Bezerra de Menezes
Os mais novos argumentos contra Roustaing
por Luciano dos Anjos
Rio
de Janeiro - 1990
Jean-Baptiste Roustaing: Nascimento:
15 de outubro de 1805
Desencarne: 2 de janeiro de 1879 (73
anos)
Luciano dos Anjos: Nascimento: 14 de
fevereiro de 1933
Desencarne: 3 de maio de 2014 (81
anos)
Newton Boechat: Nascimento: 25 de
julho de 1928
Desencarne: 22 de agosto de 1990 (62 anos)
Carlos Imbassahy: Nascimento: 9 de
setembro de 1883
Desencarne: 4 de agosto de 1969 (85
anos)
Zêus Wantuil: Nascimento: 6 de
outubro de 1924
Desencarne: 1 de setembro de 2011
(86 anos)
Wilson Garcia: Nascimento: 1949.
Dedico este folheto
à memória do inesquecível tribuno Newton Boechat,
um dos mais ardorosos
defensores da obra de Roustaing.
(Enquanto redijo este folheto, estou recebendo a
notícia da desencarnação do meu grande amigo Newton Boechat, meu companheiro no
Grupo dos oito e um dos maiores tribunos espíritas, competente defensor de J.
B. Roustaing. Dedico a ele, portanto, este modesto trabalho. Sei que vai
gostar.)
Passaram-me às mãos um exemplar do
“Correio Fraterno do ABC”, de São Paulo, que circulou em julho último, no qual
há uma inserção de dois longos artigos abordando a questão do corpo fluídico de
Jesus. O primeiro é tão débil que, apesar do tamanho, quase escapa
despercebido. Expõe a própria ab-reação desgostosa do proteu Henrique
Rodrigues, antigo devoto de Roustaing; e, pelo visto, lhe revela também o
repúdio tardio ao fundador do Cristianismo, a quem nivela ou subordina às
figuras menores do orientalismo. (“O Livro dos Espíritos” não lhe é nada
familiar, pois desconhece toda a clareza da questão 625.) Tenho arquivados os
arquivos anteriores, nos quais ele argumentava na defesa do corpo fluídico de
Jesus. Agora, em dramática confissão, renega a velha crença, que teria abraçado
porque ex-amigos o enganaram (?!). No entanto, quem o leu outrora se dá conta
de que, antes, ele era bem mais convincente; atualmente, está aturdido nas
mesmas entediantes razões dos patéticos inimigos de Roustaing, que jamais leram
a obra ou, se a leram, nunca a entenderam, em sua habitual paralexia. Pois são
estes que acabam de cooptar uma nova voz, para ampliar a barulhenta cacofonia de
sempre, irresistivelmente desafinada. A
fim de impressionar seus leitores, o articulista narra, em português
macarrônico (“frequentemente frequentado”), as mudanças de opinião que andou
fazendo pelo caminho de seus alvorotados estudos. São tantas as mudanças, que
ninguém pode ter certeza de que agora, ele tenha acertado. Será que os amigos
de hoje não o estão enganando também? Não duvido nada de que, com mais uns anos
de encarnação, ele retorne serelepe a Roustaing, quando perceber seu papel de “grand raté” (*) (reprovado) ... Seja como for, o repertório é muito
fraco e não vale maior atenção. Já me estendi até demais.
(*) Todos os grifos são do
autor.
Quanto ao segundo artigo do jornal,
é corroborado por um box, de bom tamanho, em que eu sou citado nominalmente. De
algum tempo a esta parte, não me tenho preocupado em replicar as “sottises” (absurdos) tautologicamente (redundantemente) veiculadas pelos antagonistas de
Roustaing, todas elas já definitivamente atomizadas pela rigorosa lógica de “Os
Quatro Evangelhos”. No entanto, desta feita, afinal, apareceu um “reforço”
através do qual se pretende desmoralizar a obra com a informação – que teria
sido prestada por mim mesmo – de que ela “encalhou”
e foi “um fracasso editorial na França”.
Bem, esse contraponto realmente é novo e visa, sem mais dúvida, a oxigenar
a campanha que, por ridícula e ineficaz, vinha se depauperando, com o passar
dos anos. E por ser novo, talvez valha a minha disposição de reaquecer as
teclas da velha máquina de escrever, ou do redator dos acréscimos explicativos
colocados no box (não sei se, apesar do tom, a mesma pessoa redigiu os dois).
Certo é que essa denúncia do “encalhe” surgiu em 1981, no bojo do livro “O
Corpo Fluídico”, de Wilson Garcia, precedido de um texto atoleimado de Jorge
Rizzini. Ali se introduziu, ainda, um arremate épico, sobre a “a falsa conversão do Dr. Carlos Imbassahy”. Tirante esses dois enfoques, tudo o
mais, no livro, é carbono dos que apareceram antes, sem nenhuma novidade
(tenho-os todos, em minha biblioteca particular). No meu trabalho “A Posição
Zero” há um capítulo especial analizando as obras que atacam Roustaing. A de
Wilson Garcia, embora repetitiva, não podia ser relegada e ali eu a reduzo à
sua real desentoação. O autor, pelo que me informam (não o conheço
pessoalmente), é ainda muito jovem. Sendo espírita, devo presumir que é um
homem de bem. Mas, tendo resolvido entrar na liça como um novo campeão, logo se
viu que suas melhores lições ele as aprendeu com Herculano Pires, o herói que,
nesse assunto, mais mentiu e mais deturpou a verdade. Era o autêntico Rambo do
anti-rustenismo, cujos escritos sempre acompanhei com o mitológico bom humor do
carioca, inclusive suas empolgadas pregações do marxismo. De
qualquer forma, eis que o autor de “O Corpo Fluídico”, desviando-se do
rotineiro dejavismo
(do
Google:
‘déjà-vu’ = ilusão que ocorre na memória e faz com que uma pessoa acredite já
ter visto ou vivido alguma coisa, ou circunstância, nova e que nunca chegou a
acontecer),
afinal acrescentou algo
de novo á discussão: a obra de Roustaing encalhou; e Carlos Imbassahy não era
mesmo rustenista. Da primeira novidade aproveitou-se, célere, o redator do
jornal
paulista. Há mais de
quarenta anos milito no movimento espírita e nunca havia sequer ouvido falar no
nome de Antonio Espeschit, que assina o artigo, fortalecido com o box alusivo a
mim. No entanto, ganhou dua amplas páginas, com ilustração, para escrever sobre
o docetismo
(do
grego dokein. Afirma que Jesus apenas aparentava ser humano) Nesse passo, mostra-se bastante
preocupado com a bibliografia citada por Zêus Wantuil, no Apêndice ao livro
“Elos Doutrinários”, de Ismael Gomes Braga, a qual considera muito raquítica. E
então, apresenta a sua, numa coluna de alto a baixo, destinada a sustentar o
triunfalismo da sua autoridade de pantólogo (diz-se de quem sabe tudo). Ismael Gomes Braga É óbvio que é sempre bom
e legítimo conhecer as fontes de qualquer trabalho. Mas é melhor, ainda, que
esse trabalho traga substância á altura das fontes, além de ser conveniente não
se perder a noção de proporção. Mo caso presente, o autor leu muito (será que
assimilou?), mas não acrescentou nada àquilo que todo mundo já conhece a
respeito do docetismo. Aliás, com tanta bibliografia, com tanto conhecimento,
acabou se tumultuando todo e confundindo Marcion com Bardesano, como se fossem
a mesma pessoa... E, em última análise, que é mesmo que pretendeu? Simplesmente
anunciar, com base nas suas 35 fontes, que as ideias do docetismo se encontram
nas páginas de “Os quatro Evangelhos”. Ora, descobriu a pólvora, 2000 anos
depois dos chineses... Todo o seu histórico, de cerca de 2400 palavras (fora o box e a bibliografia), é para dizer o
que todo mundo já
disse, em evidente exagero culturalista. (Curioso é que não aparece, na sua
bibliografia, a obra de Roustaing, o que faz desconfiar de que não a tenha
lido, como todos os que a combatem gratuitamente. E, mais do que curioso, é decepcionante que também não
conste a mais moderna e considerada a mais importante obra sobre o assunto:
”The Gnostic Gospels”, de Elaine Pagels, 1979, traduzida por Carlos Afonso
Malferrari (“Os Evangélicos Gnósticos”). Nosso
articulista precisa, urgentemente, atualizar a sua heurística... (investigação)). Como seu colaborador de uma
Enciclopédia de volumes, imagine o leitor em que tentação me vejo, nesses
instante, de juntar a este simples artigo uma bibliografia com as centenas de
autores que li, só porque o filósofo jônio Anaximandro, por exemplo, também
concebeu o Universo visível mais ou menos nos mesmos moldes da queda espiritual
explicitada em Roustaing... No mais, embora a bibliografia de Zêus Wantuil seja
bem menor, é fácil constatar que seu estudo é muito mais substancioso do que o
de seu excitado crítico.
Enfim, depois de massagear as emoções dos melhores intelectuais do kardecismo ultra ortodoxo, seu artigo se resume numa advertência quase escatológica, no sentido de que o chamado neodocetismo, representado pelos maquiavélicos adeptos de Roustaing, visa agora a apoderar-se do Espiritismo. Para concluir isso, convenhamos, bastava ter redigido o último parágrafo. E receberia também uma única resposta, numa única frase: ninguém quer apoderar-se do Espiritismo, simplesmente porque a doutrina exposta por Roustaing – como disse Kardec – é o Espiritismo. Da mesma forma que Kardec não quis apoderar-se do Cristianismo. Fora isso, advertências desse jaez são tão pirotécnicas quanto os fogos de artifício, que se fazem com muito pouca pólvora...
