Notas Históricas sobre
João Huss
por Celso Martins
Reformador (FEB) Março 1981
Nota da Redação do Reformador:
“De há muito carecíamos de umas “Notas Históricas sobre João Huss”. O Professor Celso Martins no-las elaborou a fim de tornar menos penoso o esforço de síntese do espírita que precisa de dados para as suas palestras ou artigos, mas que só são encontráveis desde que se compulsem muitos volumes.
Para que se tenha uma noção disso, basta que se registre ser preciso recorrer a duas obras de grande valor para encontrar o seguinte: “A Bohêmia considera-o a um tempo patriota e mártir da fé. Como escritor, tinha fixado a ortografia e reformado a língua tcheca.” (Grande Enciclopédia Delata Larousse). “Livros em tcheco e latim: Questio de Indulgentiis (1412), Explication de la foi (1412), De Ecclesia (1413), Explication des Saint Évangiles (1413).” (Dictionnaire Universel des Noms Propres - “Petit Robert”, volume 2, p. 885)
Em setembro de 1869, há um trabalho na Revue Spirite, pp. 264 a 272, que consiste em artigo do Siècle, de 11-7-1869 (a propósito do 5º aniversário de Jean Huss), comentários da redação da RS e mensagens mediúnicas de 14-8-1869 (assinada Jean Huss) e 17-8-1869 (assinada Allan Kardec).
No Anuário Espírita (1973) foi estampado artigo de Wallace Leal V. Rodrigues: “João Huss na História do Espiritismo”, do qual Reformador colheu algumas gravuras, tendo-o feito igualmente do “Larousse du XXe Siècle”.
De mensagem ditada pelo Espírito H. de Campos a F. C. Xavier, aos 22-9-1942 (lida no Pacaembu, em S. Paulo, dia 03-10-1942), publicada em “Reformador” de setembro de 1978, p. 239, extraímos os seguintes tópicos:
“Depois de se dirigir aos numerosos missionários da Ciência e da Filosofia, destinados à renovação do pensamento do mundo no século XIX, o Mestre aproximou-se do abnegado João Huss e falou, generosamente:
-Não serás portador de invenções novas (...), mas deponho-te nas mãos a tarefa sublime de levantar corações e consciências. (...)
-Preparam-se os círculos de vida planetária a grandes transformações nos domínios do pensamento. Imenso número de trabalhadores no mundo, desprezando o sentido evolucionário da vida, crê na revolução e nos seus princípios destruidores, organizando-lhe movimentos homicidas. Em breve, não obstante nossa assistência desvelada, que neutralizará os desastres maiores, a miséria e o morticínio se levantarão no seio das coletividades invigilantes. A tirania campeará na Terra, em nome da liberdade, cabeças rolarão nas praças públicas em nome da paz, como se o direito e a independência fossem frutos da opressão e da morte. Alguns condutores do pensamento, desvairados de personalismo destruidor, convertem a época de transição do orbe em turbilhão revolucionário, envenenando o espírito dos povos. O sacerdócio organizado em bases econômicas não pode impedir a catástrofe. A Filosofia e a Ciência intoxicaram as próprias fontes de ação e conhecimento!...
É indispensável estabelecer providências que amparem a fé, preservando os tesouros religiosos da criatura. Confio-te a sublime tarefa de reacender as lâmpadas da esperança no coração da humanidade.
O Evangelho do Amor permanece eclipsado no jogo de ambições desmedidas dos homens viciosos!... Vai, meu amigo. Abrirás novos caminhos à sagrada aspiração das almas, descerrando a pesada cortina de sombras que vem absorvendo a mente humana. Na restauração da verdade, no entanto, não esperes os louros do mundo, nem a compreensão de teus contemporâneos.
Meus enviados não nascem na Terra para serem servidos, mas por atenderem às necessidades das criaturas. Não recebem palmas e homenagens, facilidades e vantagens terrestres, contudo, minha paz os fortalece e levanta-os, cada dia...
(...) Ante a emoção dos trabalhadores do progresso cultural do orbe terreno, o abnegado João Huss recebeu a elevada missão que lhe era conferida, revelando a nobreza do servo fiel, entre júbilos de reconhecimento.
Daí a algum tempo, no alhor do século XIX, nascia Allan Kardec em Lyon, por trazer a divina mensagem.”
Amaral Ornellas, responsável, à época, pela Secretaria de Reformador, publicou em 3-10-1920 trabalho de sua lavra intitulado “O Codificador”, que encerrou desta maneira:
“Quem conhece a biografia de Kardec e sabe com que serenidade estóica ele enfrentou os ódios da inimizade intransigente, da calúnia, da inveja e do ciúme, armas terçadas pela inquisição moderna contra aqueles que pairam acima das trivialidades mundanas, tem a consoladora certeza de que esse elevado Espírito soube cumprir com galhardia a missão que Jesus lhe confiara.
