaram, e com elas caem em cima dos doentes e dos colegas.

 E, em verdade, contra as doenças ou nada há a fazer, dada a fatalidade das coisas humanas e tudo se permitem administrar ao doente para iludi-lo, ou existem recursos a empregar, e se estes são medicamentos,
Há um, talvez dois, quanto muito três para cada doença, utilizados cada um a seu turno, na hora e na dose recomendável.''




Muitas foram as personalidades por eles recepcionadas quando de suas visitas ao Brasil.

(Marie e Pierre Curie receberam o prêmio Nobel de Física em 1903 pela descoberta do elemento 'Rádio' em 1898. Foi parcialmente substituído, pelo Cobalto-60 e pelo Césio-137 em suas aplicações na medicina.)

Trecho da saudação do Dr Miguel à Mme. Curie quando de sua visita à Academia de Medicina.

''Mme. Curie:
Nós vos recebemos como médica em nossa Academia de Medicina. Se não possuis o título, tendes a obra... É verdade que nunca examinaste um doente, e ninguém conhece sua sagacidade clínica; mas fizestes no domínio da medicina qualquer coisa de muito importante.. O que é, afinal de contas, a medicina? É a arte de curar... então, o maior médico é aquele que cura o maior número de doentes. Que grande médica sois! Que grande médica sois! Quantos doentes condenados ficaram devendo a vida às emanações miraculosas do vosso Rádio! É por isso também que a nossa Academia vos quis receber como médica. O número de associados estrangeiros à Academia estava completo e a Academia abriu uma exceção para vós conferindo-vos o título de membro honoris-causa. É pouco, Madame Curie, é muito pouco, mas é tudo o que podemos vos oferecer.''




Revolta da Vacina - Antecedentes
No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro, como capital da República, apesar de possuir belos palacetes e casarões, tinha graves problemas urbanos: rede insuficiente de água e esgoto, coleta de lixo precária e cortiços superpovoados. Nesse ambiente proliferavam muitas doenças, como a tuberculose, o sarampo, o tifo e a hanseníase. Alastravam-se, sobretudo, grandes epidemias de febre amarela, varíola e peste bubônica.
Decidido a sanear e modernizar a cidade, o então presidente da República Rodrigues Alves (1902-1906) deu plenos poderes ao prefeito Pereira Passos e ao médico Oswaldo Cruz para executarem um grande projeto sanitário. O prefeito pôs em prática uma ampla reforma urbana, que ficou conhecida como bota abaixo, em razão das demolições dos velhos prédios e cortiços, que deram lugar a grandes avenidas, edifícios e jardins. Milhares de pessoas pobres foram desalojadas à força, sendo obrigadas a morar nos morros e na periferia.

Dr Miguel e a vacinação obrigatória
'' Se a minha voz pudesse ser ouvida por todos da minha terra, haveriam de reconhecer no seu acento, na sua vibração, ou melhor diria no seu quase tremor, a profunda sinceridade de um homem que praticou a sua arte como uma religião por mais de três decênios, e veio da pobreza própria e passou pela pobreza alheia, de morro em morro, de casebre em casebre, e nunca esqueceu nem esquecerá que foi aí que viu primeiro o coração humano como um livro aberto, com suas fibras à mostra, puras e singelas, e onde aprendeu a ser bom e piedoso ao lado de todos os que sofrem. Foi aí também que observou, como nunca, a varíola dizimar  impiedosamente, matando, mutilando, cegando pobres crianças imoladas pela incúria dos pais, para quem nem o remorso era castigo. E minha voz lhes diria que a ciência não mente, que remédio que vai de graça não leva interesse e que uma tremenda responsabilidade lhes pesa sobre a cabeça, chamados a dar contas da vida dos seus filhos e da beleza das suas filhas.''

Em todas as circunstâncias, a caridade era o guia do Dr Miguel; dizia a si mesmo que aquele que leva prejuízo a outrem por palavras malévolas, que fere a suscetibilidade de alguém por seu orgulho e seu desdém, que não recua à idéia de causar inquietação, uma contrariedade, ainda que leve, quando pode evitá-lo, falta ao dever de amor ao próximo, e não merece a clemência do Senhor.