Manoel Quintão
Mas, vamos à história do “encalhe” de “Os Quatro
Evangelhos”. Na verdade, Wilson Garcia adora números. Tanto que em seu livro
também se reporta ao plebiscito feito em 1931, por Mariano Rango d’Aragona (o
tal, que era conde...), para saber quantos kardecistas e quantos rustenistas
havia no Brasil. Diga-se, desde logo, que Wilson Garcia só conhece essa façanha
estatística porque eu a divulguei pela imprensa, quando antecipei alguns
capítulos de “A Posição Zero”. Nunca houve o propósito de esconder nada.
Naquela época, o Conde teria chegado à conclusão deque havia 3175000
kardecistas e apenas 3600 rustenistas. Jurava que o levantamento fora “controlado meticulosamente” e brandia
toda a esquizofrenia da sua vitória. A própria Federação Espírita Brasileira
ocupou-se do assunto, arguindo, com justa razão, a validade daquela burlesca
consulta popular. Quem estabelecera os “meticulosos
controles”? O próprio Conde. Quem apurara os votos? O Conde. Quem divulgara
os resultados? O Conde. Quem detinha a lista dos eleitores? O Conde. Quem sabe
quantas foram as abstenções, diante dum plebiscito tão ridículo, do qual, sem
dúvida, os espiritas sérios não teriam participado? O Conde. Quem arquivou os
votos, para efeito histórico, mas que ninguém sabe até hoje onde estão? O Conde. Ora, se eu quiser, faço agora mesmo
um novo plebiscito, com meus “controles meticulosos”, e apresento resultado
diametralmente oposto. Basta querer brincar e ter a coragem de forjar. E
coragem é o que menos escasseava no nosso Conde, pois através dele foram
divulgadas as mais fantasiosas e sensacionais manifestações mediúnicas contra
Roustaing. Uma delas é famosíssima, assinada pelo próprio Roustaing e
“recebida” pelo médium Carlos Gomes dos Santos, no Centro onde o Conde era
diretor-fundador. Sempre esconderam o
nome do livro onde essa mensagem foi incluída. Somente depois que eu o revelei
– “Páginas de Além Túmulo” – é que não puderam mais mantê-lo em segredo. Que
objetivo tinham com o mistério? Tão somente evitar que fossem à fonte, para
verificar. Mas, agora é fácil e, quem o fizer, terá a oportunidade de se
inteirar das demais mensagens “recebidas” por aquele grande médium. Há de tudo,
em matéria de celebridade. Maria, João, Tomé, etc. A última – que nem se sabe
por que está misturada com gente tão famosa – é a de Roustaing. O homem, pois,
era um craque. “Recebia” toda a corte celestial (Roustaing, é claro, foi uma
exceção), Só faltou “baixar” o próprio Jesus para opinar definitivamente sobre
o seu corpo. (A história desse médium, dessa mensagem e do Centro onde foi
recebida está analisada em meu livro “A Posição Zero”). Certo é que o resultado
do plebiscito foi tão piramidal que o Conde não se deu conta de que, àquela
época, a população total do Brasil era de 33 568 000 habitantes. Pois ele conseguira os votos e nada
mais nada menos do que 10 por cento dessa população! E 10% de espíritas que
estavam perfeitamente a par da controvérsia sobre o corpo fluídico de Jesus.
Sem dúvida, um sucesso, digno do Barão von Munchhausen. Se não fora uma grande
mágica. David Copperfield não faria melhor, embora, é natural, sendo mais
escrupuloso, jamais apresentaria resultados em números redondos como os
redondíssimos números do Conde...
Pois Wilson Garcia faz questão de
dar destaque a essa estatística, com o que verifico – e isso é tão grave quanto
aquela coragem do Conde – que ele se encanta com os números, ainda que
provavelmente não seja pitagórico, por medo da proximidade com Roustaing.. Quer dizer: seu critério de verdade é o das maiorias. Por aí se vê que ele ignora
que os católicos são maioria, no Brasil; que os umbandistas são maioria; que a
maioria, diante de Pilatos, escolheu Barrabás; que o verdadeiro Espiritismo não
há de estar preocupado com dados quantitativos, mas exclusivamente
qualitativos. Ainda que o plebiscito do Conde fosse sério, que peso teria para
efeito de saber quem está com a razão? É preciso ser muito pobre de
entendimento quando se defende essa postura plebiscitária, capaz de valer, a
seus entusiastas, perigosa erosão de autoridade doutrinária. Nunca é demais
reler a lição bíblica, da Vulgata latina: “Stultorum
infinitus est numerus”. (O
número de tolos é infinito).
E é justamente porque está engolfado no critério dos
números que Wilson Garcia saiu em campo com suas conclusões em torno da minha
informação de que “Os Quatro Evangelhos”, em 1882, ainda estavam à disposição
do público. Gritou, eufórico, no que foi acolitado, agora, pelo articulista de
São Pulo: a obra encalhou! E gastou 5 páginas de seu livro para provar a
asserção, baseando-se em estudo meu. Todavia, como veremos, foi traído pela
amadorística inexperiência e pela corte aos métodos de Herculano Pires (aquele
que defendia a criação das faculdades pagas de Espiritismo, com fornecimento de
diplomas, vestibular e... professores registrados e muito bem remunerados).
Quando advir-lhe o tempo da maturidade, Wilson Garcia perceberá que os rustenistas
não são bastante tolos como supõe, e que é preciso examinar bastante os prismas
de qualquer argumentação, antes de cultiva-la com antiquados empenhos. Fazer
coo Herculano Pires, que tentava desmoralizar Roustaing com a versão
falsificada dos “criptógamos carnudos” (que ele não entendeu ou fingiu não
entender), é derrapar nas esquinas da honestidade e da ética. Senão, vejamos.
Wilson Garcia quer medir, com esquadro assimétrico, a
excelência de um trabalho inicial do público. Nesse caso, que mérito teria, por
exemplo, genialidade de Van Gogh? Enquanto viveu, só conseguiu vender 1 único
quadro! Que valor teria a grandiosidade de “La Traviata”, cuja estreia, em
1853, foi um fiasco calamitoso? O próprio Verdi considerou-a “um fracasso total”. E se a matéria é
literária, que dizer do extraordinário Franz Kafka, que não vendeu nenhum livro
até à morte? Mas não é só: como interpretar a infinita diferença de vendagem –
em todos os tempos – entre as obras espiritualistas e as pornográficas, cujas
edições se multiplicam muito mais aceleradamente? Os grandes sucessos de
bilheteria, não há quem ignore, são precisamente dos filmes eróticos e mais
deprimentes. Entretanto, nem precisaríamos desses exemplos para delir essa mais
nova diatribe contra “Os Quatro Evangelhos”. Bastaria levantar uma questão
preliminar: quantos exemplares foram impressos da obra de Roustaing e quantos
de “O Livro dos Espíritos”? Ninguém sabe. Se
da primeira tivemos, eventualmente, 100 mil e, do segundo, apenas 10 mil, é
claro que aquela demoraria mais tempo para se esgotar. Além disso, há sempre os festejados
autores clássicos como Flammarion, Denis, Delanne e tantos outros, impressos
mesmo modestamente, pala Federação Espírita Brasileira (que outra editora se aventuraria?),
os quais são pouquíssimo lidos e suas edições ficam nas prateleiras por mais de
20 anos! Seriam obras fracassadas? Sinceramente, com esse tipo de oposição os
anti-rustenistas não vão conseguir sufragação em nenhum plebiscito sério. Se
fossem políticos, jamais chegariam ao poder...
Aí está a minha resposta ao artigo e
ao box do jornal paulista. Para dá-la, como disse, tive de reportar-me ao livro
do Wilson Garcia (Por falar nisso: nesses 10 anos, desde que foi lançado,
quantos exemplares foram vendidos do “O Corpo Fluídico”?) Agora vou aproveitar
para abordar aquele segundo argumento, também novo em matéria de divulgação
contra Roustaing: a chamada conversão de Imbassahy. Fui exatamente eu quem
publicou longo artigo no “Reformador” de maio de 1972, pág. 105, intitulado
“Carlos Imbassahy e Roustaing”, com vistas a provar (note bem: provar) que o grande lidador espírita e
meu amigo particular sempre fora a favor de “Os Quatro Evangelhos”. E
tratava-se apenas de parte do texto de meu livro “A Posição Zero”, o qual,
completo, ainda é mais acachapante. Seu filho, irritadíssimo com minha
iniciativa, veio a cena me dando iraquianas botinadas e gritando, exacerbadamente,
que eu mentira e que eu não privava da intimidade da casa de seu pai. Mas,
fazer a contraprova, ele não a fez. Xingou muito, mas não pode desmentir uma
única vírgula do meu trabalho. Chegou
a estampar uma nota de família, pela imprensa, com versão absolutamente
fraudada de fatos ocorridos comigo e Imbassahy, numa palestra pública que fiz em
Barra Mansa, com centenas de testemunhas e cuja gravação existe até hoje para
ser ouvida por quem tenha dúvida. Quanto a minha intimidade na casa de Imbassahy, eu jamais a afirmara. O que disse
e repito é que privava da sua amizade, o que é bem diferente. Assim, o máximo que conseguiu foi
evidenciar que... não conhecia as obras do pai. (Aliás, em matéria de
conhecimento doutrinário ele é requintadamente bisonho senão folclórico). Pois
o que o filho não logrou, pretendeu, depois, o Wilson Garcia. E desenterrou uma
história de ajuda que Guillon Ribeiro desejara dar a Carlos Imbassahy,
emprestando-lhe a obra de Roustaing, a qual teria sido lida e logo rejeitada. A
partir e então, Imbassahy passara a “polemizar,
intramuros, com os próprios companheiros da FEB”, e seus livros não foram
mais editados. Aí, Imbassahy, foi buscar, em 1950, alguns originais novos,
tomando-os de Wantuil de Freitas. Não
satisfeito, escreveu um artigo intitulado “O Corpo Fluídico” – inédito – “que só foi encontrado após o seu desencane”.
