domingo, 29 de maio de 2011

'O Prelúdio e a Chave'


O Prelúdio e a Chave
Hermínio C. Miranda

            Foi numa época, em que o pensamento revolvia obsessivamente em torno de suas angústias maiores, que o querido Frédéric Chopin compôs a peça que acabou conhecida popularmente como o Prelúdio da Gota D’Água (Nº 15, em ré bemol maior ), no qual, a nota é repetida numerosas vezes, como a batida melancólica de uma goteira sobre a lata vazia, lá fora, enquanto cai a chuva. O meu Prelúdio da Gota D’Água é o trabalho mediúnico, com o qual tenho convivido desde que, pela primeira vez, me sentei à mesa com outros companheiros. Gosto de falar sobre isso. O aprendizado começou há mais de três décadas e, ainda agora, na última segunda-feira, não identifiquei no processo sinal algum de que o curso tenha terminado e de que estaria eu, afinal, diplomado e doutorado, como aquele que sabe tudo de tudo. Acho até que não concluí nem o curso primário.
            O leitor pode até pensar que isto é uma hipócrita falsa modéstia. Não é. Já disse e escrevi alhures, que tenho aprendido mais com os chamados obsessores do que lhes tenho ensinado. Ensinar o quê? Que somos espíritos sobreviventes, reencarnantes, comunicantes, sujeitos ao código universal da severa lei de causa e efeito? Nem pensar. Eles é que têm lições a nos oferecer, recortadas do tecido vivo da sofrida experiência dos milênios. De que maneira doutriná-los se apenas sei, e muito mal, da minha presente existência?
            Vamos ao exemplo para documentar a filosofice. Acabáramos de atender a um desesperado e desesperançado companheiro, arcado sob o peso de desconforto consigo mesmo. Inteligência brilhante, ampla cultura filosófica, capacidade de liderança, muita experiência acumulada em vidas que se foram, mas, que, paradoxalmente, ainda estão nele como se fossem de ontem.
            Pela terceira vez vinha ao grupo, depois de uma pausa maior em que ficara literalmente perdido em meditações sem fim. Disseram-nos seus companheiros que ele ficara lá para um canto, imóvel, olhar fixo no vazio, sem ouvir ou falar, alheio a tudo, menos ao tumulto de seu mundo íntimo.
            Queixava-se de nós, arautos da dor, paladinos dela, porque só tínhamos a oferecer o sofrimento em troca de difíceis, impensáveis renúncias. Mais do que isso, éramos apologistas da dor, como que instigados por um prazer sádico de sofrer.
            Não é preciso dizer que o diálogo foi longo, difícil e veemente. O bravo companheiro parecia já vencido interiormente, mas ainda se debatia, ciente de que a alternativa àquela pseudo reação era a entrega total às incertezas da retificação, da reconstrução, na qual, mais de uma vez havia falhado, como tantos nós. Aos poucos, a história pessoal vai se revelando, discretamente, envergonhadamente. Tivera, sim, suas oportunidades. Tentara ser grande antes de estar amadurecido para a grandeza, mesmo porque quando o estivermos, não a desajaremos mais e nem saberemos que somos grandes. Se a gente acha que é grande é porque ainda está pequeno demais para perceber que não o é. Tentara também ser pastor de almas, uma espécie de Messias e, obviamente, fracassou. Pelo menos na dimensão espiritual, onde vivera até aquele momento, havia um arremedo de messianato: dirigia uma instituição, pregava, ensinava, filosofava e tinha até seus postos de influenciação implantados entre os encarnados, através de médiuns invigilantes. Lá ele trabalhava, era importante, respeitado, sentia-se útil, era livre e aperfeiçoava, a cada momento, a estrutura filosófica de que necessitava para justificar-se perante a consciência, que obrigara a calar-se. Em troca de tais ‘regalias’, que tínhamos a oferecer-lhe? Realmente, nada, senão a dura realidade da responsabilidade assumida e propositadamente esquecida.
            Sabia, contudo, que chegara ao fim da linha. Não tinha mais para onde recuar: estava de costas para o paredão imenso que ele próprio construíra com seus desatinos. O momento não era o de intensificar-lhe a angústia com acusações ou ameaças, mesmo porque, melhor do que nós, ele sabia das causas de toda aquela desesperadora aflição.  Semeara ventos, estava colhendo tempestade e os horizontes, tão longe quanto podia vislumbrar, prenunciavam novos temporais.