Oswaldo Cruz, convidado a assumir a Direção Geral da Saúde Pública, criou as Brigadas Mata Mosquitos, grupos de funcionários do Serviço Sanitário que invadiam as casas para desinfeção e extermínio dos mosquitos transmissores da febre amarela. Iniciou também a campanha de extermínio de ratos transmissores da peste bubônica, espalhando raticidas pela cidade e mandando o povo recolher o lixo.   A revolta popular     Para erradicar a varíola, o sanitarista convenceu o Congresso a aprovar a Lei da Vacina Obrigatória (31 de Outubro de 1904), que permitia que brigadas sanitárias, acompanhadas por policiais, entrassem nas casas para aplicar a vacina à força.
A população estava confusa e descontente. A cidade parecia em ruínas, muitos perdiam suas casas e outros tantos tiveram seus lares invadidos pelos mata-mosquitos, que agiam acompanhados por policiais. Jornais da oposição criticavam a ação do governo e falavam de supostos perigos causados pela vacina. Além disso, o boato de que a vacina teria de ser aplicada nas "partes íntimas" do corpo (as mulheres teriam que se despir diante dos vacinadores) agravou a ira da população, que se rebelou.
A aprovação da Lei da Vacina foi o estopim da revolta: no dia 5 de Novembro, a oposição criava a Liga contra a Vacina Obrigatória. Entre os dias 10 e 16 de novembro, a cidade virou um campo de guerra. A população exaltada depredou lojas, virou e incendiou bondes, fez barricadas, arrancou trilhos, quebrou postes e atacou as forças da polícia com pedras, paus e pedaços de ferro. No dia 14, os cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha também se sublevaram contra as medidas baixadas pelo Governo Federal. A reação popular levou o governo a suspender a obrigatoriedade da vacina e a declarar estado de sítio (16 de Novembro). A rebelião foi contida, deixando 30 mortos e 110 feridos. Centenas de pessoas foram presas e, muitas delas, deportadas para o Acre.
Ao reassumir o controle da situação, o processo de vacinação foi reiniciado, tendo a varíola, em pouco tempo sido erradicada da capital.
Dr Miguel almoçava no consultório. Não tinha tempo para ir comer em casa. Seu consultório ficava à Rua dos Ourives nº 7  4º Andar no Centro do Rio.

Um dia o elevador parou.. E os cabos de sustentação do elevador ganharam do Dr Miguel  então,
o apelido de 'aortas'.
Assim afirmava jocosamente o cabineiro...
'' - Dr Miguel! É preciso receitar um
'remédio' para o elevador.''

Dr Miguel sente a aproximação de seu desenlace

O elevador que o levaria ao 4º andar do prédio onde se situava a sua clínica não estava funcionando naquele dia. Ao defrontar-se com a situação percebeu que não se sentia bem. Sorriu. Aquele olhar de energia e piedade, como que adquiria uma tonalidade resignada. Sua agilidade desaparecia. Cansado, via sua energia desaparecer. Aparentemente forte, resistente, infatigável, trabalhara em excesso. Nos últimos meses, então, consumira toda uma grande reserva de forças. Seu coração esboçou um protesto, a princípio tímido, depois em altos brados. e ele, diagnóstico feito e prognóstico sabido, a ninguém alarmou, calando sua dor.

Não era apenas o elevador que ia parar...

Mas o tempo mal dava para socorrer milhares de amigos, dar meditadas aulas na Faculdade, estudar e lutar para solução de problemas nacionais, estudar tudo, dividir  angústias, acumular gratidões. E eram muitos os clientes...

'' -Estás aí de novo, minha velhinha? Já sei que você não tem nada... Só veio fazer uma visita ao velho Couto, não é verdade? A velhinha 'que não tinha nada' carregava 'apenas' um câncer que lhe ia destruindo a vontade, a vida, tudo enfim. Dr Miguel sabia mentir com tanta arte, sabia consolar com tanta perícia, que transformava as piores formas de câncer em quistozinho sem importância, tremendos aneurismas em coisas de pouca monta e estados tenebrosos de alma em risonhas esperanças de cura.

Dr Miguel era indulgente para com as fraquezas alheias, porque sabia que ele mesmo tinha necessidade de indulgência. Não se comprazia em procurar os defeitos alheios, nem em colocá-los em evidência. Se a necessidade a isso o obrigava, procurava sempre o bem que podia atenuar o mal. Estudava suas próprias imperfeições e trabalhava, sem cessar, em combatê-las. Todos os seus esforços eram no sentido de poder dizer a si mesmo no dia de amanhã, que há nele alguma coisa de melhor do que na véspera.

O diagnóstico do elevador estava certo...
O elevador caiu ! Parou !

Dr Miguel alarmou-se.

Dr Miguel tinha que galgar quatro andares. O coração não protestaria? Soube da resposta logo depois. O coração protestaria em altos brados. Lá em cima o Dr Miguel estava quase sem ar. Ofegante. Entrou no consultório e pensou na morte. Nova dor. O fim estava próximo com toda a certeza. Tinha plena consciência da evolução do mal. Não, não era ainda o momento do desencarne.