E segue-se, no livro de Wilson Garcia, a transcrição desse “artigo”, que “elimina, definitivamente, qualquer
tentativa que se queira fazer para torna-lo rustenista.”
Bem, vamos por partes. Em primeiro
lugar, posso assegurar que toda essa história é falsa. Duvido que me apontem
onde ela s encontra narrada pelo próprio Carlos Imbassahy ou mesmo por alguém
que atenha divulgado enquanto Imbassahy estava encarnado. Cantilena transmitida
por terceiros, ainda que sejam familiares, não vale nada. Quero a versão
escrita pelo próprio Imbassahy. Se me for apresentada, juro que que
acreditarei, sem vê-la, para mim não passa de fantasia, de intriga mesquinha.
Posso testemunhar, como íntimo frequentador da FEB, que as tais polêmicas nunca
existiram. Não houve, de fato, a publicação de novos livros, mas os anteriores
continuaram a ser reeditados seguidamente. Os originais que ele teria ido
buscar com Wantuil de Freitas representam outra invencionice. Nem Imbassahy nem
Wantuil nunca me falaram disso. Ninguém testemunhou isso. E, como, ao contrário
do inocente Wilson Garcia – que, sem apurar, foi passando a novela para frente
– costumo provar tudo quanto digo, aqui vai a prova de que jamais existiu
qualquer animosidade entre Imbassahy e a FEB. Basta refletir, dentre tantos
outros, dois exemplos facílimos de serem constatados. Em 1952, a Federação Espírita Brasileira do
Paraná (nem foi a FEB) lançou o livro de Manoel Quintão intitulado “Cinzas do
meu Cinzeiro”. Foi solicitado um Prefácio a Carlos Imbassahy, que logo o preparou,
em julho daquele ano. A págs. 12 e 13, ele depõe, na sua irreprochável
sinceridade:
“Também
militamos na Federação Espírita Brasileira. Discordamos, às vezes, daqueles que
nos pareciam de inabalável ortodoxia doutrinária.
Chegamos
a pensar em transportar-nos a outra comunidade. Força é confessar que não
achamos fora dali gente tão honesta, tão sincera, tão digna. Um a um daqueles
antigos companheiros e amigos, se foi retirando pelo reclinatório da sepultura,
como diria Camilo Castelo Branco.”
(A discordância a que chamava “ortodoxia doutrinária” era exclusivamente no que respeitava à
tolerância com a Umbanda, que Carlos Imbassahy defendia e a FEB ainda não se
dispusera a fixar rumos com mais objetividade, senão os que
emanavam do Conselho Federativo Nacional, definindo Espiritismo e Doutrina
Espírita. Essa história eu também a conheço bem, mas fica para ser narrada, com
mais detalhes, se for preciso, noutra oportunidade. O que é óbvio é que
Imbassahy – se discordasse de Roustaing – não poderia estar pensando nele, ao
falar de “ortodoxia doutrinária”.
Pensava nos rigores kardecistas e, então, numa abertura de ideias. No que, de
resto, ele estava com a razão.)
Assim, concretamente ali estava a
confissão de Carlos Imbassahy, no sentido em que, fora da Casa de Ismael (e
isso é que, no momento, importa) não conseguiu encontrar “gente tão honesta, tão sincera, tão digna.”
Dir-se-á que o evento é de 1952,
muito antigo. Pois vamos ao segundo, registrado em 1962, dez anos depois do
primeiro e, também, mais de uma década desde quando aquele “on-dit” (ouvi dizer), recordado por Wilson Garcia
(1950), teria acontecido. Abramos o “Reformador” de julho de 1962, págs. 151, e
leiamos a súmula da reunião do Conselho Federativo Nacional, do qual Imbassahy
já não fazia parte, mas a que ainda comparecia, convidado ou espontaneamente.
Diz o texto, logo no início:
“Saudando o confrade
Dr. Carlos Imbassahy, presente à reunião, o Presidente enaltece o valor do
visitante, antigo membro do Conselho e dedicado trabalhador da Doutrina”.
Eu estava presente a essa reunião. E
todos nós conversamos animadamente. Quer dizer: mesmo sem cargo, Imbassahy
aparecia de vez em quando e era sempre muito bem recebido. Esse clima de
amizade nunca deixou de existir. E se ele ia é porque lhe aprazia. Ou, então,
seria muito hipócrita, atributo que não condizia com aquele notável espírita.
Portanto, as informações em contrário são mentirosas. O que não me surpreende.
O forte dos anti-rustenistas é a inverdade, no livre exercício da imaginação
comprometida com a odiosidade. Se Imbassahy não gostasse da FEB, jamais
apareceria por lá. Seu desligamento do “Reformador” – por ele pleiteado –
aconteceu exclusivamente devido a divergências pessoais com outro confrade da
Redação.
Quanto ao tal artigo contra
Roustaing, inédito, é a choradeira mais picaresca dos últimos tempos. Imbassahy
desencarnou em 1969. Em nenhuma biografia póstuma apareceu a história. Depois
que publiquei, no “Reformador”, em 1972, as provas de que ele era rustenista,
seu filho, como já disse, deu cambalhotas para me desmentir, sem consegui-lo, é
claro. Ora, é incrivelmente insustentável que ele houvesse deixado passar a
grande oportunidade de estampar o tal artigo. Este, porém, só vai aparecer,
triunfalmente, no livro de Wilson Garcia, em fins de 1981 (12 anos após a
desencarnação!), embora houvesse sido encontrado entre os seus papéis. Pelo
visto, só arrumaram a casa 12 anos depois... E, atualmente, onde se acha esse
fantasmagórico original? Informa o próprio Wilson Garcia, em nota de rodapé,
num registro todo envergonhado: “em
poder de um amigo da família, cedido que fora pela viúva”. Quem é esse
amigo, não foi dito. Por que não ficou com o filho, que é espírita e estaria
eternamente eufórico com tão precioso legado ninguém sabe. Por que Imbassahy
escondeu essa reviravolta doutrinária até à desencarnação (quereria transferir,
covardemente, sua polêmica para a família?), não se sabe também. Mistérios que
certamente só os anti-rustenistas conseguem desvendar, mas que não apenas mais
um dado no inflacionado balanço da violência doutrinária contra os adeptos de “Os Quatro
Evangelhos”.
Porém, vamos dar de barato que o tal original existia
mesmo, até com a letra do Imbassahy. O que é chamado de artigo (será que Wilson
Garcia não sabe exatamente o que quer dizer artigo, dirigindo, como dirige, um
jornal espírita?) não passa da enumeração, de 1 a 15, sem qualquer comentário,
de argumentos contra o corpo fluídico de Jesus. Isso é que teria sido
encontrado entre os papéis de Imbassahy, mais de 1 década após a sua
desencarnação e até hoje ocultado. Estaria
redigido de próprio punho. Pois bem; e daí? Trata-se duma simples relação de
argumentos contra o corpo fluídico de Jesus. Imbassahy pode tê-la preparado com
o exato propósito de rebater aqueles argumentos, por sinal, os mesmos que todo
mundo conhece. Nem ao menos são mais brilhantes, à altura da inteligência do
pretendido autor. Alguns são primaríssimos, de desmaiada mediocridade.
Importante é que não é um artigo, onde teríamos podido conhecer o texto e o seu
conteúdo. Sem isso, é impossível afirmar a opinião do autor, seja ele quem for.
Seria pró ou contra? Se eu desencarnar, amanhã, vão encontrar, entre os meus
papéis, uma relação contendo rigorosamente os mesmos itens, com a diferença,
apenas, de que é bem maior. Fui registrando, ano após ano, todos os argumentos
suscitados pelos inimigos de Roustaing, para refutá-los em meu livro “A Posição
Zero”. Se essa relação cair nas mãos do Wilson Garcia, espero que ele não a
publique como “prova” de que sempre foi contra Roustaing...
Para encerrar mais esse episódio em
torno da posição de Carlos Imbassahy, devo dizer que seria prudente não
insistir nesses contraprovas, que transgridem clamorosamente as regras da
decência e do bom-senso. Apenas propiciam-me o espetáculo da mais grotesca
comédia, encenada com intenção charlatanesca. Gostaria muito que esses novos
argumentos contra Roustaing fossem, afinal, o último prato a enfeitar o
cardápio dos intolerantes comensais da festança anti-rustenista. Mas sei,
desolado, que isso é quase impossível aos xiitas do Espiritismo, que fazem de
“Os Quatro Evangelhos” a sua eterna “delenda
Cartago”. Vão viver mordidos, ainda, por muitas encarnações.