Glorioso Rivail, nós aguardamos a tua volta, se é que ainda não estás no planeta acumulando forças para novos empreendimentos!
E quando, no velho ou no novo mundo, aparecer um filósofo que venha continuar a tua obra de evangelização, nesse gigante do pensamento, em qualquer parte do Universo em que nos encontrarmos, saudaremos o João Huss que ardeu na fogueira de Constança e o inesquecido Kardec a quem a inquisição retardatária feriu com o seu último auto-de-fé, mandando incinerar-lhe as obras, por ordem de um bispo, numa colina em que pereciam os condenados à morte, na católica cidade de Barcelona.
Assim, após essas terríveis convulsões sociais, nascidas dessa tremenda expiação coletiva que foi a guerra, uma aurora de paz e de concórdia despontará no planeta e, como fortalecido pela fé, um Denizard Rivail mais alentado pelo amor, unindo todos os credos filosóficos à palavra do Cristo, para que se estabeleça na Terra a verdadeira fraternidade.” (Reproduzido em 1977, pp. 297 a 299)
*
Por tudo quanto foi aqui exposto, o contributo de Celso Martins é benvindo: ele nos coloca no contexto da época de João Huss, dentro dos episódios históricos e diante das personalidades que cercaram o inolvidável missionário que efetivamente representa a gênese de um movimento que ainda continua no mundo, com outro nome, pregando a volta do Cristianismo à pureza simples dos tempos apostólicos e dos mártires da fé. A Redação
1 - A Idade Média ou Medieval
Por idade Média ou Medieval entendemos o período da História da Humanidade que vai do século V até o século XV. Segundo alguns historiadores, teria início no ano de 395, quando o Império Romano se dividiu em Império do Ocidente e Império do Oriente ou Império Bizantino. E terminaria em 1453, quando os turcos otomanos tomaram Constantinopla, a
capital do Império Bizantino. Para outros pesquisadores, a Idade Medieval começaria em 476, quando Roma (capital do Império do Ocidente) foi submetida aos bárbaros; e findaria em 1492, quando Colombo descobriu o Novo Mundo.
São da Idade Média as Cruzadas, atirando cristãos (católicos, para dizer melhor) contra os maometanos. É desta fase histórica a ação dos chamados bárbaros, ou seja o ataque dos hunos, dos vândalos, dos lombardos, dos visigodos, entre outros, contra as nações cristãs do continente europeu. Da Idade Medieval são figuras famosas as de Maomé, Carlos Magno, Constantino, Ricardo Coração de Leão, João Sem Terra, Francisco de Assis, Joana D’ Arc, etc. Por fim, é da Idade Média a Guerra de Cem Anos, entre a França e a Inglaterra. Encontramos ainda nesta época os Principados e os Ducados Russos, o Reino da Suécia, o da Noruega, das Castela, de Aragão, da Polônia, da Hungria, etc.
Submetida em parte pelos árabes, adeptos do Islamismo de Maomé, a Europa medieval estava também dividida em feudos, sendo que, não raro, os proprietários destas grandes extensões territoriais detinham muito mais autoridade do que os próprios reis. Muito influente na época, de igual maneira, a Igreja Católica, que, através de seus dignatários, controlava em larga escala a política então vigente.
2. - A Boêmia
Numa tentativa de centralização, formou-se a partir de 1254 o Sacro Império Romano Germânico, sob a liderança da Germânia (futura Alemanha), reunindo regiões como a Áustria, a Morávia, inúmeras cidades italianas, etc. Desse Sacro Império Romano Germânico fazia parte a Boêmia, sendo que o referido Império perdurou até 1808.
Conquistada no século V pelos eslavos, a Boêmia constituiu-se em reino independente até 1556, quando foi anexada à Áustria. Em 1919 passou a integrar a Tchecoeslováquia, o que se dá até os nossos dias, com ligeira interrupção entre 1939 e 1944, quando esteve anexada à Alemanha Nazista.
3 - O Descontentamento dos Boêmios
Jan Hus (que em tcheco quer dizer ganso) nasceu filho de camponeses, em 1369, na pequena cidade de Husinec, pertencente à Boêmia. Devido à pobreza de seus pais, João Huss só pode estudar por ser dotado de viva inteligência, granjeando a simpatia de alguns monges. Por estes amparado, em 1398 Huss formou-se em artes, pela Universidade de Praga, e começou a lecionar Teologia, fazendo-se bastante conceituado nos meios universitários. Conseguiu ser nomeado deão da Faculdade de Filosofia e, mais tarde, reitor da Universidade. Data de 1400 a sua ordenação como padre católico.