            A essa altura, já estávamos falando com o ser humano sofrido e, aparentemente, esquecido de todos. Não era mais o filósofo que tudo justifica e a tudo explica; queixava-se do frio, da solidão, do abandono, do desencanto. Oramos, enquanto ele ouvia em silêncio. Falamos da misericórdia infinita das leis divinas, que, na sua irretocável perfeição, estão programadas, desde sempre, para nos levar à destinação da paz, da harmonia e da felicidade em toda a sua luminosa plenitude. Se não nos despedimos como amigos queridos, pelo menos ele não nos via mais como inimigos, como agentes implacáveis da lei e precursores do sofrimento. Éramos pessoas humanas, como ele próprio, a caminho da mesma destinação final.
           Depois dele, veio ela. Os primeiros momentos foram de silêncio, dorido, como poucos temos testemunhado. Nem mais as lágrimas da outra vez; apenas a dor muda, irremediável, pelo menos naquele trágico instante, que, no entanto, parecia eterno.
            A história era tão singela, quanto dramática. Haviam sido companheiros de outras jornadas pela terra. Numa dessa vidas, um momento decisivo, uma daquelas encruzilhadas na qual a gente nunca sabe onde vai dar cada caminho que se oferece. Havia uma espécie de portal, por onde muitos peregrinos entravam. Os dois seguiam juntos. A um passo do limiar pararam e ela preferiu ficar. Não se sabe que razões teria para o gesto de tão graves conseqüências. Ela foi em frente.
            Sentia-se, agora, culpada. Talvez se houvesse insistido um pouco mais, se não aceitasse tão facilmente a recusa dele, as coisas seriam diferentes. Mas, é tudo tão irreversível na vida, meu Deus!
            Logo que pronunciada, a palavra como que se congela no tempo, tanto quanto o gesto, o grito, a ordem, a mentira, a violência. Parece que só o amor vai com a gente, o resto fica lá atrás, ao mesmo tempo que parece transportar-se magicamente, a fim de esperar por nós, lá na frente, no próximo ano, século ou milênio. Quem sabe?
            Sim, ela progredira pelos caminhos iluminados. Paradoxalmente, contudo, ficara, de certa forma, retida naquele passado, ou melhor, naquele outro ser. Não podia prosseguir a jornada, porque o amigo ficara para trás.             Tinham um projeto comum, que não se realizara. E então, contou uma pequena história, dentro da história maior. Mais ou menos assim:
            “-Sabe como é? É como se a gente tivesse um grande tesouro guardado num cofre, lá no futuro. Cada um segue seu caminho paralelo, mas de encontro marcado. E você chega na frente do outro, mas não pode apossar-se do tesouro porque o cofre precisa de duas chaves para ser aberto e você tem apenas a sua. É preciso buscar o companheiro, onde quer que ele esteja, porque a outra chave está com ele. Entendeu? E ele nem sabe mais quem você é: riscou você da memória, a fim de sofrer menos.
            Recebo, com humildade e emoção, o ensinamento da noite, enquanto a singela parábola das duas chaves fica a martelar na memória como o dramático prelúdio de Frédéric Chopin. 


3 comentários:

  1. Prezado Aaron, gostaria de conhecer a fonte desse magnifico texto? De que livro ou artigo foi tirado? Muito obrigada

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  2. Uma das coisas que a equipe do Blog muito se orgulha é que sempre damos a origem do texto postado com todos os detalhes disponíveis. Superamos a marca das 3300 postagens sempre seguindo essa condição. E não é que você achou um texto sem sua fonte! Sabemos que foi retirado de Refomador (FEB) mas não podemos informar o número do exemplar e etc. Ficaremos devendo a informação enquanto buscamos o texto em nossos arquivos. Pedimos desculpas, sua compreensão e paciência.

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  3. Sim, pude reparar que todos os outros artigos tem sua fonte, por isso tomo a liberdade de perguntar. Aguardarei o tempo necessário, porque vou precisar da fonte mesmo. Pretendo traduzir este texto para francês para publicá-lo em no boletim destinados aos centros da França. Muito obrigada desde já.

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