E isso é tudo, por enquanto. Aí
estão as razões importantes em torno de uma questão séria. O resto é sucata.
“Excussez de peu”... (peço
desculpas)
Docetismo
por Zêus Wantuil
Fonte: ‘Anexo do
livro ‘Elos Doutrinários’’ por Ismael Gomes Braga
(Ed. FEB - 1949)
Os Dicionários e Enciclopédias assim definem o
Docetismo: doutrina herética dos primeiros séculos do Cristianismo, variante do
Gnosticismo, e que consistia em ensinar a não realidade carnal do corpo de
Jesus, não aceitando, por conseguinte, seu nascimento, sofrimento, morte e
ressureição, senão em aparência. Alguns estudiosos pensam ter sido Júlio
Cassiano (*) o autor dessas ideias; contudo, isso não se pode provar, por falta
de dados positivos. Os seguidores dessa doutrina denominavam-se docetas ou
docetes (fo grego dókesis –
aparência), e professavam o mais puro monoteísmo.
(*) Depois de composto o
trabalho, tivemos a ventura de tomar parte de uma reunião íntima com o médium
Francisco Cândido Xavier, em Pedro Leopoldo, no dia 30 de Outubro de 1948. O
médium descreveu-nos a presença de um espírito muito luminoso, de elevada
esfera, que lhe deu o nome de Júlio Cassiano, e manifestou sua aprovação pelas
atividades de nosso jovem confrade Zêus Wantuil, de quem disse ter sido
instrutor no século segundo. Por lamentável falta de memória, nenhum de nós, no
momento, se recordou do nome de Júlio Cassiano, que, naquela ocasião, já estava
escrito e composto para o “Reformador” –Ismael Gomes Braga.
Parece ter sido a primeira ‘heresia’
cristã conhecida, pois São Jerônimo, o autor da Vulgata, diz que o “sangue de
Cristo estava ainda fresco na Judéia, quando o seu corpo foi considerado como
tendo sido um fantasma”.
O nome Docetismo aparece citado,
pela primeira vez, no século II, conforme os documentos que se conservaram, num
manuscrito do bispo de Antioquia, Serapião, embora seja a doutrina anterior a
essa época, conforme tudo parece confirmar.
Até hoje é ignorado se o Docetismo designava uma seita, como o
pretenderam Clemente de Alexandria e Teodoreto, ou, simplesmente, uma opinião
muito difundida, sobretudo entre os gnósticos, como afirmaram Epifânio e
Filástrio.
Os docetas reconheciam na pessoa do
Cristo apenas a natureza divina, não negando, contudo, a realidade de seu
corpo, que consideravam aparente, aéreo, como um “fantasma”, e, por esse corpo,
explicavam os fatos da encarnação e morte do Filho do homem.
Inteligência de primeira ordem, de pureza perfeita –
refletiam eles -, o Cristo não podia diminuir-se e tomar um envoltório de
matéria corrompida, opinião esta generalizada em todas as doutrinas gnósticas.
O termo Gnosticismo não tem uma definição específica; foi mais um nome coletivo
que abrangeu as mais variadas seitas e ideias que floresceram pelo menos até ao
século V da era cristã, estando em contradição, sob vários pontos, com as
reflexões católicas.
É justo anotar que do Gnosticismo
saíram os primeiros exegetas cristãos, com a finalidade de tornar mais claro ao
povo o sentido obscuro das Escrituras.
Antonio Wantuil
No sentir dos gnósticos, Jesus não
veio somente para salvar os homens, ou seja, para os instruir e esclarecer; ao
desempenho desse fim, eram-lhe suficientes as aparências da natureza humana.
Para salvar os homens – expunham os gnósticos – tornava-se apenas necessário a
sua instrução, visto que a corrupção e o apego dos homens à Terra provinham da
ignorância em que se achavam acerca de sua própria grandeza, dignidade e
destino.
Desde que as almas das criaturas estavam ligadas,
aprisionadas aos órgãos corporais, somente por mediação dos sentidos se lhes
podia esclarecer o espírito. Por isso, Jesus teve a necessidade de tomar as
aparências de um corpo, assemelhando-se aos homens, para com eles conversar,
esclarecendo-os e instruindo-os; ele, porém, observavam os gnósticos, não
estava unido a esse corpo “fantástico”, como se acha unida a nossa alma ao
corpo humano, pois semelhante união, além de desnecessária na instrução aos
homens, teria degradado o Salvador. Em vista disso, inferiam que a obra da
redenção, trazida pelo Mestre à Terra, ligava-se unicamente a um ministério de
instrução. Podemos observar, nesses ensinos, reflexos doutrinários atualmente
incluídos no Espiritismo.
Santo Atanásio, ilustre doutor da
Igreja grega, no seu tratado da “Encarnação do Verbo” apesar de a ortodoxia não
levar em consideração, sem motivo plausível, o seu pensamento, ensina que, em
Jesus, não houve duas naturezas diferentes, conforme ficou firmado mais, tarde,
nos Concílio de Éfeso (431), de Calcedônia (451) e de Constantinopla (680),e,
sim, a única natureza divina encarnada; em outros termos: que a natureza humana
não foi senão um instrumento para o Logos
(Verbo). Assim professava a Escola de
Alexandria, que fazia desaparecer, por conseguinte, na natureza divina a
natureza humana, reduzida esta, desse modo, a uma simples aparência ou a uma
matéria inerte. Em suma, tal Escola tinha a ideia dominante, de tendência
platônica, de que do Deus Supremo havia saído uma inteligência perfeita,
denominada Verbo, ou Espírito, e que a sua elevada condição tornava-lhe
impossível unir-se à matéria ou revestir-se da natureza humana. Veem-se também
traços de Docetismo até na grande ortodoxia dogmática de S. João Damasceno.
A “heresia” em questão foi bem recebida pelos espíritos
mais cultos e filosóficos, e uma das provas disso é a “Epístola de Santo Inácio
aos Esmirneanos”, no século I, na qual, referindo-se aos docetas, o bispo de
Antioquia, condenando-a, diz: “Os
poderes celestes, os anjos, os príncipes, sejam visíveis, sejam invisíveis, não
permanecerão sem punição, se não crerem no sangue de Jesus-Cristo. Ninguém deve
orgulhar-se de sua posição ou do posto que ocupa.”
Uma interpolação, em tais cartas, talvez
feita pelo próprio autor, trás, na passagem acima citada, a paráfrase seguinte,
ainda mais frisante: “Quer seja este um rei ou um sacrificante, quer príncipe
ou particular, senhor ou escravo, é em vão que ele se apoiará em sua classe, na
sua dignidade ou nas suas riquezas.”
Tais revelações trouxeram aos estudiosos a conclusão de
que muitos dos docetas ocupavam altos postos na Igreja e no Governo.
Beausobre, conceituado teólogo
protestante, autor de várias obras de crítica religiosa, em sua “Histoire
Critique de Manichée et du Manichéisme”, muito falou sobre o Docetismo, sistema
por ele considerado interessante a prol do melhorlig entendimento da religião
cristã, tornando-a mais plausível. Conta-nos, então, esse autor que, segundo os
docetas, Jesus não tinha abandonado aos seus algozes senão um “fantasma” que se
assemelhava.
Se bem que não davam muito crédito
ao Velho Testamento, em todas as suas partes, serviam-se, nas suas discussões
sobre o corpo aparente de Jesus, das aparições de Jeová ou de anjos a Abraão, a
Moisés e a tantos outros profetas. Constantemente, alegavam eu Jeová havia
aparecido a Abraão sob a forma humana na planície de Mamre, tendo o Senhor
concordado em receber alimento, comendo e bebendo, em aparência pelo menos, o
bezerro, opção e o leite que Abraão preparara (Gên., 18:1 a 8). Seguem-se,
ainda, a convivência dos dois anjos com Lot, na casa deste (Gên., 19:1 a 22)
e muitos outros fatos semelhantes. Apoiavam-se
os docetas, igualmente, em o Novo Testamento, citando diversas passagens dos Evangelhos e
das Epístolas de Paulo.
Raciocinavam dizendo que um corpo humano é sempre
visível, sempre palpável e com um peso proporcional à quantidade de matéria que
o compõe; que ele não pode penetrar através de outros corpos, sem ser
penetrado. Ora, acrescentavam eles, o corpo de Jesus não possuiu nenhuma dessas
propriedades. Não era visível senão pela vontade do próprio Jesus, e não por
natureza; por isso é que ele passou despercebido através de uma multidão
furiosa que, levando-o ao cume de um monte, resolvera precipitá-lo dali.
(Lucas, 4:28 a 30); ainda devido à sua constituição especial é que ele
desapareceu repentinamente diante dos olhos dos dois discípulos que o
reconheceram em Emaus (Lucas, 24:30 e 31), o mesmo sucedendo em outras
ocasiões.
Ora, semelhante raciocínio, para
ambos os casos citados, mostrasse-nos inteiramente confirmável pela Doutrina
Espírita, raciocínio que o Codificador, apoiado nos fatos, externou em “Obras
Póstumas”, ao dizer que “o Espírito pode atingir tangibilidade real,
deixando-se então tocar, apalpar, oferecendo a mesma resistência e o mesmo
calor qual se fora um corpo vivo, mas isto não o priva de desfazer-se coma
rapidez de um relâmpago.