Mas acontece que, naquela ocasião, havia um grande descontentamento entre os habitantes da Boêmia. Primeiramente, porque o feudalismo estava como que entravando o pleno desenvolvimento do comércio. As corporações dos artesãos e as ligas dos mercadores deveriam pagar altas taxas aos senhores feudais, o que encarecia as mercadorias em geral. É a situação se fazia mais crítica porque a maior parte dos senhores feudais eram alemãs, uns bispos e outros simplesmente leigos. Os boêmios desejavam- libertar-se da dominação germânica. A própria Universidade de Praga (fundada em 1247, por Carlos VI) era constituída de duas nações germânicas (bávaros e saxões) e de duas nações eslavas (boêmios e poloneses). Por ela se tentava levar a Teologia dos alemães para os eslavos, mas não conseguindo, porém, pois eram constantes as brigas entre estudantes em plena Praga, já capital do Reino da Boêmia.
O outro grande motivo de descontentamento derivava da desmoralização generalizada da Igreja, sob cujo poder espiritual estava a Boêmia submetida.
4 - Da História da Igreja
Em 1305 o Papa Benedito XI se viu obrigado a retirar-se da Itália por sentir-se ali ameaçado por seus inimigos, fixando residência em Avignon, na França. Esta cidade ficou sendo a sede dos papas até 1377, quando Gregório XI, atendendo aos apelos que lhe vinham de todas as partes, sobretudo da Itália, resolveu terminar com o que os italianos chamavam de ‘cativeiro de Babilônia’. Resolveu voltar para os Estados da Igreja, fixando-se em Roma.
Falecendo Gregório XI no ano seguinte (1378) diversos cardeais elegeram Urbano VI. Dezesseis outros cardeais, no entanto, não endossaram tal eleição e elegeram o francês Clemente VII, que ficou, de novo, em Avignon. Morrendo um e outro, novos sucessores foram eleitos, um em Roma e outro em Avignon, agravando-se a cisão do mundo católico, pois a cada papa de sua parte se considerava o legítimo representante de Deus na Terra, junto aso homens, e dizendo ser o outro o antipapa. De seu lado, os reis arrogavam-se o direito de escolher qual dos dois sumos pontífices seus súditos deveriam servir.
Assim é que, em 1398, o Rei Venceslau, da Germânia (Alemanha), acertou com o Rei da França a abolição daquela situação bipapal. Foram os dois abolidos. Mas os cardeais não aceitaram esta intromissão dos reis citados. Reuniram-se em Pisa, no ano de 1409, depuseram Gregório XII, de Roma e Benedito XIII, de Avignon. E elegeram um terceiro (!) papa, na pessoa do grego Alexandre V.
O arcebispo de Praga, a princípio, obedecia a Gregório XII. Quando, entretanto, percebeu que o Reino da Boêmia era fiel ao novo papa de Pisa (Alexandre V), reconheceu-o também. Para demonstrar-lhe gratidão por este gesto, o terceiro papa ordenou a queima das obras de Wiclef e proibiu ao Mestre João Huss pregar.
A par desse descalabro nas altas esferas da Igreja, o clero também não dava exemplos dignos de ser seguidos. Ao invés de espiritualizar-se e espiritualizar o povo, a maioria dos sacerdotes caiu nas baixezas mundanas. Levavam uma vida de aventuras amorosas, de riscos guerreiros, de prazeres do estômago, muito distantes das virtudes cristãs. Muitos andavam armados como se soldados fossem e exerciam cargos civis, auferindo, assim, rendimentos consideráveis.
5 - As Idéias de Wiclef
Na Inglaterra viveu, de 1320 a 1384, João Wiclef (ou John Wycliffe).
Desde 1337 aquele Reino estava se debatendo em luta com o da França (Guerra de 100 anos). Em razão das operações militares, várias mudanças sociais foram sacudindo o povo inglês. Entre estas transformações da sociedade ressaltou-se a oposição que se fazia aos impostos eclesiásticos: admitiam os britânicos que o dinheiro arrecadado pelos padres iria enriquecer os seus adversários franceses, de vez que o papa (um deles) estava em Avignon.
