A fé
Espírita de Victor Hugo
Flávio Luz
Reformador
(FEB) Novembro 1919
Não só os céticos sistemáticos, mas particularmente
os adversários ferrenhos do Espiritismo, os padres, fazem timbre em alardear a
fé profundamente católica do grande Victor Hugo. Entretanto, é do domínio público
a resposta significativa que o poeta, já moribundo, mandou dar a um alto dignatário
do clero francês que se apresentara em sua casa para
uma visita de inegáveis proveitos para a Religião.
Aos 2 de Agosto de 1883, Victor Hugo
depositava nas mãos de Agusto Vacquerie um envelope aberto contendo as suas últimas
vontades, concebidas nestas poucas linhas expressivas palavras:
“Lego cinquenta mil francos aos pobres.
“Desejo ser conduzido ao cemitério
em coche fúnebre.
“Recuso o sufrágio de todas as igrejas;
aceito uma prece de todas as almas.
“Creio em Deus.
Victor
Hugo.
Um grande debate vem de se ferir pelas
colunas do “Figaro” de Paris, entre literatos, jornalistas e pensadores franceses,
sobre a possibilidade de comunicação entre os vivos e os Espíritos dos mortos.
Provocou esse debate uma publicação feita por M. Luiz Barthou, antigo
Presidente do Conselho e membro da Academia Francesa, na Revue des Deux Mondes, de vários trabalhos inéditos de Victor Hugo.
Vieram à baila vários documentos que
documentos que atestam a fé inabalável do príncipe dos poetas na doutrina da
vida futura. Surgiram os relatos feitos por Agusto Vacquerie nas Migalhas da
Histeria (Miettes de l' Histoire) das interessantes sessões de Espiritismo a
que assistiu Victor Hugo em casa de Mme. Emilia de Girardin. No decurso dessas
memoráveis experiências, a que o grande pensador foi arrastado por Mme. Girardin,
teve ele provas inegáveis de que se comunicava com Voltaire e com sua falecida filha
Leopoldina.
Mas, alegarão os incrédulos, os interesseiros
que o testemunho de Vacquerie
é gracioso;
que Victor Hugo não acreditava nos Espíritos e na vida futura. As provas iniludíveis
da fé espírita do poeta, das Contemplações, escritas pelo seu próprio punho,
felizmente existem e o Sr. Barthou publicou-as no Figaro, de 15 de Janeiro último.
M. Léon Bérard, deputado pelos Baixos
Pirineus, em artigos do mesmo jornal, lembrou o capítulo dos Miseráveis “Uno Tempête
sons un crâne”, em que Jean Valjean, então maire de Montreuil-sur-Mer, estando
certa noite fechado em seu quarto, sentiu distintamente passos. Voltou-se, assombrado,
e não viu pessoa alguma.
-Quem está aí? Perguntou em voz alta
e todo espantado. Depois, esboçando um sorriso que mais parecia o sorriso de um
idiota, continuou:
- Que animal sou eu! Quem poderá
estar aqui? Alguém deveria existir, mas
aquele que
aqui estava não era dos que a vista humana pode ver...”
Aqueles que não leram a obra de Victor
Hugo, ou que as leram mas não a
compreenderam,
o escritor espírita Kermario oferece um documento claro, decisivo, que não deixa
dúvida alguma acerca das convicções do grande poeta. Trata-se de uma carta que
o autor da “Legenda dos séculos”
enviou a Lamartine, quando este perdeu a esposa:
Hauteville-House,
23 de Maio,
“Caro Lamartine,
“Acabais de passar por uma grande
desgraça; sinto a necessidade de levar o meu coração para junto do vosso. Eu
venerava aquela que amáveis. O vosso elevado espírito vê além do horizonte;
percebeis distintamente a vida futura.
“Não é preciso dizer-vos: Tende
esperança. Sois daqueles que sabem o que esperam.
“Ela é sempre a vossa companheira, invisível,
mas presente. Perdestes a esposa, mas não a alma. Caro amigo, vivamos nos mortos.
Victor
Hugo”
Nenhuma inteligência, por mais
modesta que seja, poderá compreender nessas palavras outra coisa que não seja uma
arraigada convicção espírita.
M. Lesseps deu à publicidade alguns pensamentos
espíritas escritos por Victor Hugo após a morte
de seus filhos:
“Morre-se esperando, e aqueles que
morrem deixam após si aqueles que choram.
“Paciência, pois nós somos apenas
precedidos. É justo que a noite chegue para todos.
“É justo que todos subam, um após
outro, para receber a sua paga. As injustiças, as preterições são apenas
aparentes.
“O túmulo a ninguém esquece. Um dia,
talvez bem logo, a hora que soou para os filhos há de soar também para o pai.