Diziam, ainda, os docetas: Jesus não
possuía um corpo inerente à matéria, pois que andou sobre as águas do mar da
Galileia, sem se afundar (Mateus, 14:25 e 26); não tinha solidez permanente,
pois penetrou, estando as portas fechadas, na casa onde os discípulos se
reuniram por duas vezes (João, 20:19 e 26).
É preciso considerar esses
argumentos em conjunto e não insuladamente, pois, desta forma, poderiam
conduzir a raciocínio diverso e parcial.
“Notamos, disse Beausobre, que os antigos heréticos
defendiam sua doutrina pelos mesmos testemunhos da Escritura e pelas mesmas
razoes de que se serviu a Igreja Católica, nos séculos posteriores, para
defender a presença real de corpo de Jesus-Cristo na eucaristia.”
Acompanhamos o raciocínio desse
teólogo; - Se nos primeiros séculos os cristãos houvessem admitido o dogma da
presença real, os docetas disso se aproveitariam, retirando uma objeção
invencível e, certamente, diriam aos seus adversários; “Tudo o que subsiste,
sem nenhuma das propriedades do corpo humano; por conseguinte, não é ele mais
um corpo humano.”
Sustentavam os docetas – repetimos – que Jesus pareceu
possuir um corpo humano igual aos nossos, se bem que, na verdade, de forma
alguma o possuísse. Comentando, prossegue Beausobre; “Ora, sob que direito e
sob que pretexto os Padres, admitindo a presença real do corpo de Jesus na
eucaristia, teriam podido rejeitar aquele milagre semelhante que continuava a
perpetuava-se na Igreja, do qual a prova e o exemplo a todo momento se
apresentavam aos olhos dos fiéis? Que absurdo ai havia em dizer que o Senhor,
durante o curso do seu ministério, parecia ser aquilo que não era, ele que,
após a sua ascensão ao céu, não cessou de aparecer?
“Como na eucaristia o corpo de Jesus tem todas as
aparências do vinho e do pão, sem ser nem um nem outro, outro, do mesmo modo o
corpo aéreo teria as aparências de realidade carnal, ainda que se constituísse
de uma substância puramente espiritual.”
Bergier, conhecedor profundo de
Teologia dogmática, refutando tais comparações, diz que, certamente, os Padres
assim teriam respondido: “Tudo que subsiste, sem nenhuma propriedade sensível
ou insensível do corpo humano, já não é corpo humano. Ora, o corpo de Jesus, na
eucaristia, privado das propriedades sensíveis, conserva, contudo, as
propriedades insensíveis: logo, é um corpo humano, senão no seu estado natural,
pelo menos num estado sobrenatural e miraculoso.”
Vemos que essa resposta de Bergier em si mesma nada diz
ou prova. Partindo de premissas inconsequentes, senão dogmáticas, conclui nesta
base, de maneira dessarroada e pueril.
Comentando, ainda, o assunto em
foco, Bergier declara que, se o dogma da presença real de Jesus na eucaristia é
aceito, ao passo que é rejeitada a opinião dos docetas, isso não o é por
considerar-se uma dessas questões menos absurda ou menos impossível a Deus que
a outra! Assim se acredita, prossegue o explanador, por dois motivos: 1º) “A
presença real é formalmente ensinada na Escritura Santa, ao passo que,
contrariamente, a opinião dos docetas é ali formalmente reprovada”; 2º) “O
dogma da presença real de maneira nenhuma conduz às consequências falsas e
ímpias que se seguiriam à
opinião dos docetas, isto é, a do corpo aparente e fantástico do Cristo.”
A primeira razão derivou e continua
derivando da interpretação literal dos textos escriturísticos que se referem a
tais pontos. Apesar da recomendação de Paulo de tudo examinarmos à luz do
espírito, os homens prosseguimos na mesma rota de adaptação ao nosso eu
material das coisas do espírito.
A segunda digressão, imediatamente verificamo-la não
ser verdadeira, pelo menos atualmente, quando a obra de Roustaing, impregnada
daquelas ideias docetistas, cada vez mais eleva o nome do Senhor, criando em
nós uma admiração e um respeito bem mais profundos pelo filho de Maria.
O distinto eclesiástico cita os
testemunhos epistolares de Santo Inácio e de São Policarpo, que estabelecem ser
verdade o “mistério” da encarnação, a realidade da carne e do sangue de Jesus,
servindo-se também do 1º versículo da 1ª Epístola de João – versículo que em
nada desaprova o corpo fluídico do Mestre, pois os próprios docetas não negavam
trem os apóstolos visto, ouvido ou tocado o Senhor; seja ante, seja após a
ressureição; ressalvavam apenas que, aos sentidos deles, era dada a ilusão da
carne real.
Santo Irineu, bispo de Lião, discípulo de São
Policarpo, combateu o Docetismo no seu “Tratado contra as heresias”,
servindo-se, porém, dos mesmos fracos e parcos argumentos de que os demais
Padres se utilizaram. Deste modo, refere-se à genealogia de Jesus por Mateus e
Lucas, esquecendo-se o replicador das palavras textuais do próprio Mestre,
contrárias a tal genealogia, constantes em Mateus, 22:41 a 45 e João, 11 a 18,
bem como as de Paulo na Epístola aos Hebreus, 10:5.
“Se Jesus não fosse semelhante aos homens (exceção feita
ao pecado!) – continua Santo Irineu – não
poderia ser chamado homem nem Filho do Homem; viria apenas para nos iludir,
inutilmente, pois, se somente tivesse tomado no exterior todos os sinais e
caracteres da natureza humana; se realmente não houvesse sofrido não nos teria
remido. Indigno do título de Salvador da Humanidade, seria simplesmente um
impostor, e não aquele predito pelos Profetas. Ainda mais, a ressureição da
nossa carne tornar-se-ia impossível, e não receberíamos, na eucaristia, a sua
carne e o seu sangue, etc...”
O inteligente leitor poderá
verificar, por si mesmo, a mediocridade desses argumentos. Desejamos fazer
referência à questão do “Filho do homem”, que melhor poderá ser compreendida em
Daniel 7:13. Além disso, a expressão homem
bem pode supor a ideia da Humanidade em geral, compreendendo todos os seres da
espécie humana, significação que já era citada pelo notável jurisconsulto
romano, Gaio, que viveu no século II. Ainda poderíamos acrescentar o
significado dado pelos antigos egípcios, relativo ao grau de saber. Doutro
lado, não se refere o “homem” a José, pois Jesus nascera do Espírito Santo.
Prendendo-se, frequentemente, à
imprescindível necessidade do sofrimento material, carnal, de Jesus, os
contraditores dos docetas esqueciam-se do inenarrável sofrimento moral ou
espiritual do Mestre. Ainda mesmo que o Cristo nada sofresse dos homens,
bastaria, para nos remirmos, a sua vinda ao abismo escuro da minúscula Terra,
com todas as suas angústias que essa vinda deveria acarretar-lhe ao Espírito, a
fim de trazer-nos a sua palavra iluminada.
Atualmente, os espíritas, estudantes
da Terceira Revelação, aceitamos, por bem provável, o sofrimento material de
Jesus, visto que este, possuindo um envoltório fluídico condensado (se assim
nos permitem exprimir), e portanto matéria em si, se tornava, por conseguinte,
suscetível aos choques da matéria.
É bom não esquecermos de que tal matéria condensada é
tão sensível que, ao ser tocado um Espírito materializado, sem a permissão
deste, nas seções de experimentação, comumente a ação se reflete dele para o
médium, que a sofre intensamente; assim, pois, podemos asseverar que tal
matéria é sensível, sensibilíssima mesmo.
Ao contrário dessas materializações
“artificiais”, de laboratório, em geral imperfeitas e dificultosas, cumpre
refletir atentamente sobre as aparições espontâneas, perfeitíssimas, quase
diríamos carnais, distintas mesmo daquelas outras, e em tudo nenhuma relação
parecendo mostrar com determinados médiuns, antes nos deixando supor a completa
independência de sua formação, inclinando-nos a admitir que elas, as aparições,
apenas se utilizaram dos recursos extraídos da Natureza.
Nestes últimos “fantasmas”, a que chamamos agêneres, é admissível que os choques
materiais, por eles recebidos, não se reflitam no exterior, qual se verifica
com os Espíritos materializados em nossas sessões, os quais, quando o permitem,
se deixam tocar pelos circunstantes vivos, sem isso trazer qualquer perturbação
ao médium. Assim, se o Espírito materializado pode
conservar em si mesmo a ação do choque, é admissível e lógico que o agênere igualmente poderá sentir o
choque, sem o transmitir. Dessa forma, não vemos por onde negar a priori que os
seres fluídicos (agêneres) sejam
insensíveis à dor.
(**)
(**)
Por outro lado, temos de refletir sobre os fatos hoje conhecidos da
exteriorização da sensibilidade e da sua anulação, como vemos nas práticas de
hipnotismo. Com seu ilimitado poder sobre a matéria e o magnetismo, mesmo que
tivesse um corpo material, gerado, Jesus poderia torna-lo insensível, como
fazem hoje médicos e dentistas em operações cirúrgicas. Portanto, o argumento
que considera a dor como condição necessária à missão de Jesus é inconsistente,
como tantos outros que pretendem igualar aquele Espírito sublime aos nossos de
calcetas do pecado e da dor. – Nota de Ismael Gomes Braga
Em vários dos chamados “livros apócrifos”, encontram-se
ideias docetistas. Antes de mencioná-los, vejamos a significação precisa da denominação
que lhes foi dada.