Wiclef, reitor do Colégio Balliol, em Oxford (desde 1356), e guardião de Canterbury (1365), ilustre teólogo, colocou-se ao lado do Rei Eduardo III contra os impostos papais. Em verdade, durante sua vida elaborou nada menos do que 96 obras em latim (idioma oficial da Igreja), 65 em inglês e ainda traduziu a Bíblia para a língua nacional, a fim do pô-la ao alcance do povo.. No trabalho intitulado Sobre a Eucaristia, por exemplo, negava terminantemente o milagre da transubstanciação, isto é, não aceitava a transformação do vinho em sangue nem do pão em corpo de Cristo, pela consagração. Ora, era a mais grave das heresias, pois atingia em cheio um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica.
Mais tarde, Wiclef passou a atacar o alto clero porque ele não exercia mais atividades de caridade nem observava o voto de pobreza. Ao contrário, sendo os seus componentes elementos que vinham da nobreza, viviam em alto luxo, gozando os benefícios das ricas heranças das famílias feudais, metendo-se em negócios do Estado, enquanto o baixo clero, formado de elementos oriundos do seio do povo, continuava pobre e analfabeto.
Em 1376 lançou o livro Sobre a Propriedade Privada, onde declarava que as terras da Igreja deveriam ser tomadas pelo Estado, já que no seu entender a Igreja deveria cuidar exclusivamente de assuntos espirituais.
O Papa Gregório XI tentou silenciá-lo. No entanto, contando com o apoio do Parlamento inglês, Wiclef logrou defender-se sempre. E de fato teve tanta liberdade de ação que se voltou contra aquela situação anômala de dois papas simultâneos. Voltou-se ainda contra outros dogmas, como o da absolvição dos pecados e até mesmo contra a hóstia.
Termina então a Guerra dos Cem Anos com a derrota inglesa. O rei se viu na obrigação de proteger os interesses da nobreza e teve de agir sobre as classes pobres, de vez que a miséria se alastrava por todo o país. Os camponeses tentaram reagir mas foram, por fim, submetidos a um regime de servidão. Esta derrocada do povo desprestigiou a Igreja pobre. Não obstante, Wiclef continuou em sua luta propugnando uma reforma religiosa, morrendo em virtude de um derrame cerebral nas últimas horas do ano de 1384.
Seus seguidores foram perseguidos, mas na Boêmia é que vai surgir a figura de seu adepto mais fervoroso, na pessoa de João Huss.
6 - O Mestre João Huss
Nomeado pregador da Capela de Belém, desde cedo mostrou-se o mestre Huss favorável às idéias de Wiclef. Entre outras coisas, não admitia a ocorrência de milagres. O clero se irritou com isto e tomou-lhe logo o cargo de pregador. E o citou perante a Cúria Romana. A Rainha Sofia, porém, por gostar dele, contribuiu para torná-lo chefe do partido nacional. E Huss não compareceu perante o papa para defender-se de seus acusadores.
O Reino de Boêmia, por questão de prudência, talvez, a princípio não se meteu na briga entre Gregório XII e Alexander V. Mas quando este último (sediado em Pisa) começou a perseguir os adeptos de Wiclef, todo o clero inferior, a Universidade de Praga e mesmo o povo da Boêmia se colocaram ao lado de João Huss, que continuou a pregar, apesar da proibição expressa em bula pelo Papa Alexandre V. Prosseguiu sua vida de bondade e de fidelidade às leis de Deus.
A 15 de março de 1411, por ordem do Arcebispo Zbynek foi anunciada em Praga a excomunhão, decretada pelo Cardeal Oton de Colona, contra Huss, pelo fato de ele não ter comparecido ao tribunal do papa, agora não mais Alexandre V, ao que consta envenenado, mas sim João XXIII.
O Rei da Boêmia, Venceslau IV, se irritou com o papa que não atendeu aos seus apelos (bem como os da Rainha Sofia), no sentido de anular as exigências do falecido pontífice. Ausentando-se de Praga o Arcebispo Zbynek castiga os padres da cidade, que apoiavam Huss. Em represália, Venceslau IV favorece os wiclefistas, confiscando os bens do arcebispo, atirando-o a uma situação financeira precária. Para por fim àquelas disputas, o Rei criou um tribunal conciliatório (6 de julho de 1411): de um lado João Huss e seus adeptos submetiam-se ao arcebispo e este, então, diante da confissão de fé de Huss, intercederia em seu favor, com o apoio real, junto ao papa. Doutra parte, os bens do eclesiástico ser-lhe-iam devolvidos integralmente.