O fim da Jornada - 12 horas de 6 de Junho de 1934

Uma missa na Igreja de Santo Antônio dos Pobres, próximo ao Campo de Santana. O recinto... repleto.
Dr Miguel era alvo de geral atenção.
Admirado, apontado, consagrado, venerado.
Ali, Dr Miguel  sentiu, com precisão absoluta, o fim.
Dor aguda, intensa, mais angustiosa que as outras, o assaltara. Não se alarmou. Tomou seu carro, passou pela drogaria e comprou um remédio. Conhecedor da gravidade do seu estado... foi para casa.

Dna Nena, sua esposa, apercebendo-se
 da gravidade da situação, medicou-o.
Seu filho, Dr Miguel Couto Filho, sua filha Elza, bem como colegas de profissão partiram céleres em direção ao palacete na Praia de Botafogo nº 280 que servia de moradia à família.




Foram suas últimas palavras ...
'' Morrerei tranqüilo porque tenho a certeza de que nunca fiz mal a ninguém. Pratiquei o bem sempre que pude. A morte é uma fatalidade biológica.
Deve ser aguardada com serenidade....




Logo após, morria Dr Miguel Couto.
aos 69 anos e 35 dias.

Morria do coração um  homem que vivera sempre pelo coração.

A sua morte foi apenas um acidente biológico que lhe cortou a vida física, mas ele continua  a viver na imortalidade da sua bela lição.

Seus despojos foram enterrados
no Cemitério de S João Batista, no dia seguinte ao falecimento.

Conta-se que, na hora do enterro, tanta foi a chuva que parecia que até o céu chorava.

Não sabiam eles que eram lágrimas de alegria de parte de seus mentores por constatar que mais um filho havia completado sua existência terrestre plena de sucesso.


Dr Miguel morreu como viveu...

Sem ódios, sem rancores, sem desejos de vingança;  perdoando e esquecendo,
não se lembrando senão dos benefícios que recebeu.  
Não procurou valorizar seus talentos às expensas de outrem; aproveitou, ao contrário, todas as ocasiões para ressaltar as vantagens dos outros. Não se envaideceu nem com a fortuna, nem com as vantagens pessoais, porque sabia que tudo o que lhe havia sido dado, iria lhe ser retirado quando do desenlace. Usou, mas não abusou, dos bens que lhe foram concedidos, porque sabia que era um depósito do qual deveria prestar contas
         A ordem social colocou homens sob sua dependência. Tratou-os com bondade e benevolência, porque eram seus iguais perante Deus; usou de sua autoridade para erguer-lhes o moral e não para os esmagar com o seu orgulho; evitou tudo o que poderia tornar qualquer posição subalterna mais penosa. O Dr Miguel Couto - foi, sem dúvida, um homem de bem...

Com a sua morte a Rua dos Ourives onde manteve seu consultório (nº 7  4º Andar) foi rebatizada como 
Rua Miguel Couto.








Dr Miguel de Oliveira Couto formou-se em medicina em 1885 tendo sido, nos dois últimos anos de faculdade, interno da Santa Casa de Misericórdia e ao mesmo tempo assistente, por concurso, da cadeira de clínica médica, regida por João Vicente Torres Homem.

Foi admitido na Academia Nacional de Medicina (1896), como membro titular, com o trabalho 'Desordens funcionais do pneumogástrico na influenza'.
Ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro como lente, por concurso (1898) e tornou-se professor de clínica propedêutica (1901), substituindo o notável professor Francisco de Castro.

Foi presidente da Academia Nacional de Medicina por largo período. (1914-1923).

De 1920 em diante, desfralda a bandeira de luta em prol dos grandes problemas nacionais: Defesa nacional, educação e saúde.

Como deputado à Assembléia Nacional Constituinte (1933), obteve a aprovação do projeto que destinava dez por cento das rendas da União para a instrução popular.

 Membro de numerosas instituições científicas nacionais e internacionais, como da  Société Médicale des Hôpitaux de Paris (1913), e doutor honoris-causa da Universidade de Buenos Aires (1922), recebeu as medalhas da Instrução Pública da Venezuela e
da Coroa da Bélgica.
Em 1917, é eleito membro da Academia de Medicina de Paris. Ainda em 1917, é eleito membro honorário.da Sociedade de Medicina de Buenos Aires
Membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 9 de dezembro (1916), foi empossado em 2 de junho (1919), destacaram-se entre suas obras 'Clínica médica' (1923), 'Nações que surgem', 'Nações que imergem' (1925) e
 'A medicina e a cultura' (1932).

O ano 1918 lhe traz ainda o título de membro honorário da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.

Uma cadeira na Academia Brasileira de Letras lhe chega em 191O
Os clássicos gregos e os latinos os bebia na fonte.

Recorria à literatura em inglês, alemão, francês, italiano e o castelhano como era  profundo conhecedor da língua portuguesa.
Participou de vários congressos de Medicina nos quais se destacou pela sua competência profissional, sendo considerado o mais notável clínico de sua época.