O Protestantismo considerava
apócrifos os chamados deuterocanônicos do Catolicismo. Os católicos reservam o
nome – apócrifos – aos escritos que a Igreja rejeita do cânon ou catálogo
público das Escrituras, por nele encontrarem “coisas corrompidas” e contrárias
a verdadeira fé (católica, é claro!). Existem, ainda, os apócrifos cujo motivo
da exclusão do cânon é desconhecido. Tais livros, dizem mais, dados por seu
título ou teor como obra de autores inspirados, não podem ser justificados
neste sentido, ainda que sejam admitidos como inspirados por algumas Igrejas
particulares ou por heterodoxos. A bem
dizer, nem todas essas obras foram impugnadas por alguns venerandos Padres e
Doutores da Igreja, que se consideravam ligadas à inspiração divina.
Comentando esses apócrifos, disse
Orígenes: “De modo geral, não devemos rejeitar em bloco tais obras, das quais
podemos extrair alguma utilidade para esclarecimento de nossas Escrituras.
Demonstra tal proceder a ausência de um espírito sábio em compreender e aplicar
o preceito divino: Provai tudo e retende
o que é bom.”
Foi
num concílio realizado no século V, em Roma, que parede ter sido decretado,
pela primeira vez, sob o papado de S. Gelásio, um catálogo de livros canônicos,
cuja compilação definitiva crê-se ter sido terminada no começo do século VI.
Esse papa, já possuído da “heresia da dominação”, na expressão de Arnaud,
perseguiu os maniqueus na cidade de Roma, expulsando-os e queimando seus
livros.
Os deterocanônicos, obras que por muitos séculos foram
postas em dúvida quanto a sua autenticidade, surgindo mesmo discussões entre os
Teólogos e entre os Padres da Igreja, receberam, mais tarde, a sua inclusão no
cânon, por conseguinte após as obras já nele existentes, e daí a origem de sua
denominação de deuterocanônicos. Entre
muitas delas, temos as seguintes: o livro de Tobias, o de Judite; o
Eclesiastes, as Epístolas de Pedro; a Epístola aos Hebreus; a 2ª Epístola de
João; o Apocalipse de João, etc.
Antes dessa época, os Evangelhos e
os Atos apócrifos eram largamente espalhados e consultados entre os cristãos.
Na Epístola de Barnabé (apócrifa),
obra considerada autêntica por Orígenes e S. Clemente de Alexandria, no
versículo 12, há: “O Senhor diz que a influência da carne dele é deles.” Parece
aí haver uma ideia docética, como pensa Harnack, se bem que outros não aceitem
o mesmo.
Serapião de Antioquia proibiu a
leitura do Evangelho de Pedro, na suspeita de nele haver corruptelas por parte
dos docetas, talvez por conter o versículo 10 uma referência a Jeus, na cruz,
nos seguintes termos: “Mas ele permaneceu mudo, como alguém que não sente dor
alguma.”
Exceto os Atos
de Paulo, todos os demais Atos apócrifos – dizem os ortodoxos – encerram
mais ou menos ideias docetistas. Alguns desses foram reunidos numa
coleção, na segunda metade do século II, por Leucius Charinus que, segundo
Santo Epifânio, bispo de Constância, fora um discípulo de João, o Evangelista,
e tal coleção foi ainda assinalada pelo bispo de Astorga, no século IV.
Nos Atos de João
conta-se que, na Última Ceia, João, o apóstolo, encostando-se no peito do
Cristo, sentiu-o não resistente; ao ser sepultado, o corpo de Jesus estava por
algum momento aparentemente sólido, e logo em seguida ele se tornou “imaterial
e incorpóreo como se nada fosse.” Ainda os mesmos Atos dizem que a crucificação
foi somente em aparência, e que o Cristo apareceu a João, no Monte das
Oliveiras, e lhe explicou o fato.
Os Atos de Pedro
relatam que Deus enviou seu Filho “através da virgem Maria.” Considerando
aparente a Paixão, diz que “o sofrimento que se manifestou na Paixão do Cristo
foi totalmente diferente do que em geral se supõe.”
Os Atos de André relatam que Jesus é “imaterial, puro, imponderável”,
etc..
Nos Atos de Tomé, frequentemente é evidenciada a antítese entre matéria
e espírito, de sorte que a expressão neles existente – “Jesus é espírito –
parece contar uma ideia de fundo docético. S. Cirilo de Jerusalém, referindo-se
ao termo espírito, diz que, de um modo geral, assim se denominava todo aquele
que não possuíam corpo pesado e denso.
Um ilustre sacerdote de Letchworth
(Inglaterra), estudioso de tal assunto, observa que, fora esses pontos de resto
todas essas obras apócrifas falam de Jesus muito semelhantemente aos livros
canônicos, convindo, entretanto, frisa
ele, “sejam lidas somente nos círculos ortodoxos, não devendo parar em
outras mãos, por causa de sua tendência herética.”
O nome geral de docetas foi dado a representantes de
várias seitas, aos discípulos de Simão, de Menandro, de Saturnino, de Basilide,
de Valentim, de Dositeo (discípulo de João, o Evangelista) etc., visto que
todos eles concordavam na mesma ideia a respeito do corpo de Jesus, ainda que
estivessem divididos entre vários pontos de doutrina.
Basilide, morto no ano 130, redigiu
um comentário sobre o Evangelho, primeira obra desse gênero de que se tem
conhecimento. Esposava ele ideias interessantes com relação ao porquê do
sofrimento da Humanidade terrena. Dizia, então, que o homem sofre neste mundo
porque sua alma pecou em vida anterior à sua atual união com o corpo, sendo
essa união um estado de expiação de que ela somente sairia depois de se haver
purificado em passando sucessivamente de corpo em corpo, até o cumprimento da
justiça divina, que não dava outros castigos, mas que, anexada à teoria do
corpo “aparente” de Jesus, recebia igualmente a pecha de heresia.
Simão, o Mago, que se acreditava ter
sido aquele citado nos Atos dos Apóstolos, disse que Jesus viera entre os
homens como um homem, se bem que não fosse de forma alguma um homem.
No século II, Valentim, Bardesana, Apeles, Marinus e
outros admitiam o corpo de Cristo, embora fosse um corpo espiritualizado,
depurado, e que somente passou através de sua mãe, mas não foi formado por ela.
Valentim ensinava que Jesus possuía
um corpo “psíquico”, especial, não sujeito à destruição e às leis normais da
matéria. Nasceu de Maria, passando através dela, que permaneceu virgem, como a
água passa através de um conduto, sem nada receber ou modificar, visto já
possuir ele um corpo “lá de cima”. Valentim afirmava ter recebido esta doutrina
de um discípulo de Paulo.
Heracleon, discípulo de Valentim,
escreveu comentários sobre os Evangelhos de Lucas e de João. O comentário a
respeito desse último era bem conhecido de Orígenes que, se bem não concordasse
inteiramente com a exegese de Heracleon, considerava-a, pelo menos, com
respeito.
Bardesana, tido pelos Padres de sua época como homem
cheio de talentos e virtudes, negara a ressureição carnal. Reconhecia a
imortalidade da alma, a onipotência e providência de Deus, e dizia que Jesus
tivera um corpo espiritual. Parece haver crido na existência de satanás ou do
demônio, que não era, porém, criatura de Deus, nem administrava parte alguma do
mundo. Buscava Bardesana essa saída para poder explicar a origem do mal, que de
Deus não poderia resultar. Para ele, o mundo e o homem foram criados por Deus,
mas o homem, no princípio, não era um ser revestido de carne e, sim, uma alma
unida a um corpo sutil e conforme à sua natureza. Essa era, pois, a alma que
fora formada à imagem de Deus e que, enganada pelas astúcias do demônio, havia
transgredido as leis do mesmo Deus, o que obrigava o Criador a expulsá-lo do
paraíso e a liga-la a um corpo carnal, uma espécie de prisão, que Bardesana
dizia serem as túnicas de pele com que Deus havia coberto Adão e Eva, depois do
pecado.
Malgrado essas ideias estarem crivadas dos sentimentos
e da compreensão vigentes naquela época, são elas merecedoras de acatamento.
Judiciosamente, em conclusão à
doutrina esposada, Bardesana diz que a união a um corpo carnal é, pois,
consequência do mesmo pecado e, em vista disso, Jesus, espírito puro,
imaculado, não poderia ter tomado um corpo carnal. Igualmente, prosseguia ele,
devido ao mesmo princípio, não ressuscitaremos com o mesmo corpo que temos
sobre a Terra, mas sim, com um corpo sutil e celeste, que deve ser a habitação
normal de uma alma pura e inocente.
Harmonius, filho de Bardesana, mais
claramente que o pai, afirmou a reencarnação. Marinus prosseguiu com o ensino
dessas doutrinas.
Segundo Apeles, Jesus realmente não
nasceu da virgem Maria; todavia, não se manifestou sem um corpo real. Dizia,
então, que Jesus, servindo-se do material das estrelas e “das mais altas
substâncias da Natureza” compôs um corpo e nele habitou durante o tempo que
passou neste mundo. Ressurgido depois de três dias, mostrou aos discípulos as
marcas das mãos e o lado, a fim de convencê-los de que era ele mesmo em pessoa,
em carne e osso, e não um fantasma – prossegue Apeles, argumentando. Após
aparecer, durante quarenta dias, com essa carne, o Cristo, tendo rompido o laço
que o prendia a semelhante corpo, restituiu a cada dos elementos aquilo que
lhes pertencia, retirando-se, em seguida, para o Pai. Assim fazendo, ele não
quis conservar nada de estranho, pois apenas se servira daquela carne,
momentaneamente, enquanto dela tinha necessidade.