João Huss aceitou a decisão do tribunal de conciliação. O arcebispo chegou a preparar uma carta para o papa. Como, porém, o Rei demorasse muito em fazer-lhe a devolução dos bens. Zbynek vai buscar auxílio de Sigismundo, Rei da Hungria e imperador da Alemanha, por sinal irmão do próprio Venceslau. Não chegou, no entanto, o arcebispo até a corte de Sigismundo - morreu em viagem, em 28 de setembro de 1411. E seu sucessor (Albik), amigo de Venceslau, deixa Huss em paz!
Ocorre que, tendo subido à cadeira papal em Pisa a 4 de maio de 1410, o napolitano João XXIII passou a hostilizar abertamente seu colega Gregório XII (sediado em Roma); entrou em guerra contra o Rei de Nápoles, de nome Ladislau. E assim, a 12 de abril de 1411, João XXIII se apoderou de Roma; em junho do mesmo ano obrigou Ladislau a reconhecê-lo como legítimo representante de Deus junto aos homens e ainda em setembro de 1411, por não confiar em Ladislau, acaba por excomungá-lo.
Como se tudo isso não bastasse, o novo papa pregou uma cruzada contra o pobre Rei de Nápoles e promulgou indulgências a todos que, pessoalmente, ou por meio de dinheiro (sic), o auxiliassem naquela campanha!
Vários sacerdotes, então, foram encarregados de vender tais indulgências. Os seus compradores estariam remidos das penas purgatoriais enchendo de moedas e mais moedas os cofres da Igreja de Roma!... Evidentemente, tal comércio gerou indignação e tumultos por todos os lados. Os teólogos da Universidade de Praga, do qual João Huss fazia parte, não se definiram claramente se deveriam ou não cooperar com o papa naquela empresa. João se insurge abertamente declarando que só Deus tem o poder de dar indulgências. Os padres podem anunciá-las, jamais vendê-las! No que foi seguido por um discípulo chamado Jerônimo, mais tarde conhecido como Jerônimo de Praga.
Em torno do assunto, na Boêmia, levantou-se tanta confusão, que os emissários do papa para recolher o dinheiro não eram mais respeitados. Mesmo porque o povo estava instruído por João e por Jerônimo.
Sabendo das lutas travadas em Praga contra a venda vergonhosa das indulgências, João XXIII indeferiu as apelações a favor de Huss, entregando o processo ao Cardeal Pedro degli Stefaneschi, o qual na verdade confirmou a bula anterior excomungando-o, proibindo-o de celebrar missas e casamentos e determinando fosse a bula lida em todas as igrejas.
Novas determinações perseguiram seus amigos, parente e até criados. Em setembro chegou a ordem de demolição da Capela de Belém; e mais - chegou a ordem de prender João Huss, onde quer que estivesse, julgá-lo e queimá-lo vivo porque era um herege. Como se sabe, o Tribunal da Inquisição, que tanta gente levara à fogueira, fora instalado no século XIII, por determinação do Papa Inocêncio III. Novos distúrbios se verificaram na capital da Boêmia, pois o povo não aceitava as ordens papais. Huss, para evitar inúteis tumultos, refugiou-se no Sul do país, na fortaleza de um amigo, onde escreve canções religiosas, obras teológicas e morais em língua tcheca, destinadas ao povo ao qual ainda falava, nos castelos, nas aldeias, nas vilas, até mesmo à beira das estradas, quando os padres não lhe abriam as portas de suas capelas.
7 - O Concílio de Constança
Contando com apoio do Rei Sigismundo, João XXIII resolveu convocar para 1º de novembro um Concílio na cidade alemã de Constança, a fim de dar solução a questões de costumes e de direitos eclesiásticos, bem como esclarecer a unificação da Igreja Católica Romana, repartida entre 3 papas.
Prometendo protegê-lo, Sigismundo consegue convencer João Huss a comparecer ao referido Concílio para defender-se das acusações de que estava sendo vítima. Antes, porém, de seguir viagem, nem o inquisidor de Parga (Bispo Nicolau) nem um sínodo do clero convocado para este fim, em agosto de 1414, encontraram provas contra o pregador tcheco. O próprio Arcebispo Conrado, interpelado pela Assembléia Nacional, em setembro do mesmo ano, declarou que não considerava aquele sacerdote de modo algum um herege. Ao contrário, foi reconhecido como verdadeiro cristão.
Assim, acompanhado de fiéis amigos (mais ainda, fiado num salvo-conduto do Rei), partiu para Constança. Mal sabia ele que seu maior inimigo estava ali em Praga mesmo, na pessoa de Estevão Palec, doutor em Teologia da mesma Universidade, autor de um Tratado da Igreja, o qual não se conformava em ser sobrepujado por Huss em popularidade. Muito embora fosse antes amigo de João, com o tempo a inveja e o despeito fizeram-no seu adversário ferrenho, e que tudo faria em Constança para vê-lo obrigado a retratar-se, humilhar-se, abrir mão de suas idéias wiclefistas. Se isso ocorresse, então as suas idéias, dele, Palec, ganhariam popularidade entre os doutores e mesmo entre o povo da Boêmia.