“A jornada do trabalho estará terminada;
terá chegado a sua vez; então ele terá aparência de um adormecido; metê-lo-ão entre
quatro tábuas, a esse alguém desconhecido que dizem chamar-se um morto, e conduzi-lo-ao
à grande e sombria abertura.
“Lá se encontra o limiar impossível
de adivinhar. Aquele que chega é esperado por aqueles que já chegaram. Aqueles
que chega é bem vindo. Aquilo que parece ser a saída é para ele a entrada.
“Então, ele percebe distintamente o
que havia obscuramente aceito: os olhos da carne se fecham, os olhos do
espírito se abrem e o invisível se torna visível. Aquilo que para os homens é o
mundo, para ele se eclipsa. Enquanto o silêncio se faz em torno da vala aberta,
enquanto pás de terra, de poeira lançada por sobre a cinza futura, caem sobre o
esquife surdo e sonoro, a alma misteriosa abandona essa vestimenta, o corpo, e
sai toda vestida de luz daquele montão de trevas. É quando para essa alma os desaparecidos tornam a aparecer, e os “verdadeiros vivos” que
na sombra terrestre se chamam os mortos, enchem o horizonte ignorado, se
comprimem, radiantes, em uma profundeza de nuvem e de aurora, chamam docemente
pelo recém-chegado, e se lhe inclinam sobre o rosto resplandecente com aquele
belo sorriso tão próprio das estrelas!
“Assim partirá o batalhador carregado
de anos, deixando, se procedeu bem,
alguns pesares
após si, seguido até a beira do túmulo por olhos molhados - quem sabe! e por
graves frontes descobertas; enquanto isso, recebê-lo-ão com indizível satisfação
na eterna claridade; e se não sois luto neste mundo, ó meus amados, lá em cima
sereia festa!
Victor
Hugo”
Em um discurso que proferiu em Guernesey,
diante do túmulo de uma moça, disse Victor Hugo: “Os mortos são invisíveis, mas
não ausentes.”
Em outro trecho: “Nada mais sublime
do que a amplidão do túmulo: sobe-se espantado de haver pensado que se descia.”
Ainda poderíamos pôr em evidência o
despeito dos jesuítas ante a cerimônia civil dos funerais de Victor Hugo,
transcrevendo estas palavras publicadas pelo jornal clerical “LA CROIX”, de 4 de
Junho de 1885, a propósito das homenagens prestadas pela Sociedade dos Espíritas,
de Paris, ao grande morto:
“Ninguém ligou importância, no dia
da procissão sacrílega (expressão que põe em relevo o despeito dos padres ante
a declaração expressa do poeta - de que dispensava o sufrágio de todas as religiões),
uma sociedade satânica que teve a despudorada audácia de nele tomar parte.
“Ia também oferecer a sua coroa, em
que se lia: Sociedade dos Espíritas.
São essas as tais pessoas que pretendem
manter relações habituais com Satanás e que fazem profissão de entreter sobre a
terra um comércio ilícito com maus espíritos.
“É a primeira vez que se vê semelhante
exibição tolerada em uma cerimônia pública e oficial.
“É mister remontar ao tempo dos Maniqueus
que pretendiam houvesse dois deuses, o do bom e do mal, para admitir semelhantes
insânias a par de tamanha audácia.
“Expulsai Jesus Cristo; ficareis com
Satanás.
"Le
Fr.”
M. Augusto Dide, senador pelo Gard,
em um discurso que pronunciou no
“Cercle Parisien
pour la propagande de I'Instruction dans les départements”, de que Victor Hugo era
presidente, narra um fato inédito, um episódio quase trágico da agonia do grande
pensador:
“No momento da morte, viram-no
endireitar-se no leito; estavam presentes, ao lado do moribundo, Mme. Loekroy e
uma filha. Eis que ele se embrulha no lençol e diz à jovem senhora e à filha: “É
um morto que vos fala; volto do túmulo para anunciar-vos a boa nova!” E isso
dizendo, cai sobre o leito, fulminado”.
Tudo isso é por demais eloquente para
que nos detenhamos em comentários sobre as convicções plenamente espíritas de
Victor Hugo. Tudo quanto aí fica exprime verdades que ninguém jamais contestou.
Passados 34 anos, eis que a mácula do clericalismo ameaça sujar a
memória sublimada do grande poeta, assoalhando aos quatro ventos que aquela alma
elevada e liberta professava as velharias do catolicismo e que antes do morrer se
reconciliara com a Igreja, recebendo o conforto
de um sacerdote que fora visita-lo!
Mentira! Victor Hugo fez despedir da
porta um graduado de batina que procurava explorar as condições precárias de saúde,
visando arrancar-lhe declarações que revogassem o seu passado de homem crente,
mas liberto dos dogmas carunchosos da Igreja.
Victor Hugo fez-se espírita, procedeu
como espírita e morreu como espírita.