Em verdade, Apeles teve razão ao
considerar o corpo de Jesus uma verdadeira carne e esta é a mesma impressão que
temos com os Espíritos materializados, que às vezes se nos apresentam perfeita e
legitimamente “carnais”.
Marinus e outros, seguindo a
Bardesana, diziam que o Cristo possuíra um corpo “celeste”, “astral”, não
tendo, pois, nascido de mulher.
O docetismo radical, de que nos fala
o teólogo protestante Harnack, negava toda a realidade do corpo de Jesus; este
não nascera absolutamente em nenhum sentido, e durante toda a sua vida humana
foi um perfeito fantasma.
Embora Saturnino e Cerdo, os mais
radicais, tenham aventado tais ideias, estas, bem analisadas, tinham razão de
ser, pois Jesus não passara pelo nascimento normal na Terra e o seu corpo
participara dos caracteres de um “corpo fantasma”.
Saturnino, gnóstico do século I,
dizia, segundo Santo Irineu, que o Salvador não foi nascido, foi incorpóreo,
sem matéria real, sine figura (sem forma), assemelhando-se a um homem aos
olhos da Humanidade.
Antes de continuarmos, devemos
lembrar aos leitores que a maior parte das questões em estudo não provém dos
escritos dos docetas, escritos que, embora produzidos, ou se perderam ou
sofreram a destruição. Quase tudo que
relatamos nos foi legado por alguns dos primeiros Pais da Igreja (Inácio,
Irineu, Tertuliano, Hipólito, Epifânio, etc.) que se insurgiram contra tais
ideias e, assim, é bem provável que eles tenham, consciente ou
inconscientemente, deturpado, algumas vezes, o sentido oculto do pensamento dos
docetas.
Cerdo (ou Cerdon) explicava que o
“Cristo, o Filho do Deus Altíssimo, manifestou-se sem nascer de Maria, ou seja,
sem nenhum nascimento na Terra à semelhança dos homens”.
Para Marcion, zeloso cristão, Jesus não fora, de
maneira alguma, um homem, pois não tinha um corpo real; apareceu, ao contrário,
“sob a semelhança de um homem” (Epístola aos Filipenses, 2:7). E diz ainda: “O
Cristo pareceu sofrer e ser sepultado”. Há também referências sobre Marcion em
que este se baseia em Mateus, 12:48, na Epístola aos Romanos 8:3, além de
outras passagens, em apoio do Docetismo.
Contra Marcion escreveu Tertuliano,
para provar que o Cristo não teve um “corpo fantástico”, embora este Padre
acreditasse que os anjos possuem um corpo que lhes é próprio, passível de se
transfigurar em carne humana, tornando-se, por algum tempo, perceptíveis aos
homens, e com este podendo manter relações visíveis.
Ptolomeu, gnóstico cristão da escola
de Valentim, de meados do século II, foi dos que mais circunscreveram as ideias
docetistas. Dizia que o Cristo fora, de fato, um homem real, porém a sua
substância ou natureza era apenas composta dos elementos psíquico e pneumático,
isto é, de perispírito e do espírito propriamente dito, como hoje diríamos.
O elemento psíquico, mesmo entre os filósofos não
materialistas, tinha o sentido de um elemento de natureza física ou animal,
formando como que o intermediário entre o espírito e o corpo, e constituía o
sopro imortal, o princípio espiritual da vida espiritual ou intelectiva.
Ptolomeu dizia que a natureza
psíquica de Jesus permitiu-lhe sofrer e sentir dor, ainda que nada possuísse de
grosseiramente material.
Abstinham-se os docetas da
eucaristia, visto que não reconheciam representar a carne e o sangue de Jesus.
Os ofitas (é um nome genérico
para várias seitas gnósticas cristãs da Síria e do Egito que se desenvolveram
por volta do ano 100 d.C.) continuaram
com as mesmas ideias que, no século VI, foram retomadas por alguns eutiquianos (Da Wikipedia: Relativo
ou pertencente ao heresiarca Eutiques (c. 454), presbítero e arquimandrita
(Da
Wikipedia: Equivalente a monsenhor na igreja ortodoxa) da Igreja Oriental, em
Constantinopla.)
e monofisistas (Da Wikipedia: é o
ponto de vista cristológico que defende que, depois da união do divino e do
humano na encarnação histórica, Jesus Cristo, como encarnação do Filho ou Verbo
(Logos) de Deus, teria apenas uma única "natureza", a divina, e não
uma síntese de ambas).
O Monofisismo surgiu em princípios do século III,
amoldando-se às ideias apolinaristas (das quais trataremos mais adiante). No
século VI, sofreram os seus adeptos as mais cruéis perseguições, sendo forçados
a emigrar para o Egito. Nessa época, o Monofisismo dividiu-se em duas seitas, pois
Juliano, bispo de Halicacarnasso, discordando quanto à natureza do corpo de
Jesus, afirmava, então, que era fazer injúria à sua divindade supor que o Verbo
se unira a uma carne terrestre e corruptível como aquela dos homens
“animalizados” e “mal cheirosos”. O Cristo, em sua passagem pela Terra, tivera
o seu sempre incorruptível, como aquele de Adão antes da queda, e igual àquele
que os outros o creem ter tomado após a ressureição; foi sempre isento da
corrupção e das enfermidades, bem como da punição do pecado. Completando os
seus pensamentos, Juliano diz que, se o Cristo sofreu, fez voluntariamente,
para salvar os homens, mas não por
efeito de sua natureza.
Os que professavam esta doutrina
foram chamados aftartodocetas, em contraposição com os corruptícolas.
Procedendo do Egito, os incorruptícolas espalharam-se por várias regiões, tendo
sido dominantes na Armênia.
O Maniqueísmo, que contém ideias
docéticas, surgido no século III, sofreu muitas perseguições, conseguindo,
contudo, espalhar-se pelo Oriente e pelo Ocidente, declinando somente no século
XII, devido à violenta oposição da Igreja.
Os Maniqueus acreditavam na
reencarnação, por julgarem-na indispensável ao progresso do espírito humano,
visto que, alegavam eles, não é possível que todas as almas adquiram perfeita
pureza no decurso de uma única vida mortal.
As almas que persistem no pecado,
após certo número de revoluções, são entregues aos demônios do ar, para serem
alimentadas e domadas. Depois dessa dolorosa penitência, voltam as almas a outros
corpos, como que para novas escolas, até que, tendo adquirido o grau de
purificação suficiente, se transportam, atravessando a região da matéria, ao
lugar a que os maniqueus denominam “coluna da glória”. O Espírito Santo, que
está no ar, assiste continuamente as almas, espalhando sobre elas suas
preciosas influências.
O maniqueísta Fausto, entre outros,
descreve o corpo do Mestre como não sendo humano, mas, sim, formado de
elementos celestiais.
No século XII floresceu na França
meridional a seita neomaniqueana dos albigenses. Admitindo, como os cátaros, os
princípios antagônicos – o mau e o bom – diziam que Jesus não podia tomar um
corpo genuinamente humano, porque viria debaixo do controle do princípio mau.
Por conseguinte, seu corpo era de natureza celestial e com ele penetrou a
pessoa de Maria; nasceu dela e sofreu, apenas aparentemente.
Entendiam, ainda, que a redenção do Mestre não foi
“operativa”, mas unicamente instrutiva.
Inúmeros concílios católicos foram
realizados com o fim de dar combate à doutrina dos albigenses, a qual, todavia,
se propagava cada vez mais rapidamente. A convite do papa, organizaram-se
cruzadas militares sob os auspícios de alguns países, os quais desbarataram os
albigenses, cometendo as maiores atrocidades. A Inquisição, instituída para esse fim, prosseguiu no
bárbaro trabalho de limpeza, e conseguiu, no começo do século XIV, o quase
total desaparecimento dessa seita.
Além de outras diversas seitas que
encerravam ideias docéticas, alguns anabatistas foram docetas; Maomé, no
Alcorão, veladamente parece referir-se ao corpo de Jesus, e chega a dizer que
“Jesus, o filho de Maria, o Verbo e o Apóstolo de Deus, não foi sacrificado
senão em aparência”; e o próprio Budismo, numa de suas seitas, apresentou, com
relação a Buda, tendência docética.
Só agora escreveremos sobre
Apolinário, visto que, ao que nos parece, suas ideias não interessam ao estudo
a que nos propomos, como veremos.
Alguns autores, ao tratarem do corpo
de Jesus, referiram-se às concepções apolinaristas no que estas dizem ter sido
impossível o corpo do Cristo, e que descera do céu ao seio da Virgem, mas que
não nascera dela.
Desejando comprovar a veracidade de
tais afirmações, encontramo-las, de fato, no Grande Dicionário Universal do
século XIX, de Larousse, e em alguns outros dicionários talvez calcados nessa
obra, que, sucintamente, sem trazer qualquer elação bibliográfica, nos pareceu
ser a de que aqueles autores se serviram.