A 3 de novembro João Huss chega à Constança, onde já se encontrava o papa desde 28 de outubro, com um séquito de mil homens. Aliás, a cidade fervia de gente. Contava com a presença de 3 patriarcas, 29 cardeais, 33 arcebispos, 150 bispos, 300 teólogos, 108 abades, e priores, deães, cônegos, além de 3 eleitores, um margrave[1], 39 duques, 32 condes, muitos embaixadores, cavaleiros, fidalgos, bacharéis, estudantes, num total de 150 mil pessoas e 30 mil cavalos!
Levados por amigos fiéis, como Wenceslau de Dubá, Henrique Lacemborck e João de Chium, Huss compareceu perante o papa, dele recebendo promessa de total proteção. Mas, na primeira oportunidade, o papa fugiu à palavra dada: instigado por Estevão Palec, por Miguel de Causis e pelo Bispo João de Litomysle, João XXIII consente em sua prisão, declarando que o fazia porque era os próprios compatriotas de Huss que o exigiam. E a prisão se dá em 28 de novembro a despeito do salvo-conduto do Rei Sigismundo, que lhe garantiria voltar à Boêmia. Os cardeais pouco valor deram ao documento real e João Huss foi atirado a uma cela onde, embora ficando seriamente doente, escreveu várias cartas aos companheiros distantes.
Mas o Concílio ia tendo lugar. E a mais espantosa ocorrência se deu quando os cardeais obrigaram João XXIII a renunciar, se os outros papas fizessem o mesmo (Benedito XIII e Gregório XII). João XXIII foge para Schafhausen, aí decretando a dissolução do concílio. Os cardeais não acatam esta decisão papal e depuseram os três pontífices e, com o auxílio dos soldados de Sigismundo, a 5 de junho de 1415 prenderam o ex-Papa XXIII.
8 - O Processo contra Huss
Se quisesse, o Rei Sigismundo poderia libertar João Huss. Mesmo porque nenhum cardeal pessoalmente desejava cuidar do caso. Nem mesmo o bispo de Constança. Mas o Rei insistiu em deixar o assunto a cargo do Concílio, de sorte que Huss ficou na dependência de uma comissão de 4 membros, presididos pela arcebispo de Ragusa.
Em abril de 1415, veio a ter a Constança o discípulo fiel Jerônimo de Praga. Recomendado por amigo a que regressasse à Boêmia, o jovem tentou o regresso, mas foi aprisionado, metido em dura prisão e - para encurtar a história - queimado no ano seguinte (1416).
Chegando aos boêmios a notícia da prisão de Huss, 250 aristocratas daí e da Morávia se manifestaram contra o Rei Sigismundo, de nada valendo, porém, esta manifestação dos seus patrícios. Agora, sob a presidência do Cardeal João de Brogni, o processo foi ganhando seqüência durante audiências a que João Huss só era admitido depois de feitas as acusações, sem lhe ser dada a oportunidade de defesa. Novo julgamento a 7 de junho de 1415, na presença de seus amigos João de Chlum, Wenceslau de Dubá e Pedro Mladenovice, presidido pelo Cardeal Pedro de Ailly, durante o qual, como antes, Huss não tem ocasião de defender-se, quer dizer, um julgamento tipicamente inquisitorial Ciente da sorte que o aguardava, o intrépido pregador da Boêmia a 10 de julho de 1415 escreveu aos seus patrícios sua última carta na qual conclamava o povo de Praga a respeitar e ouvir a palavra de Deus; a levar uma vida digna e reta, voltada para o estudo e para o trabalho, tendo em vista a glória de Deus, o melhoramento da comunidade e a salvação de suas almas; a orar ao Criador pelo Rei e pela Rainha; mas também a acautelar-se contra homens astutos e sacerdotes indignos que por fora são ovelhas e, por dentro, lobos vorazes!
9 - Atirado às Chamas
Finalmente, a 6 de julho de 1415, cardeais, arcebispos, bispos, prelados, doutores em Teologia, membros do Concílio se reúnem na Catedral, na presença do Cardeal João de Grogni e do Imperador Sigismundo, João Huss deve ser condenado como herege e, por isso mesmo, queimado vivo! Depois do sermão, o Bispo Henrique de Pino, procurador do Concílio, leu em voz alta a sentença. Huss tentou defender-se, mas se viu proibido de falar. Diante da intolerância, o incansável pregador caiu de joelhos e implorou perdão de Deus para seus implacáveis inimigos. Enquanto isso, numa fogueira armada perto da igreja e diante do cemitério, seus livros são queimados.