A permanência do Dr Miguel Couto entre os encarnados aconteceu num período de estrema riqueza de fatos históricos da maior relevância.

O 2º Reinado prosseguiu com Pedro II até 1889.

A Guerra do Paraguai (1864-170) levou 160 mil brasileiros a viverem os horrores da guerra e suas conseqüências. Destes, 60 mil não voltaram. Nos 110 mil sobreviventes um grande número de desajustes foram observados mas escassos eram os recursos disponíveis para lidar com tanto desajuste.

A escravidão persistia ..
A Lei do Ventre-Livre é de Setembro de 1871.
A Lei do Sexagenário é de 1885.
A Lei Áurea é de 13 de Maio de 1888.
À época, 5% (1 em cada 20 brasileiros era escravo) da população brasileira era constituída de escravos. (720 mil em 13,5 milhões).




Uma nova política de imigração foi implantada na virada do século 20. Certa? Errada? Não sabemos... Sabemos sim que em conseqüência dela ficaram os negros  agrilhoados à ignorância e a enormes dificuldades de acesso social.

Lembramo-nos ainda da Revolta da Chibata (1910); da Revolta contra a vacinação obrigatória (1904) já citada acima; da gripe espanhola (1918/1919) que dentre tantos nos privou o convívio com Eurípedes Barsanulfo.

A tuberculose e seu bacilo de Koch - Uma luta de 61 anos até a descoberta da estreptomicina em 1943.

Presidentes? Foram muitos. Iniciamos com Deodoro da Fonseca e após Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Sales, Rodrigo Alves, Affonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Wenceslau Brás, Delfim Moreira., Epitácio Pessoa, Arthur Bernardes, Washington Luiz e, iniciando o chamado 'Estado Novo'...
Getúlio Vargas em 1930.

Todos  mereceram a contribuição ou a crítica construtiva do Dr Miguel Couto.








Seu filho, Miguel Couto Filho, nascido em 1900, seguiu os passos de seu pai, formando-se também em medicina. Também fez parte da Academia Brasileira de Medicina. Foi eleito Governador do Rio de Janeiro em 1954. Faleceu em 1969.


Como os cansados leitores puderam perceber,
fizemos uma pequena biografia romanceada da vida do Dr Miguel Couto,- em plena atividade no plano espiritual - que encontrou na medicina uma forma de exercer seu amor ao próximo.

 Ajudou-nos Kardec através do texto
''O Homem de Bem'' constante do ESE.

Ajudou-nos também a obra  ''Grande era o Couto''
de autoria do Dr Pedro Bloch,
 publicada em 1943, entre outras. 


A nossa contribuição , fiquem certos, foi pequena porque... grande...

grande era o Couto!

8 comentários:

  1. Grande Aron,

    Parabéns pelo texto.
    Me permita fazer uma pergunta...
    O texto fala que, atualmente, o Dr.Miguel Couto trabalha nas esferas superiores, exercendo plena atividade no plano espiritual. Essa informação foi obtida aonde?

    Muito obrigado pela gentileza.

    um abraço

    Jonathas Felipe

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  2. Alguns dos que colaboram neste Blog trabalharam num Centro Espírita no Rio de Janeiro que tinha o Dr. Miguel Couto como um de seus orientadores espirituais. Fraternalmwnte,

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  3. Muito bom o texto. Sabia que tinha sido um grande médico e hoje eu sei então exatamente o que ele foi. Tenho plena certeza que está muito ativo na espiritualidade. As vezes lhe peço socorro e sempre sou atendida. Obrigada Aron

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  4. só veio a iluminar caminhos que edificam a espiritualidade nos, fazendo a reforma intima .para sermos um dia os trabalhadores da ultima hora.

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  5. Trabalhei por 40 anos na área de redação e supervisão de textos redigidos e de discursos de viva voz. Posso dizer, com base na minha experiência, que a crônica assinada pelo Dr. Miguel Couto (espírito) em livro psicografado pelo médium Chico Xavier corresponde perfeitamente ao estilo do espírito André Luiz, cujos livros também foram registrados pelo respeitado médium brasileiro. Diria mesmo que essa identidade de estilo ultrapassa o percentual de 95%. En passant, a mãe do Dr. Miguel Couto, D. Rosa do Espírito Santo, combina igualmente com a descrição do espírito elevado da mãe de André Luiz, como descrito na obra mediúnica "Nosso Lar", psicografada pelo eminente médium. Submeto, portanto, ao crivo dos amigos este meu depoimento humilde, que não tem outro propósito senão o de contribuir com a verdade.

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  6. Que se manifestem outros companheiros de fé com a mesma 'expertise'. Não estamos em condições de adicionar nada de útil aos seus comentários. Fraternalmente,

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  7. Lindo texto, exemplo de vida na caridade, Dr. Miguel Couto.

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