Entretanto, estudando a vida e a
obra de Apolinário em outras Enciclopédias, teológicas ou não, que profusamente
se referiram a esse bispo, citando a redação dos anátemas proferidos contra a
sua doutrina, e com a apresentação final de extensa bibliografia, é
desconcertante dizer nada havermos encontrado a respeito daquelas questões inseridas
no “Larousse”. Infelizmente, por não possuirmos os livros indicados nas
bibliografias como referentes a Apolinário, não pudemos verificar a veracidade
ou não da exposição oferecida pelo Grande Larousse. Esperamos, todavia, que
outro estudioso mais paciente e dedicado esclareça essa dúvida.
Apresentamos, pois, a síntese do
estudo que levamos a efeito:
Apolinário (o jovem), bispo de
Laodicéia, nascido talvez a 300, e falecido em 390 ou 392, era filho de
Apolinário (o antigo), com quem trabalhou na adaptação da Bíblia à literatura
profana. Foi mestre de S. Jerônimo, que se julgou diante dele, assim como de
Orígenes e outros Padres, “imperitíssimo comparado com eles”. Diz o autor da
Vulgata que Apolinário escreveu inúmeros livros volumes sobre a Sagrada Escritura
e que os trinta livros contra Porfírio foram muito admirados.
Apresentou ele refutações ao
Arianismo e ao Maniqueísmo, escreveu algumas obras em verso e fala-se de uma
versão poética da Bíblia, produzida, parece, somente por ele, sem o auxílio do pai,
como pensam alguns autores.
Sócrates, o Escolástico,
referindo-se a ele, disse: “foi um sábio em ciência”. S. Basílio diz que
“devido ter ele grande facilidade em escrever, sobre qualquer assunto,
conseguiu encher o mundo com seus livros”.
Acredita-se ter sido 360 o ano que
Apolinário iniciou o ensino de uma nova concepção a respeito da natureza do
Cristo. Sofrendo a oposição da Igreja, desta por fim se separou, surgindo assim
a seita dos apolinaristas.
Mesmo depois de seu afastamento dos
Pais ortodoxos, estes continuaram a trata-lo com respeito e até com certa
afeição.
Santo Epifânio conta que ele
próprio, bem como Santo Atanásio e “todos os católicos”, muito amaram o
“ilustre e venerável ancião Apolinário de Laodicéia”, e que, ao ouvirem falar de
sua heresia, não puderam acreditar que tão grande homem houvesse caído em
semelhante erro.
O Sínodo de Alexandria (362) parece ter conhecimento
das ideias de Apolinário, rejeitando-as, não mencionando, porém, o nome do
autor. No Sínodo romano (374), foi Apolinário julgado herético e condenado, não
sendo, contudo, nominalmente incluído nos cânones. Outras reuniões
eclesiásticas condenaram a doutrina apolinarista. O Sínodo de Antioquia (378) lança o anátema
contra aqueles “que dizem que o Verbo de Deus habitou na carne humana, em
substituição à alma racional e inteligente”. O papa Dâmaso, no Concílio de Roma
(380), lançou idêntico anátema. O primeiro cânon do Concílio Ecumênico de
Constantinopla (381) registra também a condenação.
Serviu-se Apolinário, para sua
concepção, dos três elementos componentes da natureza humana, segundo a escola neoplatônica,
a saber: o corpo; a alma; (“anima animans”), princípio que
atua e informa o corpo, sendo comuns aos homens e aos animais, tornando-os em
seres vivos; e a mente ou espírito, agente do pensamento, da
razão, da consciência, da vontade livre, em síntese: a essência da
personalidade humana. Em apoio dessa divisão, citava passagens das Escrituras,
como por exemplo, a “Primeira Epístola aos Tessalonicenses”, 5:23 – “e o vosso
espírito, alma e corpo sejam conservados completos, irrepreensíveis”. Desses
três elementos, o corpo e a alma formavam o ser “natural” (a máquina, teria
dito Platão) controlado e guiado pela razão ou espírito. Mas – comentava
Apolinário – o espírito no homem é transformável, falível, cheio de pecados
inerentes à natureza humana e, por isso, não deve tomar lugar no Cristo, o que
tiraria o valor à Redenção.
Raciocinando ontológica e
psicologicamente, Apolinário criou, então, a doutrina que admitia, na pessoa do
Cristo, o corpo humano e a alma, mas não a mente racional humana. Esta é o Logos ou este lhe toma o lugar,
ornando-se, assim, o centro racional ou espiritual.
Atribuiu-se a Apolinário o haver sustentado que a
divindade (Logos) sofrera, morrera, etc.; porém, isto são mais consequências
tiradas dos princípios de Apolinário que propriamente opiniões do bispo,
comentam estudiosos católicos.
Baseando-se em algumas passagens do Novo Testamento,
para Apolinário foi Jesus realmente um ser de natureza humana, por possuir alma
e corpo, embora controlado e guiado pelo Espírito
divino que lhe constituía a natureza divina. O Cristo não foi, pois, um
Homem-Deus e sim um ser partilhando do homem e de Deus; nem inteiramente homem
nem inteiramente deus.
Os Padres ortodoxos contemporâneos,
rejeitando a teoria de Apolinário, não estão muito interessados, declara um
escritor eclesiástico, sobre a verdade ou a inverdade contida de três
elementos, questão que foi levantada na Idade Média, e que vem tem suscitado
veementes discussões entre os teólogos. Os primeiros contraditores de
Apolinário escandalizaram-se principalmente com a asserção de que ao Cristo
faltou um elemento de completa natureza humana.
Diante de toda essa análise, podemos
concluir que Apolinário foi um
trabalhador cristão, admirado por seus contemporâneos, e que a sua doutrina, nada tendo a ver com a do corpo fluídico de
Jesus, foi fruto natural da época, quando diferentes ideias surgiam no afã
de explicar a tese católica da união divina à
humana.
Dissemos acima que Apolinário combateu o Arianismo,
doutrina do presbítero Ário, apresentada no princípio do século IV, contrária à
da S. S. Trindade, e que chegou a abalar os alicerces do Catolicismo dominante,
que desapareceria se não fossem as lutas e perseguições violentíssimas movidas
contra os sectários da doutrina mencionada. Baseado nos Evangelhos, Ário dizia
que, se o Filho está subordinado ao Pai, não é, pois, absolutamente Deus; não é
consubstancial com o Pai, portanto não é coeterno com Este, não O igualando em
dignidade e poder. Logo, Jesus não é eterno e sim, concluía Ário, uma criatura
gerada antes da criação do mundo por ato da vontade de Deus, e deste não tem a
mesma essência ou natureza, apesar de ser criatura tipo, a mais perfeita. Esta perfeição é tal – considerava
Ário – que, para os terrestres, Jeus poderia mesmo ser um Deus. A doutrina arianista
reapareceu, sob outros nomes, em parte, nos séculos XVI, XVII, XVIII, bem como,
em parte, qual a do Docetismo, foi revelada, revivescida, pelos Espíritos que
nos trouxeram a Terceira Revelação.
Com a ânsia espontânea e nobre de esclarecer
a Humanidade, aqueles homens foram incompreendidos e passaram a sofrer perseguições
dos quase que se sentiam com o privilégio da iluminação de Mais Alto. Que esses
exemplos de incompreensão cristã, do passado, não revivesçam, perturbando a
marcha evolutiva do pensamento humano. Os homens de responsabilidade doutrinária
deverão reconhecer a necessidade de nos respeitarmos uns aos outros,
lembrando-nos de que o livre-arbítrio, ou melhor, a liberdade de crença é uma
das maiores, senão a maior conquista de século, por permitir a cada um procurar
as luzes que o auxiliem a vencer a jornada terrena e satisfaçam à inteligência e
ao raciocínio próprios.
O professor de Escritura Sagrada,
Arendsen, de uma das Universidades inglesas, num estudo do Docetismo, anota um
renascimento de ideias docéticas em círculos espiritistas, embora, - diz ele -
menos fantásticas e extravagantes que as do passado. Sim, confirmamos nós
outros, a obra de Roustaing ressuscitou o pensamento fundamental do Docetismo -
o corpo fluídico de Jesus. Cumpriu, destarte, o Paracleto uma das facetas do
seu infindo programa esclarecedor, e, realmente, sem qualquer extravagância.
Ao deliberar a confecção deste
trabalho, assaltou-nos apenas o desejo de trazer uma explanação menos imperfeita
das ideias que se prendem ao Docetismo, visto que este termo é encontrado em
importantes obras espíritas e comumente é referido nas conversações entre
espiritistas.
Trabalho sem valor, já o sabemos;
todavia esperamos que outros, mais cultos e dispondo de obras cuja raridade não
nos ensejou um estúdio mais profundo, possam melhor desenvolver o assunto,
trazendo-nos as luzes a que todos aspiramos.
Bibliografia
Grand
Dictionnaire du XIXe Siècle - M. Pierre Larrousse.
La Grande
Encyclopédie.
The
Catholic Encyclopedia - Various editors.
Encyclopedia
of Religion and Ethics - Edited by James Hastings.
Encyclopédie
Théologique - Publiée par M. L’Abbé Migne.
Enciclopedia
Universal Ilustrada.
Dictionnaire
de Théologie Catholique - G. Bareille.
Phylosophumena
on Réfutation de toutes les héresies – Hippolyte du Rome.
Dicionário
Universal das Heresias, Erros e Cismas – Antônio Gomes Pereira
El legado
de Egipto - Publicação da Universidade de Oxford.