Em seguida o arcebispo de Milão comanda a sua desordenação: Huss é desvestido das vestes sacerdotais. E, tendo recebido uma ridícula coroa de papel, onde aparece o epíteto de ‘heresiarca’, é entregue ao Conde palatino Luís que, por sua vez, entrega-o ao alcaide (prefeito) da cidade, a fim de ser queimado. Note-se que João Huss não súdito de Sigismundo e sim de Venceslau, a quem deveria ser entregue. Mas isto pouco importa aos seus algozes. Desejavam queimá-lo e pronto! E assim, guardado por mais de 3 mil homens armados, seguido por grande massa popular, foi levado à fogueira medieval. Quando se aproximava do lugar do suplício, vendo que uma pobre velhinha acrescentava gravetos à lenha empilhada, o mártir, com um sorriso de amor, exclamou: -Santa simplicidade!”
Tendo ajoelhado, pediu a proteção de Deus e rejeitou a confissão final, declarando que não lhe pesava nenhum pecado mortal. O carrasco preparava a queima da madeira enquanto o grande apóstolo do Cristo, recitando salmos, profetiza o advento de Martin Luthero, o famosos reformador alemão, declarando:
“-Assais agora um ganso; mas daqui a anos virá um cisne que não podereis assar.” Como se viu, a palavra Huss significa, em tcheco, exatamente ganso.
As chamas são acesas e lhe cobrem o corpo. O valente pregador de Husinec continuou a orara a Deus, implorando perdão pelo ato dos seus inimigos, e se negou a qualquer idéia de retratação.
Queimaram o corpo de Huss. Mas não queimaram suas idéias de reforma dos costumes da Igreja. Não queimaram o ideal superior das almas que seguem sempre os ensinamentos da verdadeira Igreja do Cristo de Deus. Não queimaram da memória e da gratidão da Humanidade a lembrança de um de seus maiores vultos.
10 - Nota Final
Consta que através da mediunidade de Ermance Dufaux foi dito que Allan Kardec teria sido o mesmo João Huss, evidentemente em vida anterior. Tal registro estaria guardado em documento da Livraria de Leymarie, chegando a ser visto pelo pesquisador patrício Canuto Abreu. Mas veio a invasão nazista, na última guerra mundial, e tal documento foi destruído.
João Huss
Inaldo Lacerda Lima
Pág. 294 Reformador (FEB) 1993
Uma das mais autênticas figuras do Cristianismo, na Idade Média, foi, sem dúvida, o sacerdote e filósofo Jan Huss, nascido em Husinec (donde lhe veio o nome), na Boêmia, em 1369.
Embora filho de pais camponeses, conseguiu completar seus estudos na Universidade de Praga, formando-se em Teologia, em 1394, e Artes, em 1396.
Em 1400, ordenou-se sacerdote com o objetivo de servir ao Cristo com o coração. E, já em 1402, passava a ocupar o cargo de reitor da referida Universidade, dedicando ao magistério superior todo o devotamento possível.
Um fato, porém, começava a inquietar a alma e o coração do jovem sacerdote: a decepção com a conduta de seus superiores eclesiásticos, que emprestavam à Igreja uma posição que muito o desagradava, principalmente a ele que devotava profundo respeito pelas coisas sagradas, sobretudo pelo culto da verdade.
Assim, na mesma ocasião em que assumia o cargo de reitor da Universidade em que se graduara em Teologia e Artes, alguns anos antes, travava conhecimento com a obra do reformador inglês John Wycliff, passando a considerar-se seu fiel discípulo.
Exatamente no mesmo ano em que tomava conhecimento da obra de Wycliff, era nomeado pregador da Capela de Belém, em Praga. Não é difícil aquilatar os conflitos espirituais que passavam, então, a acicatar a mente desse homem extraordinário.
Diante disso, a pouco e pouco iam-se escapando de seus sermões críticas ao clero, o que, ao mesmo tempo, punha em evidência as simpatias de Huss pelas idéias do odiado reformador inglês.
Desse modo, não obstante as advertências que recebia em face de seu obstinado combate à cobrança de indulgências e à confissão auricular, foi em 1410, finalmente, excomungado. Enquanto isso, crescia a admiração pelo seu trabalho honesto, levando toda a população de Praga, em tumulto incontido, a proclamá-lo com o título de Herói Nacional, sob a proteção do Rei Venceslau da Boêmia.
Isso fez crescer ainda mais a onda de perseguições dentro da Igreja contra João Huss, decretando o Vaticano nova excomunhão contra ele, em 1412. É que Huss passara a afirmar dos púlpitos que as escrituras sagradas deviam ser as únicas regras a ser obedecidas pela Igreja do Cristo e que somente ao Cristo considerava soberano único da Igreja.
Diante de tal situação, foi João Huss premido a abandonar a cidade de Praga, onde sempre vivera.
Roma, no entanto, utiliza-se de mais uma estratégia sagaz para exterminar a vida do ousado reformador. Decreta a realização do Concílio de Constança, em 1414. E, para ele, João Huss é convidado sob a garantia de um salvo-conduto do Imperador Sigismundo da Alemanha e Rei da Hungria. A Igreja mostrava-se democrata e desejosa de melhor conhecer as idéias de Huss.
Desse modo, o grande reformador e precursor da Reforma que ocorreria no século seguinte, tendo em vista as ponderações ardilosas, resolveu comparecer, intimorato, ao referido Concílio, mantendo aí os seus pontos de vista sem se arreceiar diante das ameaças, logo que percebeu ter sido vítima de uma armadilha.
A grande verdade é que foi condenado à morte pelo fogo, pois esse, e não outro, fora o objetivo da famigerada assembléia, uma vez que falso foi o salvo-conduto do Imperador da Alemanha.
Assim sendo, e percebendo baldos os esforços pela sobrevivência, fez questão de enfatizar as suas idéias, e submeteu-as à terrível fogueira, expirando no dia 6 de julho de 1415, numa das praças de Constança.
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Possivelmente, nenhum dos circunstantes presentes no sórdido e hediondo espetáculo representado por um homem indefeso, no alto de uma fogueira criminosa, percebia que, ali, na figura daquele homem sério e superior ocultava-se a alma de um grande missionário.
Graças, todavia, à mediunidade sublimada de Francisco Cândido Xavier, tivemos a oportunidade e saber que homem era aquele que há cinco séculos e setenta e oito anos foi pela Igreja queimado vivo numa cerimônia espetacular.
Conforme o relato mediúnico de Humberto de Campos, em 22 de setembro de 1942, na psicografia de Francisco Cândido Xavier, reproduzido na revista O Revelador, de São Paulo (SP) e, mais tarde, na revista Reformador, da FEB, de setembro de 1978 (págs. 293-294), ali estivera, na fogueira, sobranceiro, o Espírito que renasceria, em Lyon, na França de Joana d’Arc, a 3 de outubro de 1804, para o cumprimento de mais uma luminosa missão dignificando e imortalizando pelos séculos futuros o nome de Allan Kardec.
Para melhor conhecimento dos espiritistas de nossos dias, citemos alguns trechos rápidos do relato acima mencionada:
“Depois de se dirigir aos numerosos missionários da Ciência e da Filosofia, destinados à renovação do pensamento do mundo no século XIX, o Mestre aproximou-se do abnegado João Huss e falou, generosamente:
-Não serás portador de invenções novas, não te deterás no problema de comodidade material à Civilização, nem receberás a mordomia do dinheiro ou da autoridade temporal, mas deponho-te nas mãos a tarefa sublime de levantar corações e consciências. (...)
É indispensável estabelecer providências que amparem a fé, preservando os tesouros religiosos da criatura. Confio-te a sublime tarefa de reacender as lâmpadas da esperança no coração da Humanidade. (...)
É preciso, porém, erigir o santuário da fé e caminhar sem repouso, apesar de perseguições, pedradas, cruzes e lágrimas!...
Ante a emoção dos trabalhadores do progresso cultural do orbe terreno, o abnegado João Huss recebeu a elevada missão que lhe era conferida, revelando a nobreza do servo fiel, entre júbilos de reconhecimento.”
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O restante de história nós, espíritas, já conhecemos. Cumpre, porém, não esquecermos a nossa modesta mas indispensável contribuição: servir à Doutrina do Consolador com coragem, confiança e a imprescindível disposição de ânimo.
Urge sejamos todos, pela conduta e pelo coração, o espelho em que os homens se possam mirar. Quanto às fogueiras, já não temos que temê-las. Elas se apagaram para sempre. Mas é necessário mantenhamo-nos ao calor de novo fogo representado pela chama da fé viva, hoje, no amanhã e para todo o sempre.
[1] Título que outrora se dava aos príncipes soberanos de certos estados fronteiriços da Alemanha. (Nota do Compilador.)
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